23 dezembro 2020

Comércio e cultura

Allan Bloom

Todos sabemos, com algum grau de precisão, o que é comércio, mas eu não entendo o que é ‘cultura’, palavra que nunca uso. ‘Cultura’ de alguma forma se refere às coisas ‘mais altas’, à ‘espiritualidade’, e, como esses termos, também é uma palavra vaga, sem conteúdo. Pertence à família de outras noções amorfas como ‘gênio’, ‘personalidade’, ‘intelectual’, ‘criatividade’, todas inventadas com uma intenção nobre, embora falha, e têm sido, ao longo de dois séculos, inevitavelmente, como moedas que se desvalorizam com o tempo.
[...]

A ideia de ‘cultura’ formou-se como resposta ao aparecimento da sociedade comercial. Tanto que eu saiba, Kant foi o primeiro a usar a palavra no seu sentido moderno. (Claro, toda mudança importante na linguagem remonta a uma mudança profunda no pensamento.) Kant usa a palavra num contexto no qual discute a contribuição de Jean-Jacques Rousseau à articulação do problema humano. Os primeiros trabalhos de Rousseau, os discursos sobre Ciências e Artes e Origem da Desigualdade tinham, de acordo com Kant, revelado a verdadeira contradição que faz o homem incompleto e infeliz: a oposição entre natureza e civilização, as necessidades animais do homem e felicidade, de um lado, e seus deveres sociais e ciências e artes adquiridas, de outro.

Mas, ainda de acordo com Kant, Rousseau, nos seus trabalhos derradeiros, Emílio, Do Contrato Social e Nova Heloísa, propôs uma possível unidade que harmonizasse as baixas exigências naturais com as altas responsabilidades da moralidade e da arte. A esta unidade Kant chamou de ‘cultura’. Suas três Críticas eram uma tentativa de sistematizar a ‘cultura’. A primeira delineia os limites da natureza como revelada pela ciência, terreno da matéria móvel no qual toda causa é mecânica. A segunda estabelece a possibilidade de um terreno da liberdade no qual vontade e, portanto, responsabilidade são concebíveis. E a terceira encontra um terreno totalmente novo, o estético, no qual a imaginação pode jogar livremente, e os anseios do homem pela beleza e felicidade podem ter substância.

Juntas, as Críticas fornecem a base filosófica da ‘cultura’, e a vida por elas informada poderia ser realmente culta. Este sistema considera todas as possibilidades da alma em sua riqueza e profundidade. O anúncio de uma nova clareza sobre a verdadeira articulação do potencial humano prometia realizações de um nível anteriormente nunca atingido.

Fonte: Bloom, A. s/d [1990]. Gigantes e anões: Ensaios (1960-1990). SP, Best Seller.

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