17 maio 2023

A escrita diarística e o fumo de um corpo que arde

Felipe A. P. L. Costa [*].

Reter lembranças é como reter
O fumo de um corpo que arde.
Poh Pin Chin (1909-1984).

Cada um de nós produz e perde ideias todos os dias. Muitas ideias. Tanto é que, mesmo deixando de lado aquelas que nos parecem erráticas ou falaciosas, ainda resta muita coisa. Incluindo até mesmo ideias que podem se tornar soluções viáveis para problemas (teóricos ou práticos) que estão a nos incomodar no dia a dia.

É fato também que, por mais egocêntricos que sejamos, nem todos os lampejos que nós temos diariamente visam apenas e tão somente o nosso bem-estar individual. Reter ao menos parte desse manancial, portanto, poderia ser valioso não só para o indivíduo, mas também para o seu entorno. Pensando assim, apresento a seguir quatro pontos para consideração e eventual refutação por parte do leitor.

1. NÃO DEIXE PARA DEPOIS.

O primeiro ponto, e também o mais importante, é um alerta: Não adianta confiar na memória e pensar “Depois eu anoto”. Não funciona assim. Lampejos surgem e somem em fração de segundos.

Veja: Uma das regras básicas de uma boa vida mental, como anotou Peterson (1975, p. 154), é o esquecimento:

É fácil esquecer informação que foi adquirida recentemente, como sabe qualquer um que tenha esquecido um nome ouvido apenas há cinco minutos, numa reunião social. Tal esquecimento pode ser aborrecido, mas parece ter sua utilidade. Podia ser perturbador, por exemplo, se nos lembrássemos de cada número de telefone que já procuramos. Considerando toda a informação que a memória efetivamente retém, é provavelmente vantajoso que algo tão desconhecido quanto um número de telefone seja lembrado o tempo suficiente para fazer uma única chamada e depois esquecido. Além disso, uma nova informação pode, usualmente, ser armazenada na memória sem grande esforço, se há alguma razão para supor que o material possa ser necessitado novamente. A experiência comum de esquecimento, de um lado, e de retenção, de outro, sugere que a memória funciona de duas formas distintas – uma a curto prazo e outra a longo prazo. Para efeito de discussão, muitas vezes é conveniente falar de uma memória a curto prazo e de uma memória a longo prazo, embora realmente as duas pareçam estar tão intimamente relacionadas que são descritas, por alguns investigadores, como dois aspectos do mesmo fenômeno. O armazenamento a curto prazo serve bem para muitas ocasiões na vida diária. O armazenamento a longo prazo é, de fato, aprendizagem: o processo pelo qual uma informação, que possa vir a ser novamente útil, é armazenada para ser evocada quando necessário.

Tentar reter na memória os lampejos e as ideias que temos todos os dias é como tentar reter o fumo que escapa de uma fogueira. E mais: não bastasse a natureza evanescente das ideias, a preocupação de não perder uma informação adquirida recentemente (e.g., o endereço ou o telefone de alguém) tende a ocupar parte dos nossos processos mentais, obstruindo o fluxo de ideias, o que às vezes resulta em ações desastradas. Aqui entra em cena o segundo comentário.

2. FIXANDO AS IDEIAS EM PAPEL.

A melhor arma contra a perda e o desperdício de ideias é uma prática antiga e bem conhecida, ainda que raramente usada hoje em dia: Tomar nota dos próprios pensamentos. Sim, é isso mesmo: anotar em papel. Daí a minha sugestão: Mantenha uma caderneta de notas ao seu alcance e, sempre que possível, passe a anotar ali os lampejos (ou ao menos alguns deles) que aparecem à sua frente todos os dias. (Registrar a data e o local, sobretudo quando estiver fora de casa, é recomendável.)

A nossa conversa poderia terminar neste ponto. Mas sou da roça e falo muito. Assim, com a devida permissão do leitor, vou um pouco mais adiante e, no que segue, apresento mais dois comentários.

2.1. Ampliando a abrangência da escrita diarística.

Caso o leitor já esteja habituado com a escrita diarística (sensu Lejeune 2013), sua ou de outrem, experimente anotar também (em algumas linhas) o roteiro e as cenas principais dos seus sonhos. Não precisa fazer isso todo dia. Concentre-se nos sonhos mais impressionantes – i.e., aqueles que ainda estão vivos quando você desperta [1].

Registre a correlação que vê ou pressupõe ver entre o conteúdo do sonho (e.g., cenas ou personagens específicos) e as suas experiências em vigília (e.g., cenas que viveu no dia anterior ou em dias recentes ou mesmo a mistura dessas cenas com lembranças remotas). Em decorrência de algum reencontro inesperado, por exemplo, é comum a gente reavivar em sonho cenas ou personagens que estavam no subsolo, digamos assim.

Com a prática, o leitor em pouco tempo poderá se dar conta de que o enredo dos sonhos noturnos abriga padrões, muitos dos quais nós podemos identificar e entender por conta própria. A quantidade e a qualidade das combinações presentes nesses padrões irão lhe surpreender. Não há nada de novo ou de misterioso nisso. Veja: Sonhos são objetos de estudo e reflexão há décadas. Como anotou Kleitman (1975, p. 241):

Desde os tempos imemoriais, os sonhos vêm perturbando as horas de vigília e as de sono dos homens. Essas experiências alucinatórias têm inspirado da mesma forma os adivinhos e os psiquiatras e seus conteúdos bizarros, interpretados variadamente como visões proféticas e chaves da personalidade, são o assunto de considerável conjunto de literatura. O valor científico, mesmo das mais recentes contribuições a essa literatura, entretanto, é de qualificação difícil: a única testemunha do sonho é o próprio sonhador. A mesma limitação entrava o investigador que queira pesquisar o processo do sonho, em oposição ao conteúdo dos sonhos. Somente a pessoa que dormia é que pode, ao despertar, testemunhar o fato de ter sonhado. Se ela afirma que não sonhou, pode ser que tenha esquecido seu sonho.

Por fim, segue o quarto e derradeiro comentário. Não sem antes chamar a atenção para o fato de que, no âmbito da biologia, como e por que são perguntas distintas e igualmente cabíveis a todo e qualquer item fenotípico (morfológico, fisiológico, comportamental).

3. REPOUSO, SONO, SONHO.

Afinal, por que dormimos e sonhamos?

Para início de conversa, é bom ressaltar que repouso, sono e sonho não representam a mesma coisa. A cada ciclo de 24 horas (ditos ciclos circadianos), costumamos dormir e sonhar. O mesmo acontece com inúmeros outros animais, incluindo os demais primatas e os mamíferos em geral. Em seres humanos, mais especificamente, o ciclo de vigília e sono leva cerca de uma década e meia para alcançar a conhecida proporção de 2:1. Nas palavras de Teitelbaum (1969, p. 104-5):

Quando o comportamento voluntário se desenvolve, o cérebro tem de permanecer desperto por períodos cada vez mais longos. Com efeito, se medirmos o ciclo de sono e vigília do bebê, [...], esse processo é claramente revelado: durante as primeiras seis semanas, após o nascimento, o bebê dorme por períodos quase idênticos (16 em cada 24 horas), mas cada vez mais o sono de que ele necessita é obtido durante a noite. Gradualmente, o requisito de sono acentua-se, habilitando o cérebro a permanecer desperto por períodos cada vez mais longos, durante o dia, até que, entre os 14 e 18 anos de idade foi obtido um aumento quádruplo no período de vigília: a proporção vigília-sono de 1:2 na criança dá lugar a uma proporção de 2:1 no adulto. Um sono de oito horas por noite é agora suficiente, deixando o cérebro desperto o resto do tempo. Uma vigília de escolha sobrepôs-se a uma vigília de necessidade.

Ocorre que dormir e sonhar não são apenas imposições imediatas da nossa fisiologia – i.e., não são meras exigências de um corpo, digamos, exausto ou dolorido. Dormir e sonhar, claro, são processos que atendem a essas demandas fisiológicas, mas não se esgotam nem se restringem a elas.

Além do aspecto exclusivamente funcional das explicações para esses dois fenômenos (e.g., o papel de alguns hormônios ou de alguns centros nervosos), seria um erro grave ignorar o fato de que dormir e sonhar têm também um aspecto histórico. Afinal, há um componente evolutivo em todo item fenótipo, quer se trate de um item adaptativo ou não adaptativo (penduricalhos etc.) [2].

No caso do sono (e dos sonhos), por exemplo, como acabamos de ver, o fenômeno ocupa uma parcela expressiva do nosso tempo de vida. Nas palavras de Affanni & Cervino (2004, p. 1033):

[U]m homem de 60 anos passou aproximadamente 20 anos de sua vida dormindo e cerca de três anos sonhando, o que significa que esteve dormindo durante o equivalente a quatro meses de cada ano de sua vida.

Os adeptos de explicações meramente fisiológicas costumam frisar que o sono e o sonho são processos restauradores – sem eles, o sistema nervoso entraria em colapso e o indivíduo simplesmente sucumbiria. Nas palavras de Guyton & Hall (2006, p. 740):

Uma das primeiras teorias sobre o sono postulava que as áreas excitatórias da parte superior do tronco cerebral, o sistema ativador reticular, simplesmente se fatigavam durante o dia de vigília, tornando-se, em consequência, inativas.

A limitação dessa e de outras explicações semelhantes é a mesma de todas as explicações fisiológicas que ignoram a história evolutiva do item em questão. O fato de que estamos a lidar com processos restauradores, digamos assim, não significa que foi por causa da restauração em si que os processos de dormir e sonhar se estabeleceram em qualquer linhagem ancestral [3].

4. CODA.

Mantendo a conversa restrita ao universo das hipóteses evolutivas, é possível distinguir entre hipóteses adaptativas e não adaptativas. Não vou me estender muito mais, mas deixo aqui registrado um breve comentário sobre o meu ponto de vista favorito: Em um possível contexto adaptativo, os sonhos noturnos poderiam servir como simulações, uma espécie de treino. Digo: sonhar poderia ser um modo de combinar lembranças de diferentes personagens e cenários, tentando encontrar e testando possíveis soluções para os problemas do dia a dia.

Por fim, dito isso, deixo aqui uma sugestão prática que me parece ser, ao mesmo tempo, um teste e um possível desdobramento prático da hipótese referida acima. Eis a sugestão: Sempre que estiver às voltas com um problema mais ou menos grave (e.g., uma tarefa difícil ou um trabalho escolar atrasado), não fique queimando as pestanas até tarde da noite. O melhor expediente para encontrar uma saída, arrisco dizer, seria o seguinte: (1) Tente dormir mais cedo; (2) Pressupondo que certos elementos do problema venham a integrar o enredo de algum sonho durante a noite, é bem possível que os personagens e as cenas do sonho tentem construir uma solução para o problema; e (3) No dia seguinte, acorde mais cedo e, agora em vigília, volte a se debruçar sobre o problema.

Caso (1) e (2) tenham de fato ocorrido, reflita e veja se a suposta solução construída durante o sonho é viável. No fim das contas, boa parte daquilo que na noite anterior parecia ser um beco sem saída ou um bicho de sete cabeças, poderá vir a ser equacionado e, quem sabe, solucionado.

Não tem mágica. Seria apenas a gente tentando usar a racionalidade para entender e, quem sabe, usar melhor certas entidades do nosso corpo (cérebro, mente, sonhos etc.). Entidades que evoluíram em meio ao entrechoque de forças cegas e oportunistas [4].

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NOTAS.

[*] O presente artigo foi extraído e adaptado do livro A força do conhecimento & outros ensaios: Um convite à ciência (em processo de finalização). Sobre a campanha Pacotes Mistos Completos (por meio da qual é possível adquirir, sem despesas postais, os quatro livros anteriores do autor), ver o artigo Ciência e poesia em quatro volumes
Para adquirir algum volume específico ou para mais informações, faça contato com o autor pelo endereço meiterer@hotmail.com. Para conhecer outros artigos ou obter amostras dos livros anteriores, ver aqui.

[1] Já conheci gente que dizia que nunca sonhava. Não se engane: Todos nós sonhamos, ainda que nem sempre tenhamos um sonho vívido ou de algum modo impressionante. O que de fato ocorre é que muita gente não se importa com os próprios sonhos, deixando esse material nas mãos de especialistas – leia-se: os feiticeiros das tribos de outrora ou os psicanalistas de hoje, sejam eles psicanalistas estudiosos, sejam eles pilantras ou gaiatos que pululam no mundo virtual.

[2] Para detalhes, discussão e referências, ver Costa (2019).

[3] Em tempo: a duração dos períodos de sono já é conhecida para dezenas de linhagens de animais, incluindo invertebrados, peixes, anfíbios, répteis, aves e mamíferos – ver, e.g., Campbell & Tobler (1984).

[4] Para uma introdução à fisiologia do sono, ver, e.g., Cingolani & Houssay (2004) ou Guyton & Hall (2006); para um exemplo de análise evolutiva envolvendo processos mentais, Mashour & Alkire (2013); sobre alguns conceitos evolutivos referidos neste artigo (adaptação, penduricalhos etc.), Costa (2019).

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REFERÊNCIAS CITADAS.

++ Affanni, JM & Cervino, CO. 2004. Fisiologia da vigília e do sono. In: Cingolani & Houssay (2004).
++ Campbell, SIS & Tobler, I. 1984. Animal sleep: A review of sleep duration across phylogeny. Neuroscience & Biobehavioral Reviews 8: 269-300.
++ Cingolani, HE & Houssay, AB, orgs. 2004 [2000]. Fisiologia humana de Houssay, 7ª ed. P Alegre, Artmed.
++ Costa, FAPL. 2019. O que é darwinismo. Viçosa, Edição do Autor.
++ Guyton, AC & Hall, JE. 2006. Tratado de fisiologia médica, 11ª ed. SP, Elsevier.
++ Kleitman, N. 1975 [1960]. Padrões de sono. In: Scientific American (1975).
++ Mashour, GA & Alkire, MT. 2013. Evolution of consciousness: Phylogeny, ontogeny, and emergence from general anesthesia. Proceedings of the National Academy of Sciences 110: 10357-64.
++ Peterson, LR. 1975 [1966]. Memória a curto prazo. In: Scientific American (1975).
++ Scientific American, ed. 1975 [1972]. Psicobiologia: As bases biológicas do comportamento. RJ, LTC.
++ Teitelbaum, P. 1969 [1967]. Psicologia fisiológica. RJ, Zahar.

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