02 junho 2023

O controle do fogo nos converteu não só em cozinheiros, mas também em tagarelas

Felipe A. P. L. Costa [*].

1. O CONTROLE DO FOGO.

Uma tecnologia que está conosco desde sempre, e cujo advento se deu provavelmente por imitação – após milhares de anos de convivência –, é o controle do fogo [1]. De posse dela, nossos ancestrais se tornaram cozinheiros.

Os impactos e os desdobramentos do novo hábito foram amplos e duradouros. O cozimento diminuiu o tempo gasto no forrageio e na ingestão de itens alimentares; barateou o custo de itens valiosos (e.g., carne de caça), incentivando a partilha e estreitando laços sociais. A ingestão de alimentos cozidos, por sua vez, elevou o orçamento energético, sendo acompanhado de ajustes evolutivos (e.g., a expansão do cérebro e a redução do intestino).

Mas o controle do fogo não alterou apenas e tão somente a anatomia, os hábitos e a dieta. Alterou também a dinâmica mental dos indivíduos e a agenda cultural dos grupos.

Falando sobre o que acontece em torno das fogueiras noturnas, por exemplo, Wiessner (2014, p. 14027; tradução livre) anotou:

“Irei explorar aqui como o tempo proporcionado pelas horas à luz do fogo cria um espaço e um contexto para: (i) uma compreensão mais acurada dos pensamentos e das emoções dos outros, em especial dos que não estão presentes; (ii) estabelecer elos dentro e entre grupos; e (iii) geração, regulação e transmissão de instituições culturais.”

2. RODAS DE CONVERSA NOTURNAS.

Fogueiras noturnas estendem o dia, permitindo a condução de conversas em um novo contexto.

Ainda segundo Wiessner (2014, p. 14027; tradução livre):

“A conversa durante o dia gira em torno de coisas práticas e das fofocas correntes; as atividades à luz do fogo giram em torno de conversas que evocam a imaginação, ajudam as pessoas a lembrar e a entender os outros em suas interconexões, cicatrizam as rugas do dia e transmitem informações sobre instituições culturais que estabelecem regularidades de comportamento e a confiança correspondente. O apetite por reuniões à luz do fogo, visando conversas íntimas e histórias noturnas, permanece conosco até hoje.”

Imagine agora esse mesmo cenário durante a pré-história. Pois o controle do fogo e as rodas de conversa noturnas antecederam o despertar e o desenvolvimento de um novo hábito humano: o pensamento especulativo (filosofia, metafísica etc.). Filosofar, como muitos de nós já sabemos, é um hábito poderoso, tanto no plano individual como em termos sociais.

No fim das contas, as rodas de conversa noturnas representaram uma janela de oportunidades para os hominídeos. Mais adiante, a expansão numérica dos grupos mais sofisticados e mais bem-sucedidos (leia-se: grupos constituídos não só de cozinheiros, mas também de cozinheiros tagarelas), empurraria a história humana para o outro lado da moeda: o parasitismo social – leia-se: a escravização de prisioneiros de guerra e a exploração sistemática do trabalho alheio, como nós veremos mais adiante.

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NOTAS.

[*] O presente artigo foi extraído e adaptado do livro A força do conhecimento & outros ensaios: Um convite à ciência (em processo de finalização). Sobre a campanha Pacotes Mistos Completos (por meio da qual é possível adquirir, sem despesas postais, os quatro livros anteriores do autor), ver o artigo Ciência e poesia em quatro volumes. Para adquirir algum volume específico ou para mais informações, faça contato diretamente com o autor pelo endereço meiterer@hotmail.com. Para conhecer outros artigos ou obter amostras dos livros anteriores, ver aqui.

[1] O controle do fogo é um exemplo de inovação tecnológica bem anterior ao surgimento da linhagem H. s. sapiens (ver Roebroeks & Villa 2011). De acordo com a hipótese do cozimento (em port., ver Wrangham 2010), cozinhar (sobretudo raízes, tubérculos e outras estruturas do corpo das plantas ricas em carboidratos) elevou as taxas de extração de calorias dos itens ingeridos. A partir de então, uma mesma quantidade de energia podia ser obtida a intervalos de tempo menores. O que por si só teria tido consequências profundas e duradouras na ecologia dos hominídeos, incluindo alterações no orçamento doméstico (e.g., atividades envolvidas com a manutenção do metabolismo corporal passaram a ser atendidas em períodos de tempo mais curtos) e no comportamento de forrageio (e.g., menos tempo passou a ser gasto na procura de itens alimentares, sobrando mais para outras atividades). Em um contexto de competição intergrupal, os grupos mais habilidosos no controle e no uso de tal inovação devem ter usufruído de alguma vantagem (e.g., redução nos níveis de mortalidade, elevação no tamanho médio do grupo e colonização de novos hábitats até então inexplorados) em relação àqueles grupos que não sabiam cozinhar.

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REFERÊNCIAS CITADAS.

++ Roebroeks, W. & Villa, P. 2011. On the earliest evidence for habitual use of fire in Europe. Proceedings of the National Academy of Sciences 108: 5209-14.
++ Wiessner, PW. 2014. Embers of society: Firelight talk among Ju/'hoansi Bushmen. Proceedings of the National Academy of Sciences 111: 14027-35.
++ Wrangham, RW. 2010 [2008]. Pegando fogo. RJ, Jorge Zahar.

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