04 outubro 2023

Riqueza, diversidade e a curva do coletor


Felipe A. P. L. Costa [*].

Um dos padrões biogeográficos mais bem conhecidos é o aumento progressivo que ocorre na diversidade de espécies à medida que nos deslocamos dos polos para o equador. A variedade de espécies é maior nos trópicos, ao mesmo tempo em que as comunidades de zonas temperadas e polares tendem a ser dominadas por um número reduzido de espécies.

Há, por exemplo, muito mais espécies de árvores crescendo em um hectare de floresta tropical do que em um hectare de floresta temperada [1]. Resultados semelhantes têm sido obtidos nos mais diferentes tipos de hábitats, envolvendo uma ampla variedade organismos – de aves, borboletas e formigas a peixes de água doce e moluscos marinhos, passando por ervas rasteiras e fungos que vivem no solo.

1. RIQUEZA E DIVERSIDADE DE ESPÉCIES.

A palavra diversidade abrange, na realidade, duas grandezas distintas: riqueza e abundância relativa de espécies. A primeira diz respeito ao número de espécies que vivem em determinado hábitat, enquanto a segunda tem a ver com o tamanho relativo de suas populações. Quando falamos estritamente em riqueza, estamos nos referindo ao número de espécies presentes em um lugar, sem qualquer preocupação com a abundância relativa de suas populações. Duas comunidades podem ser igualmente ricas, ainda que em proporções completamente diferentes.

Um exemplo. Sejam duas comunidades, A e B, cada uma delas formada por 10 espécies de borboletas. Embora igualmente ricas, elas podem diferir bastante em termos de abundância relativa. Considere uma situação extrema: na comunidade mais equitativa possível, todas as 10 espécies seriam igualmente abundantes (i.e., cada uma contribuiria com o mesmo percentual – 10%, no caso). Já na menos equitativa, 91% dos indivíduos pertenceriam a uma única espécie, restando uma parcela mínima (1%) para cada uma das nove restantes.

Além de riqueza e abundância relativa, duas comunidades podem diferir também em termos de composição. Leia-se: elas podem ser igualmente ricas e equitativas, mas abrigar conjuntos de espécies parcial ou inteiramente distintos. Cada uma das comunidades de borboletas mencionadas acima poderia ser formada por 10 espécies exclusivas. Neste caso, (1) nenhuma das espécies encontradas em uma das comunidades seria encontrada na outra; e (2) a soma das espécies presentes nas duas comunidades duplicaria o número de espécies presentes em cada uma delas em separado. Na maioria das vezes, porém, as comunidades tendem a partilhar de algumas espécies em comum, notadamente quando ocupam hábitats próximos e semelhantes. Há um variado leque de possibilidades, mas podemos caracterizar a situação medindo o grau de similaridade entre as comunidades de interesse.

1.1. Agrupamentos e índices.

Comparar e classificar comunidades de acordo com a composição de espécies são duas preocupações antigas da ecologia [2]. Há uma série de técnicas e índices disponíveis para isso (e.g., índices de similaridade). Uma das razões por trás dessa variedade metodológica são as sutilezas do mundo real. Vejamos um exemplo.

Sejam duas comunidades de tamanhos distintos, X e Y, a primeira sendo constituída de 20 espécies e a segunda, de 10. Para começo de conversa, se as comunidades são de tamanhos sabidamente desiguais, as parcelas em comum entre as duas não podem ser as mesmas. No caso acima: suponhamos que 10% (= 2) das espécies presentes em X também estejam presentes em Y. Ora, como esta última abriga apenas a metade das espécies presentes na primeira, o percentual das espécies de Y que ocorrem em X já não é o mesmo – serão 20%, e não 10%. A comparação entre comunidades de tamanhos desiguais dá origem, portanto, a dois índices de similaridade, e não apenas um – i.e., o percentual que indica o que X tem em comum com Y não será o mesmo que indica o que Y tem em comum com X.

Mas as diferenças de riqueza estão longe de representar o maior desafio. Questões ainda mais problemáticas surgem quando a comparação leva em conta a abundância relativa das espécies. Uma coisa é saber que duas comunidades têm 10% de espécies em comum, todas ou quase todas elas sendo representadas por populações rarefeitas. Outra coisa é descobrir que os mesmos 10% em comum são formados por espécies com as populações mais abundantes. Entre os extremos, mais uma vez, há um amplo e variado leque de combinações possíveis.

Questões adicionais, como o método de amostragem, devem ser levadas em conta pelo pesquisador na hora de escolher o índice mais apropriado. Como já foi dito, índices diferentes foram desenvolvidos em resposta a demandas distintas e, em último caso, a necessidades específicas. Ainda assim, no entanto, todos apontam em uma mesma direção: quanto maior a semelhança na composição de espécies, maior o grau de similaridade entre as comunidades em questão [3].

2. EM BUSCA DE ESTIMATIVAS CONFIÁVEIS.

A depender do parâmetro utilizado (riqueza, abundância relativa, composição), diferentes combinações de resultados são possíveis, como o leitor já deve ter percebido.

Por exemplo, duas comunidades podem ser igualmente ricas e de composição bastante semelhante, mas ainda assim diferir em termos de abundância relativa das espécies presentes. Não é à toa que os índices usados costumam incorporar mais de uma variável em suas fórmulas. Veja o caso do chamado Índice de Shannon-Weaver (H’), talvez o mais utilizado em ecologia: a diversidade de espécies de uma comunidade depende de duas variáveis, riqueza e abundância relativa [4]. Outros índices adotam procedimentos parecidos.

Neste ponto, cabe ressaltar o seguinte: riqueza e abundância relativa são parâmetros essencialmente virtuais. O que significa isso? Significa que raramente é possível atribuir um valor para cada um desses parâmetros por meio de contagem direta. Na prática, o que de fato ocorre é que o pesquisador deve se contentar com estimativas, que são valores aproximados, obtidos por meio de amostragem e, portanto, sujeitos a erros e imprecisões.

Trocamos assim a nossa pergunta inicial, aparentemente simples e direta (“Quantas espécies vivem aqui?“), por uma preocupação de natureza tipicamente metodológica. Algo do tipo: “Como obter estimativas fidedignas e confiáveis para a riqueza e a abundância relativa das espécies que vivem em um dado hábitat?”.

Responder a esta pergunta não é nenhum bicho de sete cabeças, mas também não é algo exatamente trivial. Basta dizer que a questão é debatida na literatura ecológica há mais de meio século [5].

Uma das dificuldades para se responder a esta pergunta tem a ver com a falta de a falta de independência das duas variáveis, riqueza e tamanho da amostra. Visto que os índices de riqueza costumam variar em função do número de indivíduos amostrados ou do esforço de amostragem (e.g., tempo gasto ou a área percorrida pelo observador). Para contornar problemas desse tipo, os estudiosos procuram calibrar suas amostras. Um jeito de fazer isso envolve a construção da chamada curva do coletor.

3. A CURVA DO COLETOR.

O que é e como se constrói uma curva do coletor? Trata-se de uma representação gráfica. Para tanto, lançamos mão de um par de eixos ditos ortogonais (ou cartesianos). No eixo horizontal, colocamos a escala que mede o esforço de amostragem (e.g., indivíduos capturados, tempo ou área amostrada). No eixo vertical, colocamos a escala que indica o número de espécies encontradas. Em seguida, admitindo que a parte mais trabalhosa (i.e., obter as amostras) foi devidamente equacionada e resolvida, distribuímos os valores obtidos no espaço criado por esse par de eixos. Ao final do processo, se tudo funcionar direitinho, obteremos uma curva do coletor (ver a figura que companha este artigo).

Inúmeras curvas desse tipo foram e continuam a ser construídas por muitos pesquisadores trabalhando com os mais variados grupos de organismos, em diferentes tipos de hábitats. Embora os detalhes possam variar tremendamente, há uma notável convergência no aspecto geral das curvas. E as razões para isso não são difíceis de entender.

No início do processo de amostragem, por exemplo, o número de espécies novas (leia-se: ainda não capturadas) é bem superior ao de espécies já capturadas. Por conta disso, a trajetória da curva costuma ter um primeiro segmento fortemente ascendente, indicando que, de início, a inclusão de um número crescente de indivíduos (eixo horizontal) implica em um número crescente de espécies (eixo vertical).

Todavia, à medida que o trabalho de campo prossegue, o número de espécies ainda não amostradas tende a declinar. Chega um momento a partir do qual a maioria dos indivíduos amostrados passa a ser classificada como repetição (leia-se: indivíduos de espécies já amostradas antes). Assim, após uma fase inicial de crescimento, a curva vai perdendo força, passando a crescer cada vez mais lentamente, até alcançar e se estabilizar em uma região de platô (chamado também de assíntota da curva), indicando que há um ponto a partir do qual o número de espécies permanece mais ou menos inalterado, ainda que a amostragem prossiga.

3.1. Interpretando a curva.

Em termos metodológicos, o advento de um platô pode ser interpretado como o momento mais indicado para suspender o trabalho de amostragem naquele hábitat. Isso porque à medida que nós nos aproximamos do número total de espécies presentes (variável cujo valor real é desconhecido e, a rigor, assim costuma permanecer), diminuem bastante as chances de encontrar espécies novas. Em certo sentido, portanto, o esforço de amostragem se torna cada vez mais improdutivo.

O platô então costuma ser adotado como a melhor estimativa da riqueza (ou diversidade) local, entendida aqui como a riqueza (ou diversidade) de espécies em determinado hábitat. Nada impede, porém, que os esforços de amostragem sejam transferidos para hábitats vizinhos. Quando isso ocorre, a trajetória da curva tende a reassumir o perfil ascendente típico do início do processo, embora isso agora ocorra a partir de um patamar inicial diferente de zero. Um exemplo do tipo de resultado que pode ser obtido com essas amostragens sequenciais (no caso, envolvendo dois hábitats distintos), pode ser visto na figura que acompanha este artigo.

Na figura, como foi dito antes, o eixo horizontal (Esforço) representa o esforço de amostragem, enquanto o eixo vertical (N) indica a riqueza de espécies. Quando resultados assim estão disponíveis para uma série de comunidades locais (A, B etc.), torna-se então possível combinar os diversos valores locais obtidos em uma medida da riqueza (ou diversidade) regional.

4. UM EXEMPLO DO MUNDO REAL: SOLANUM.

Dependendo de como o processo de amostragem é conduzido, podemos obter uma série de resultados interligados (hierarquizados). Eis aqui um exemplo numérico, envolvendo valores reais da riqueza de espécies para um grupo de plantas de talvez sejam familiares ao leitor. Estou a me referir a plantas do gênero Solanum.

Pois bem. Ao menos 35 espécies de Solanum já foram encontradas no município de Juiz de Fora MG, 21 das quais estavam a crescer na Reserva Biológica do Poço D’Anta (RPA). A flora juiz-forana, por sua vez, é um subconjunto das 51 espécies registradas para a Zona da Mata mineira [6]; as quais, evidentemente, integram também a flora mineira, com uma riqueza estadual estimada em ao menos 100-110 espécies; as quais, enfim, fazem parte da flora brasileira, contando esta com algo como 350-400 espécies de Solanum.

Estes números foram obtidos na década de 1990 e, claro, estão sujeitos a revisões. Mas a nossa preocupação aqui é ecológica e esses números servem para ilustrar questões importantes que orientam o estudo de comunidades [7].

Para início de conversa, o leitor deve concordar que há um aumento gradativo no número de espécies à medida que ampliamos o foco geográfico ou o tamanho da área de amostragem. Esse aumento, no entanto, é bem inferior ao que seria esperado se fizéssemos uma extrapolação direta com base apenas nas dimensões das áreas amostradas diretamente – i.e., de baixo para cima. Vejamos.

4.1. Há redundância nas listas de espécies.

Assim, levando em conta a densidade de espécies de Solanum encontradas na RPA (21 espécies em 2,77 km^2 de área), poderíamos esperar números bem maiores em todos os níveis hierárquicos superiores (e.g., município, região geográfica do estado, estado, país). Se a densidade local fosse mantida para todo o município de Juiz de Fora (~1,5 mil km^2), deveriam ser contabilizadas mais de 11 mil espécies, e não as 35 registradas; para o estado de Minas Gerais (~5,884 × 10^5 km^2), seriam quase 4,5 milhões de espécies, e não as 100-110 registradas.

Moral da história: A extrapolação direta leva a valores astronômicos e claramente absurdos. Por que essa diferença tão grande? Qual seria, afinal, a razão para tamanho disparate entre o esperado e o observado?

O principal componente da resposta tem a ver com a elevada redundância que há na composição de comunidades locais. E a razão por trás disso é que as espécies com uma ampla área de distribuição geográfica terminam fazendo parte de inúmeras comunidades locais. A maioria das espécies registradas em Juiz de Fora, por exemplo, ocorre em outros municípios da Zona da Mata mineira; muitas delas já foram encontradas em outras regiões do estado e algumas são encontradas em outros estados.

5. CODA.

O jeito ecológico de lidar com a questão pode ser resumido pelas seguintes perguntas: (1) As espécies de Solanum encontradas na RPA, por exemplo, são apenas e tão somente uma amostra aleatória do total de espécies presentes em Juiz de Fora ou elas, de algum modo, foram reunidas e selecionadas ao longo do tempo por processos ecológicos organizadores? Em caso afirmativo, que processos seriam esses?; e (2) Generalizando, de que modo e até que ponto, a composição de comunidades locais é influenciada pela disponibilidade regional de espécies?

Não sei dizer ao certo. Mas posso assegurar que foram questões intrigantes como essas que ajudaram a converter o estudo da organização de comunidades em uma das áreas mais efervescentes da pesquisa científica contemporânea [8].

*

NOTAS.

[*] Versão original deste artigo, intitulada ‘Medindo a diversidade’, foi publicada na revista eletrônica La Insignia, em 15/3/2007. Sobre a campanha Pacotes Mistos Completos (por meio da qual é possível adquirir, sem despesas postais, os quatro livros anteriores do autor), ver o artigo Ciência e poesia em quatro volumes. Para adquirir algum volume específico ou para mais informações sobre as obras, faça contato com o autor pelo endereço felipeaplcosta@gmail.com. Para conhecer outros artigos ou obter amostras dos livros anteriores, ver aqui.

[1] Estamos a tratar aqui de diferenças no número de espécies, não no número de árvores individuais. Um hectare (100 × 100 m) de floresta temperada pode ter a mesma quantidade de árvores por unidade de área que uma floresta tropical; esta última, no entanto, terá sempre uma variedade de árvores maior ou muito maior do que aquela.

[2] Para uma introdução às técnicas de agrupamento, ver Valentin, JL. 2000. Ecologia numérica. RJ, Interciência. Eis um comentário do autor (Valentin 2000, p. 53):

Agrupar objetos consiste em reconhecer entre eles um grau de similaridade suficiente para reuni-los num mesmo conjunto. Os métodos ecológicos de agrupamento devem poder destacar os grupos de objetos similares entre si, deixando de lado os pontos intermediários que permaneçam geralmente entre os grupos quando a amostragem é suficientemente extensa. A não ser que o meio físico seja fortemente descontínuo e que a amostragem tenha sido realizada de cada lado de um forte gradiente, o ecólogo terá geralmente dificuldade em definir nitidamente grupos de amostras ou de espécies, em virtude do conceito de continuum que caracteriza os ecossistemas.

[3] Sobre coeficientes de similaridade, ver, e.g., Wolda, H. 1981. Similarity indices, sample size and diversity. Oecologia 50: 296-302; em port., além da referência citada acima, ver Pinto-Coelho, RM. 2000. Fundamentos em ecologia. P Alegre, Artmed

[4] Sobre a quantificação da diversidade, ver Martins, FR & Santos, FAM. 1999. Técnicas usuais de estimativa da biodiversidade. Holos 1: 236-67; e Magurran, AE. 2004. Measuring biological diversity. Oxford, Blackwell [edição brasileira disponível]; para uma análise crítica, v. Jost, L. 2006. Entropy and diversity. Oikos 113: 363-75. O valor do índice de diversidade de Shannon-Weaver pode ser calculado por meio da seguinte equação: H’ = Σ p(i) × log p(i), onde H’ representa o índice, p(i) é a proporção de indivíduos da espécie i em relação ao total de indivíduos amostrados, Σ (letra grega maiúscula sigma) indica soma e log indica logaritmo decimal. A rigor, o valor de H’ mede o grau de incerteza associado à identidade das espécies contidas em uma amostra, e não a variedade de espécies em si. Quanto maior o valor de H’, maior a incerteza, não necessariamente a variedade de espécies.

[5] Ver Fisher, RA & mais 2. 1943. The relation between the number of species and the number of individuals in a random sample of an animal population. Journal of Animal Ecology 12: 42-58.

[6] Solanum é um dos maiores gêneros de plantas vasculares, abrigando ~1,5-2,0 mil espécies. Entre as espécies que o leitor talvez conheça bem, caberia citar aqui ao menos oito: batatinha-inglesa (S. tuberosum), berinjela (S. melongena), fruta-de-lobo (S. lycocarpum), jiló (S. aethiopicum), juá-bravo (S. viarum e afins), jurubeba (S. paniculatum e afins), tomate (S. lycopersicum) e tomate-de-árvore (S. betaceum). Embora o gênero seja cosmopolita, a maioria das espécies é encontrada nos Neotrópicos, notadamente no norte dos Andes e no sudeste do Brasil. MG é um estado particularmente rico em plantas desse gênero e parece ter sido o centro de irradiação de alguns grupos. Sobre a flora de Solanum da Zona da Mata mineira, ver Costa, FAPL. 1999. New records of larval hostplants for Ithomiinae butterflies (Nymphalidae). Revista Brasileira de Biologia 59: 455-9.

[7] Ver, e.g., o artigo, Por que não existem borboletas em Marte?, publicado neste GGN, em 15/5/2018.

[8] Para um apanhado geral, ver, e.g., Ricklefs, RE & Schluter, D, eds. 1993. Species diversity in ecological communities. Chicago, UCP; sobre o processo de estruturação de comunidades, Chase, JM. 2003. Community assembly: when should history matter? Oecologia 136: 489-98; Mouquet, N & mais 3. 1993. Community assembly time and the relationship between local and regional species richness. Oikos 103: 618-26; e Storch, D & mais 2. 2005. Untangling an entangled bank. Science 307: 684-6.

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