26 outubro 2006

Desenredo

Adélia Prado

Grande admiração me causam os navios
e a letra de certas pessoas que esforço por imitar.

Dos meus, só eu conheço o mar.

Conto e reconto, eles dizem ‘anh’.

E continuam cercando o galinheiro de tela.

Falo de espuma, do tamanho cansativo das águas,

eles nem lembram que tem o Quênia,

nem de leve adivinham que estou pensando em Tanzânia.

Afainosos me mostram o lote: aqui vai ser a cozinha,

logo ali a horta de couve.

Não sei o que fazer com o litoral.

Fazia tarde bonita quando me inseri na janela, entre meus tios,

e vi o homem com a braguilha aberta,

o pé de rosa-doida enjerizado de rosas.

Horas e horas conversamos inconscientemente em português

como se fora esta a única língua do mundo.

Antes de depois da fé eu pergunto cadê os meus que se foram,

porque sou humana, com capricho tampo o restinho de molho na panela.


Saberemos viver uma vida melhor que esta,

quando mesmo chorando é tão bom estarmos juntos?

Sofrer não é em língua nenhuma.

Sofri e sofro em Minas Gerais e na beira do oceano.

Estarreço de estar viva. Ó luar do sertão,

ó matas que não preciso ver pra me perder,

ó cidades grandes, estados do Brasil que amo como se os tivesse inventado.

Ser brasileira me determina de modo emocionante

e isto, que posso chamar de destino, sem pecar,

descansa meu bem-querer.

Tudo junto é inteligível demais e eu não suporto.

Valha-me noite que me cobre de sono.

O pensamento da morte não se acostuma comigo.

Estremecerei de susto até dormir.

E no entanto é tudo tão pequeno.

Para o desejo do meu coração

o mar é uma gota.


Fonte: Mello, M. A., org. 2003.
Poesia sempre. RJ, José Olympio.

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