06 maio 2008

À plena voz

Vladímir Maiakóvski

Respeitáveis camaradas
herdeiros e descendentes!
Deste tempo revolvendo
as fezes petrificadas,
estudando estes nossos dias trevosos,
talvez
não saibas
quem fui eu.
Talvez,
esmiuçando os problemas de hoje,
exibindo erudição,
um sábio
vos diga
que fui outrora
um cantor d’água fervida,
inimigo ferrenho
d’água da bica.
Professor!
Tire esses óculos-bicicletas!
Eu mesmo falarei
de meu tempo
e de mim.
Eu, inspetor sanitário,
carregador d’água,
fui chamado, mobilizado
pela Revolução,
parti para o front,
para longe dos jardins senhoriais da poesia,
caprichosa dama.
Ela tinha um belo jardim:
água,
ar,
um coração,
um leito.

“Desci a meu jardinzinho
Para colher o rosmaninho”.
Tais versos –
frisados a Mitreikas
cacheados a Krudreikas –
jorram de algumas bocas,
em outras são como baba.
Que o diabos os leve!
Aos suspiros não dão tréguas,
bandolinam às sacadas:
Tara-tina, tara-tina,
ten...
Pouco honroso seria,
se entre tais rosas
minha estátua surgisse,
na praça
onde cospem tuberculosos,
a meretriz,
a sífilis.
Eu,
de Agitprop
tenho a boca repleta.
Poderia fornecer-vos
romances aos metros;
seria mais fácil
e pagam melhor.
Mas eu me continha,
pisando a garganta
de minha própria canção.
Escutai,
camaradas herdeiros,
ao agitador,
ao locutor em chefe!
Abafando
a torrente de poemas,
passarei por cima
de líricos livrinhos
para falar aos vivos
como se vivo fosse.

Chegarei até vós
no comunismo longínquo,
mas não
como os cantores saudosistas
à moda de Iessiênin.
Meu verso chegará
através do cume dos séculos,
por cima das cabeças
de poetas e governos.
Meu verso chegará,
não como chega a seta lírica de Cupido,
nem como velha moeda
às mãos do numismata,
nem como a luz
das estrelas extintas.
Meu verso
com esforço
irromperá
de sob o peso dos anos
e grosseiro,
pesado,
gritante,
há de chegar,
como a nossos dias chegou
o aqueduto de Roma,
tal como o fizeram os escravos.
Entre pilhas de livros,
túmulos de poemas,
ao descobrir
o ferro de minhas estrofes,
vós, com respeito, as apalpareis,
como a velhas armas,
perigosas.
Eu,
com a palavra,
não costumo acariciar
ouvidos;
nem ciciar
semi-obscenidades
a orelhinhas virgens
escondidas,
sob cabelos inocentes.
Minhas páginas desfilando
como tropas,
as linhas do front
eu as passos em revista.
Os versos se perfilam
pesados como chumbo,
prontos para morrer,
ou para a glória imortal.
Os poemas postados
como um canhão atrás doutro,
apontam à distância,
com seus títulos
de letras enormes.
Os ditos mordazes,
minhas armas preferidas,
ei-los prontos,
sofreado o cavalo,
a lança em riste,
com rimas agudas,
prestes a galopar
lançando um grito de guerra.
E todas essa tropas
até os dentes armadas,
que vinte anos de vitórias
atravessaram,
as ti as dou,
até a última folha,
a ti,
planeta proletário.
Todo inimigo
da classe operária
é desde muito
meu inimigo jurado.
Tivemos
sob a bandeira vermelha,
anos de sacrifício,
dias de fome.
Mas,
cada tomo de Marx,
nós o abríamos
como se fossem janelas,
e, mesmo sem ler,
saberíamos
onde ficar,
de que lado
lutar.
Nós,
a dialética,
não aprendemos em Hegel.
No fragor dos combates
entrava-nos ela
pelos versos,
enquanto
sob nossas balas,
os burgueses fugiam,
como nós deles
fugíamos outrora.
Que atrás do gênio,
como viúva inconsolável,
a glória se arraste,
acompanhando o enterro.
Morre, verso meu,
morre como um soldado raso,
anônimo como tantos
tombados num assalto.
Pouco me importa
o bronze dos monumentos!
Rio-me
do fulgor frio dos mármores!
Partilhar a glória?
Aqui
entre nós:
tenhamos por único
monumento coletivo,
edificado
por todos,
o socialismo.
Herdeiros,
arrolhai vossos dicionários,
para que
do Lete dos léxicos
não saiam
detritos de palavras tais como
“prostituição”,
“tuberculose”,
“bloqueio”.
Para vós,
herdeiros,
ágeis e robustos,
o poeta limpou
os escarros tísicos,
com a língua áspera dos cartazes.
A cauda dos anos
dar-me-á o aspecto
de um fóssil fenomenal
de longa cauda.
Camarada vida,
a trote, mais rápido,
marchemos mais rápido,
ao fim dos dias qüinqüenais.
A mim,
nem um vintém sequer
os versos jamais me deram,
jamais ganhei mobília
do ebanista.
E salvo
duma camisa fresca,
sinceramente,
não preciso nada.
Diante do C.C.C.
dos anos claros
do futuro,
acima
dos finórios
e trapaceiros do verso,
levantarei
qual uma carteira bolchevique
todos os cem tornos
de meu livros partidários!

Fonte: Maiakóvski. 2006. Vida e poesia. SP, Martin Claret. Poema originalmente publicado em 1930.

0 Comentários:

Postar um comentário

<< Home

eXTReMe Tracker