05 novembro 2008

Quadragésimo

Horácio Costa

E como eu caminhasse solitário
por uma mesma estrada pedregosa
cujas margens sumissem num crepúsculo
que não por calmo eludia o perigoso
e das árvores só a força ressaltasse
ou o dúbio conforto que estendiam
como signos de quietude ao viandante
mas também de esconderijos e tocaias
de alimárias e possíveis bestas-feras
e suas frondosidades multiformes
justapusessem-se em massas inconsúteis
que só aos corpos celestes confessassem
de seu conteúdo o interior,
e como notasse eu a simultânea
pertença e diferença de meu ser
frente a estes, àquelas e a tudo
e as torcidas ilhargas do terreno
em suas reentrâncias e clareiras
a montes tumulares recordassem
e menhires e castros de outras eras,
e se tivera eu antes desistido,
por nojo, simples fado ou inconsciência,
da idéia acalentada desde a infância
de que entre naturezas e atributos
de elementos vários imperava
que houvesse para lá da superfície
um fio de tessitura e harmonia
entre ser e pedra, e arroio e sentido,
e se a costura à qual me acostumara
se desfiasse e me surpreendesse
revelando-se sob forma hipotética
e de meu corpo os dentes se exilassem
a um estado anterior do mesmo corpo
e o sólido letargo do ambiente
apenas traduzisse-se no assombro
de um homem a quem tivessem-lhe fugido
o oxigênio, a gravidade, as entranhas,
e me escavasse uma oca identidade
e o que remanescesse dessa busca
fossem as minha mãos que descobria
imóveis e espalmadas no crepúsculo,
e a leveza alívio não trouxesse
e só nos meu pés se concentrasse
frente à noite que subia passo a passo
e soçobrava sombras e sinais
num espesso negro líquido insípido,
e como eu caminhasse solitário
por uma mesma estrada pedregosa,
ereto, ali, no meio do caminho,
finda a distância que me definira
e posta a idéia à prova sem sucesso,
rompidas as coisas todas e eu nelas,
fundindo-me e no entanto já fundido
ao que ao desvanecer-se me engolia
e obrigava contar cada milímetro
de meu derrube à desrazão e ao medo,
prestes a imaterializar-me
suspenso e plantado na poeira,
cara ao céu, pensos braços e testículos,
disseminando-me e disseminado,
com o caminho a desaparecer
comigo e em mim, quando silenciavam
as últimas humanas estridências
e inda não rebentavam as animais,
por fim indissolúveis e solutos
estrada e caminhante, noite e eu,
e propusesse-me a explosão da vida
apenas sua mera e permanente
aceitação direta e indubitável,
e posto que isso tudo sucedesse
em súbita sucessiva sucessão,
êxul, em pé, no meio do caminho,
parei-me.
E um único vagalume
avançou lento do fundo do negror,
restaurando, com sua autoridade,
general de exércitos e ordenanças,
Nelson ou Narses, César na Gália
de meu terror, a ordem que perdera,
ou bem sua ilusão, por apontar
seu brilho entre o arvoredo e contra (parco,
intermitente) o oceano de estrelas.
E como eu caminhasse solitário,
o vagalume foi transunto anônimo
de meu quadragésimo aniversário.

Fonte: Costa, H. SP. 1999. Quadragésimo. SP, Ateliê Editorial.

1 Comentários:

Blogger S.Glóss Mountra'l disse...

Como alguém pode escrever tão bem?
rs.


E como eu caminhasse solitário,
o vagalume foi transunto anônimo
de meu quadragésimo aniversário.

adorei.

7/11/08 07:41  

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