10 dezembro 2008

Ilíada

Homero

Canto 1

A ira, Deusa, celebra do Peleio Aquiles,
o irado desvario, que aos Aqueus tantas penas
trouxe, e incontáveis almas arrojou no Hades
de valentes, de heróis, espólio para os cães,
pasto de aves rapaces: fez-se a lei de Zeus;
desde que por primeiro a discórdia apartou
o Atreide, chefe de Homens, e o divino Aquiles.
Que Deus, posto entre ambos, provocou a rixa?
O filho de Latona e Zeus. Irou-o o rei.
A peste então lavrou no exército: ruína
cai sobre o povo! A Crises ultrajara o Atreide,
ao sacerdote, o qual viera até às naus
velozes dos Aqueus remir com dons a filha,
nas mãos portanto os nastros do carteiro Apolo
presos ao cetro de ouro e a todos implorava,
mormente as dois Atreides, comandantes de homens.
“Atreides e outros mais Aques de belas cnêmides,
que a vós os outros deuses dêem, habitantes do Olimpio,
derruída a priâmea urbe, um bom retorno à casa;
mas a filha querida resgatai-se, e os dons
guardai, temendo Apolo deus flechicerteiro.”
Então, uniconcordes, os Aqueus clamaram:
“Se atenda o sarcetode e as galas do resgate
se aceitem!” Disse não, Agamêmnon, o Atreide.
Brutal, refuga o velho com palavras duras:
“Que eu nunca mais te aviste junto às naves côncavas,
agora demorando ou de volta, mais tarde.
Inúteis o teu cetro e os nastros divinos,
nunca a libertarei, até que fique velha
em Argos, no meu paço, além, longe da pátria
nos trabalhos do tear, ou servindo-me ao leito.
Foge da minha ira, vai-te, põe-te a salvo.”
Findou a fala e o ancião retrocedeu medroso,
mudo, ao longo do mar de políssonas praias.
Depois, já muito longe, ao senhorio de Apolo,
ao filho da pulcrícoma Latona orou:
“Ouve-me, Arcoargênteo, protetor de Crisa
e de Cila sagrada, Esmínteo, rei de Tênedos.
Se o templo que te ergui merece teu favor,
se coxas gordurosas te queimei de touros
e de gordas ovelhas, cumpre meu desejo:
faze os Dânaos pagar meu pranto com tuas flechas!”
Súplice assim falou. Ouviu-o Febo Apolo.
Baixou do alto do Olimpo, coração colérico,
levando aos ombros o arco e a aljava bem fechada.
À espádua ao Iracundo retiniam flechas,
enquanto se movia, ícone da noite.
Sentou longe das naus: então dispara a flecha.
Horrísono clangor irrompe do arco argênteo.
Fere os mulos; depois, rápida prata, os cães;
então mira nos homens, setas pontiagudas
lançando: e ardem sem pausa densas piras fúnebres.
Nove dias sibilam flechas pelo exercito;
no décimo o Aquileu convoca o povo à ágora,
inspiração de Hera, a deusa bracinívea,
aflita a contemplar os Dânaos que morriam.
Depois que estavam juntos, reunidos, todos,
ergueu-se e lhes falou Aquiles, pés-velozes:
“Astreide, agora – penso – o descaminho oblíquio
nos frustra e força o passo atrás , se à morte salvos:
que, simultâneas, guerra e peste ao Aqueus domam.
Vamos, sem mais, ouvir arúspice ou vidente
– oniromante – que o sonhar provém de Zeus.
Que nos explique um tal rancor em Febo Apolo:
se de omissos nos culpa, em votos, hecatombes;
se lhe apraz receber de ovelhas e de cabras
seletas o perfume e nos poupar da peste.”
Falou e então sentou-se. Calcas Testorides
ergueu-se após, ótimo áugure de pássaros,
sabedor do que é, do que foi, do futuro,
que a Ílion conduzira as naves dos Aqueus
pelo dom de prever, graça de Febo Apolo.
Disse, de boa mente, ao povo unido na ágora:
“Aquiles, caro a Zeus, ordenas que eu discorra
sobre a ira de Apolo, deus flechicerteiro.
Pois é o que farei. Mas vê se me afianças,
zeloso, com teu braço e palavras valer-me.
Temo irritar um homem, o maior de todos,
que os Argivos governa e os Aqueus obedecem.
Furioso contra um fraco um rei se excede em força:
se no momento engole a cólera e a cozinha,
perdura-lhe o rancor, até que se sacie,
concentrado no peito. Diz que me proteges.”
A ele replicou Aquiles, pés-velozes:
“Calmo de coração, profere teu óraculo.
Ninguém – mercê de Apolo, caro a Zeus, que o dom
ante os Dânaos te fez , Calcas, do vaticínio –;
ninguém, enquanto eu vivo a terra em torno aviste;
ninguém, junto às naus côncavas, as mãos pesadas
lançará sobre ti, Dânao, mesmo Agamêmnon
que deles, dos Aqueus, se blasona o melhor.”
Encorajado então, falou o áugure augusto:
“Por voto omisso não nos culpa, ou hecatombe,
mas pelo sacerdote, agravo de Agamêmnon:
não resgatou-lhe a filha, rejeitou-lhe o prêmio.
Por isso, deu-nos dor, e há de nos dar, o Arqueiro,
nem o horror do flagelo afastará dos Dânaos,
antes que ao pai retorne a moça de olhos rútilos,
sem prêmio, sem resgate, e em Crisa se perfaça
uma sacra hecatombe. Assim talvez se aplaque.’’
Falou, depois sentou-se. Ergueu-se, então, do posto
o herói amplo-reinante, o Atreide, Agamêmnon;
sombrio, a fúria escura lhe revolve a estranha,
regurgitando; os olhos chispam como fogo.
Primeiro encara a Calcas e profere torvo:
“Vate funesto, a mim nunca anunciaste o bem,
és amigo do mal, sempre que profetizas;
nunca disseste, nem cumpriste, um bom augúrio.
E entre os Dânaos, agora, arengas, agourento:
que o Deus Flechicerteiro tanta dor lhes causa
porque eu não aceitei o resgate da moça,
o penhor de Criseida. Antes a quero em casa,
prefiro-a junto a mim, rival de Clitemnestra,
que, jovem, desposei: Criseida não lhe cede
no porte ou na figura, em prendas, no talento.
Mas se é melhor assim, opto por devolvê-la;
quero meu povo salvo, antes que destruído.
Porém um novo prêmio preparei-me, súbito;
não é justo que eu só fique sem recompensa:
meu quinhão, quem não viu?, passou-se a mãos alheias.”
Então lhe respondeu Aquiles, pés-velozes:
“Ó glorioso Atreide, mais que todos ávido,
que prêmios te hão de dar os Aqueus magnânimos?
Em parte alguma sei de espólio acumulado;
o saque das cidades, nos já partilhamos.
Não é justo partir de novo o repartido.
Deixa-a de volta ao deus. Em troca nós, Argivos,
três vezes, quatro vezes te pagaremos,
quando caia, por Zeus, Tróia de belos muros.”
Agamêmnon, o rei, contestou-lhe, dizendo:
“Aquiles, mesmo bravo, símile divino,
não me atrais, nem me iludes com furtivo engenho.
Queres manter teu bem, e ordenas, quanto a mim,
que eu, despojado, aceite devolver o meu.
Caso os Aqueus um dom, magnânimos, me dêem,
grato a meu coração, por igual me compenso;
caso não dêem, meu prêmio eu pessoalmente o tomo:
o quinhão que te coube, o de Ajax, o de Ulisses,
termino por levar, deixando o dono em cólera!
Sobre isso reflitamos com vagar mais tarde;
agora ao mar salino assome a nave escura,
repleta de remeiros; nela uma hecatombe
se embarque, e vá Criseida, com seu belo rosto,
a bordo, e alguém de bom conselho, um chefe de homens
– Ajax, Idomeneu, ou o divino Ulisses,
ou tu, Peleide, herói, temível entre todos
– apaziguando o Arqueiro, cumpre o sacrifício.”
Olhou-o de través Aquiles, pés-velozes:
“Investes na impostura, ó ávido de ganhos!
Como pode um Aqueu percorrer teus caminhos,
porfiado em seguir-te, combatendo homens?
Até aqui não vim guerrear os Troianos,
lanceiros excelentes. Não me queixo deles.
A mim não em roubaram gado, nem cavalos,
nem em Ftia, nutriz de heróis, solo fecundo,
devastaram plantios. Muitos montes medeiam
sombreados entre nos, e o mar sempre-soante.
A ti, Grão Sem-Pudor, olho-de-cão, viemos
seguir, satisfazer, salvar a honra em Tróia,
e a Menelau. Não cuidas disso, não te ocorre.
No entanto ameaças despojar-me do que é meu,
prêmio de muitas lutas, dom de Aqueus, meu bem.
Não se compara ao teu o quinhão que me cabe
quando em Tróia saquemos vilas bem-povoadas.
No tumulto da luta o legado mais duro
compete a minhas mãos; quando vem a partilha,
teu prêmio é bem maior; o meu, de pouco preço,
o prezo e levo às naus, cansado da batalha.
Agora volto a Ftia. À casa, em naves curvas,
mais vale retornar, que imaginar-me aqui,
sem honra, a recolher-te espólios e tesouros.”
Agamêmnon, o rei, chefe de homens, contesta:
“Foge, se o coração te apressa, nem eu peço
que por mim te retenhas; outros, ao meu lado,
me hão de honrar, Zeus prudente sobranceiro a todos.
Dos reis que dele vêm, és quem mais eu detesto.
Tens o prazer na discórdia, em guerras, nas contendas.
O valor que apregoas é favor divino.
Regressa, pois, à casa com navios e súditos,
senhor dos Mirmidões. A mim não me dá pena,
desdenho teu rancor. Porém, ouve este aviso:
Visto que me deseja Apolo de Criseida,
eu a mando de volta em navio equipado
por meus homens; mas vou eu mesmo à tua tenda
buscar Briseida, belo rosto, recompensa
que te coube; verás assim quem pode mais;
e que outro tema ombrear-se a mim como a um igual.”
Falou. No peito hirsuto do Peleide a angústia
assoma. O coração, partido em dois, hesita.
Ou arranca do flanco a espada pontiaguda
e afastando os demais abate o Atreide no ato,
ou reprime o furor, doma a revolta no ânimo.
Tudo isso lhe rodava no íntimo, e entretanto
ia sacando da bainha o gládio enorme.
Então, do céu, Atena desce. Enviou-a Hera,
dos braços brancos, que ama os dois, por ambos vela.
Por trás segura-lhe os cabelos louros, só
visível para ele; ninguém mais a vê.
Espanta-se o Peleide; gira o corpo, e logo
dá com Palas Antena: olhos terríveis brilham!
Dirigindo-se à deusa diz palavras rápidas;
“Filha de Zeus tonante, portador do escudo,
por que vens? Assistir à audácia de Agamêmnon?
Pois declaro o que penso e hei de ver cumprido:
seu belicoso orgulho vai causar-lhe a morte.”
Brilho de olhos azuis, responde a deusa Atena:
“Descendo do alto céu, para acalmar-te a ira
(se acaso me obedeces), vim a mando de Hera,
deusa dos braços brancos, que por ambos vala.
Vamos, pára essa briga! Deixa em paz a espada!
Insulta-o com palavras, sim, o quanto queiras.
Agora vou dizer-te o que se cumprirá:
um dia hão de pagar-te o triplo em dons esplêndidos
como preço da afronta. Acalma-te e obedece.”
Recomeça a falar Aquiles, pés-velozes:
“Deusa, em respeito às duas, tenho de ceder,
ainda que raive o coração. Melhor assim.
Os deuses dão escuta a quem se curva aos deuses.”
Disse e deixou pesar no punho prateado
a mão, embainhando o gládio enorme. Atena,
vendo-se obedecida, retornou ao céu,
ao Olimpio de Zeus, porta-escudo, entre os deuses.
E o filho de Peleu, de novo, fala negra,
turvo ainda de cólera, interpela o Atreide;
“Olho de cão e coração de cervo! Bronco
de vinho! Nunca ousaste, armado, com teu povo,
enfrentar um combate, nem seguiste os bravos
na luta de emboscadas. Tens pavor á morte.
Mais fácil é no vasto campo dos Aqueus
esbulhar do seu bem a quem te contradiz.
Devora-Povo! Rei do Dânaos? Rei de nada.
Senão seria este o teu último ultraje.

Fonte: Homero. 1992. Ilíada. Revista USP 12: 147-61. Poema datado do século 8 a.C. e comumente dividido em 24 cantos, dos quais o trecho acima corresponde ao Canto 1.

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