27 dezembro 2013

Nem a morte

Afonso Henriques Neto

música das coisas suando em minha pele,
na noite humanizada da pele, o anjo cego,
o sol caolho, música, música de todos
os desesperos, de todas as azuis diabruras
e terríveis cósmicas gangrenas, o silêncio
de estrela, o branco tenso da cicatriz.

não quero enxugar o suor do morto.
não quero nunca mais sofrer a lenta
corrosão de minha tia na cama cheia
de farelos de câncer, oh jovem voz
antiga em corpo roído, pobre música
das coisas ditas sem resultado.

não quero pintar o lábio da morta.
vestir a nudez de ausência. dependurar
os brincos de lágrima. não quero o sal
amargo de crianças sangrando no fundo
palco de um teatro mais negro que a negra
composição de música navegando sem braços.

porquanto persigo a música que não sei.
pois sei pouco, três ou quatro poetas,
pedaços de sistemas filosóficos, restos de
programas televisados, poeira dos sonhos
nunca lembrados, um rádio na infância
e esta música a me esculpir no vago.

nem sei o cantor capaz de espantar
o bicho. ele me espia do corredor,
sorrio para ele, somos um, o vento
soca a porta, minha mulher ressona,
o homem é a extrema estrela desesperada,
estou calmo, não é preciso fazer nada, nem a morte.

Fonte: Hollanda, H. B., org. 2001 [1976]. 26 poetas hoje, 4ª edição. RJ, Aeroplano.

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