Nem a morte
Afonso Henriques Neto
música das coisas suando
em minha pele,
na noite humanizada da
pele, o anjo cego,
o sol caolho, música,
música de todos
os desesperos, de todas
as azuis diabruras
e terríveis cósmicas
gangrenas, o silêncio
de estrela, o branco
tenso da cicatriz.
não quero enxugar o suor
do morto.
não quero nunca mais
sofrer a lenta
corrosão de minha tia na
cama cheia
de farelos de câncer, oh
jovem voz
antiga em corpo roído,
pobre música
das coisas ditas sem
resultado.
não quero pintar o lábio
da morta.
vestir a nudez de ausência.
dependurar
os brincos de lágrima.
não quero o sal
amargo de crianças
sangrando no fundo
palco de um teatro mais
negro que a negra
composição de música
navegando sem braços.
porquanto persigo a
música que não sei.
pois sei pouco, três ou
quatro poetas,
pedaços de sistemas
filosóficos, restos de
programas televisados,
poeira dos sonhos
nunca lembrados, um rádio
na infância
e esta música a me esculpir
no vago.
nem sei o cantor capaz de
espantar
o bicho. ele me espia do
corredor,
sorrio para ele, somos
um, o vento
soca a porta, minha
mulher ressona,
o homem é a extrema
estrela desesperada,
estou calmo, não é
preciso fazer nada, nem a morte.
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