05 fevereiro 2014

O futuro da observação de aves

Nicholas Lund

Há algum aspecto da vida humana ao qual ainda não tenha sido oferecida uma mãozinha intrometida da tecnologia? Há uma entorpecida esquerda ludista no planeta que não tenha sido forçada, de um jeito ou de outro, a recolher-se ao holofote frio da eficiência eletrônica? Pode ser que nós nunca saibamos com certeza (eles não respondem às minhas mensagens de correio eletrônico), mas o meu palpite é que naum.

Mesmo nós, observadores de aves – que necessitamos de pouco mais do que um par de binóculos e um bom guia de campo –, somos constantemente confrontados com uma sucessão de novidades. De fato, vivemos em uma época de expansão dos guias ornitológicos nos Estados Unidos. Aqueles livros com fotos bonitas de aves selvagens e mapas de distribuição – você provavelmente já viu um empoeirando no peitoril da janela de sua avó – estão passando hoje por um turbilhão de inovações, debates e controvérsias. Eles evoluem a um ritmo mais rápido do que os seus objetos de estudo.

Um bom guia de campo estadunidense deve conter ao menos 700 das 976 espécies da lista oficial da Associação Estadunidense de Observação de Aves [American Birding Association] – cada espécie com as suas próprias peculiaridades de plumagem, hábitos e canto. Mesmo no caso de uma única espécie, diferenças de plumagem entre jovens e adultos e entre machos e fêmeas são igualmente prováveis de serem encontradas no campo, o que significa dizer que todas elas precisam ser ilustradas, visando deixar o observador devidamente preparado. Guias de campo apresentam um problema particularmente complicado em termos de exposição dos dados: qual o melhor jeito de um livro referir-se a essa massa incrivelmente detalhada de informações?

Os guias de campo

Os primeiros guias de campo – se é que podemos chamá-los assim – foram feitos para deleitar, não para ensinar. Ornitólogos e pintores estadunidenses pioneiros (entre os quais Mark Catesby, Alexander Wilson e John James Audubon) criaram imagens vívidas de aves nativas, muitas das quais eram até então desconhecidas da ciência. Publicado entre 1827 e 1838, The birds of America, de Audubon, é o avô dos guias de campo estadunidenses – um trabalho imponente, retratando mais de 500 espécies na natureza. (A Norton publicou recentemente uma grandiosa e bonita edição das pranchas cromolitográficas de Audubon.) É uma obra de arte de tirar o fôlego; as cores vivas e as cenas emocionantes provocam um entusiasmo de naturalista até mesmo nos observadores contemporâneos mais sedentários.

Mas não é um guia de campo. Para começar, tem mais de um metro de altura – você precisaria de uma mula para levá-lo ao campo. O ímpeto de Audubon foi a inspiração, não a utilidade; de fato, ele propositalmente excluiu qualquer texto ao lado das pinturas, de modo a não ter de fornecer às bibliotecas inglesas cópias gratuitas de seu penoso trabalho. Algumas referências importantes apareceram em seguida, a mais notável das quais foi Birds through an opera-glass (1889), de Florence Merriam Bailey; no entanto, a maioria dos guias de aves do século 19 era de obras densas, cheias de notas detalhadas e observações, mas com apenas umas poucas imagens.

A era moderna dos guias de campo começou em 1934, com A field guide to the birds, de Roger Tory Peterson. Parece óbvio agora, mas a grande inovação de Peterson foi simplesmente mostrar as danadas das aves às pessoas. Em vez de calhamaços de texto, espécies semelhantes eram ilustradas lado a lado, em uma única página. Mapas de distribuição foram acrescentados, de modo a dar aos observadores iniciantes uma ideia dos padrões de distribuição e migração. Mesmo a simples introdução de setas apontando para pontos-chave na identificação revelou ser uma grande melhoria. Para muitos, A field guide to the birds foi algo como uma Pedra de Roseta, permitindo-lhes entender uma linguagem que até então eles nem sequer sabiam que era falada. Os guias de campo de Peterson foram um sucesso: o primeiro esgotou em duas semanas e hoje, quase 80 anos depois, eles ainda continuam sendo impressos.

O Sistema de Identificação de Peterson, comparando ilustrações, dominou o mundo dos guias de campo. A linha de livros de Peterson foi a mais bem-sucedida, embora a National Geographic e a Golden tenham produzido concorrentes conhecidos. O estilo ilustrado foi aperfeiçoado por David Sibley, em 2000, com o seu Sibley guide to birds, que eu ainda considero ser o melhor guia de campo existente. A parte artística é efetivamente utilitária e as maiores dimensões do livro (aparentemente ainda maiores em 2014) – que foi motivo de críticas na época – permitem uma incomparável abrangência de plumagens e subespécies.

E abrangência é o que os observadores de aves necessitam. O divertido da observação de aves é que você nunca sabe o que irá ver, de modo que quando se vê algo incomum é necessário estar bem guarnecido. Uma das primeiras aves “boas” que eu encontrei por conta própria foi um dos primeiros registros da gaivota-da-cabeça-preta no Mississipi e jamais me esquecerei de como eu fiquei sentado dentro do meu carro congelado, folheando freneticamente o Sibley até me certificar, antes de espalhar a notícia, de que eu não estava diante de uma ave mais trivial.

Durante todo esse tempo, os guias de campo ilustrados foram assombrados por um desafio persistente: as fotografias. Afinal de contas, por que essa gente desperdiça suas vidas pintando meticulosamente cada ave dos Estados Unidos, quando eles poderiam simplesmente tirar uma foto? O que é melhor do que a coisa real? É uma boa suposição, mas qualquer um que já tenha tentado fotografar uma ave sabe o quão difícil isso pode ser. Mesmo quando tudo está bem arrumado – a ave está virada para a direção certa, a luz é suficiente, não há folhas obstruindo partes importantes –, a ave baterá asas tão logo você aponte a câmera. Durante anos, foi muito difícil obter uma foto de qualidade de cada espécie, com cada uma das diferentes plumagens, e os guias que tentaram ficaram marcados por instantâneos borrados, escuros ou perdidos.

A revolução digital

A fotografia digital mudou tudo. Fotografias boas são agora mais fáceis e mais baratas de se obter e podem ser manipuladas para melhorar a cor e remover imperfeições. O resultado é uma melhora acentuada na oferta de guias de campo fotográficos; os melhores incluem o livro de bolso Kaufman field guide to birds of North America e o detalhado Stokes field guide to the birds of North America. Missão cumprida: as fotos nesses livros representam precisamente como as aves se parecerão quando você as encontrar no campo. Dito isto, a inovação trazida por esses guias é limitada; eles são basicamente o estilo Peterson, com fotos no lugar de gravuras. Um verdadeiro rearranjo do gênero apareceu com Richard Crossley.

Eu não conheço Crossley, mas uma passada de olhos no seu Crossley ID guide: Eastern birds me leva a acreditar que ele é louco. Um tipo de gênio louco, contudo, de certo modo semelhante ao dr. Frankenstein. Como o monstro de Frankenstein, Eastern birds é imenso; com 1,7 kg, é o mais pesado dos guias de campo modernos – mais pesado, digamos, do que um saco com 20 tordos-americanos [American robins; Turdus migratorius]. Como o monstro, ele também é um conjunto de partes difusas, a saber, quase 10 mil fotografias do próprio Crossley. Cada espécie é apresentada como uma colagem de fotos, tiradas de diferentes ângulos e distâncias, dispostas sobre um fundo que é o hábitat preferido da ave.

O efeito imediato é desconcertante e quando ele saiu, em 2011, os observadores tiveram de aplacar o ímpeto de agarrar os seus forcados. Era enorme. Era confuso. Com o tempo, no entanto, a utilidade torna-se aparente. Enquanto os guias no estilo Peterson apresentam as aves como se elas estivessem posando para a foto perfeita, tirada em algum tipo de estúdio aviário Instantâneos Glamorosos, o guia de Crossley revela pontos de vista menos satisfatórios, porém mais realistas. As aves são mostradas no meio da serapilheira ou como manchas distantes voando alto. Para uso no campo, é mais útil do que a maioria dos guias, como se nota pelo que os observadores frequentemente dizem: “Eu vi apenas de relance quando ele voou... que tordo tem uma cauda vermelha?”

Ver ou ouvir?

Tão inovadores quanto possam ser, no entanto, os guias de Crossley ainda são livros. Odeio chutar a indústria gráfica quando ela está caída, mas levar um guia de campo de papel quando se vai observar aves logo se tornará tão antiquado como trazer uma espingarda para coletar espécimes. Uma nova variedade de aplicativos móveis oferece uma melhoria significativa em relação aos guias de papel. Ter um guia inteiro no bolso de trás é, obviamente, mais conveniente do que carregar um livro de 1,5 kg. E, o mais importante, os guias eletrônicos (Sibley e iBird são os melhores) contêm toda a variedade de sons das aves.

A verdade é que as aves são mais frequentemente ouvidas do que vistas e um ouvido apurado para os cantos únicos, os chamados, os assovios e os sons de voo das aves é o que caracteriza os melhores observadores. Relatar os chamados de uma ave em um guia de papel pode ser uma futilidade hilariante. Eis aqui o que o Stokes guide diz a respeito do canto do pardal-de-nelson [Nelson sparrow; Ammodramus nelsoni]: “Um áspero e nada musical crt tshhhhhhhjut”. Não deve ser difícil ouvir isto, certo? A inclusão de áudio real com imagens em um único dispositivo mostrou ser extremamente útil para a aprendizagem no campo.

Não que trazer uma biblioteca de sons de aves para o campo não tenha as suas desvantagens. Os debates que campeiam na comunidade de observadores a respeito do uso de gravações de cantos ou chamados para atrair aves precisam melhorar. Os adversários dizem que as gravações estressam as aves e as distraem de suas verdadeiras obrigações vitais. Os defensores do uso limitado e responsável das gravações – entre os quais, eu me incluo – contra-atacam com argumentos parciais, do tipo “É só por uns dois segundos” e “Me deixe em paz”. O júri científico ainda está do lado de fora, mas os debates serão quentes.

Assim como alguns observadores ainda manterão por muito tempo um envelhecido Peterson no seu bolso de trás, os aplicativos móveis de identificação de aves vieram para ficar. Contudo, o fato de o guia ser de papel ou eletrônico não muda o desafio fundamental da observação de aves: saber como olhar para uma ave. Guias de campo são utilizados apenas como uma preparação ou em retrospecto; o negócio real da observação permanece entre você, a ave e os seus binóculos. Isso até que os nossos óculos Google possam identificar aves voando ou os nossos telefones possam escanear uma pena caída e reportem a subespécie. Eu dou um ano.

Fonte: versão original foi publicada na revista eletrônica Slate. O autor vive e observa aves em Washington, DC (EUA), e escreve para o Birdist. Tradução e intertítulos: Felipe A. P. L. Costa.

1 Comentários:

Blogger Celso Paris disse...

Olá Felipe,

Obrigado mais uma vez pelo excelente material.

Eu não cheguei a ser um observador de aves, pulei essa fase para a fotografia digital, começando em 2001. Nem binóculo tenho.

Ao longo de anos, aprendi que não adianta muito levar meu guia de campo, melhor levar a fotografia digital para casa.

E acima de tudo, aprendi que o guia é mesmo como o nome diz, apenas um guia, é necessário discutir com amigos para ter certeza absoluta.

Em algumas espécies de aves em particular, existem casos aonde a identificação é quase impossível, isso ocorre principalmente com fêmeas de "comedores de sementes", tenho uma foto tirada há uns 5 anos na Floresta Nacional de Ipanema (Iperó-SP) que correu o mundo e ninguém conseguiu identificar, à despeito da qualidade da mesma.

Um grande abraço,

9/2/14 20:12  

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