O futuro da observação de aves
Nicholas
Lund
Há algum
aspecto da vida humana ao qual ainda não tenha sido oferecida uma mãozinha intrometida
da tecnologia? Há uma entorpecida esquerda ludista no planeta que não tenha sido
forçada, de um jeito ou de outro, a recolher-se ao holofote frio da eficiência
eletrônica? Pode ser que nós nunca saibamos com certeza (eles não respondem às
minhas mensagens de correio eletrônico), mas o meu palpite é que naum.
Mesmo
nós, observadores de aves – que necessitamos de pouco mais do que um par de
binóculos e um bom guia de campo –, somos constantemente confrontados com uma sucessão
de novidades. De fato, vivemos em uma época de expansão dos guias ornitológicos
nos Estados Unidos. Aqueles livros com fotos bonitas de aves selvagens e mapas
de distribuição – você provavelmente já viu um empoeirando no peitoril da
janela de sua avó – estão passando hoje por um turbilhão de inovações, debates
e controvérsias. Eles evoluem a um ritmo mais rápido do que os seus objetos de
estudo.
Um bom
guia de campo estadunidense deve conter ao menos 700 das 976 espécies da lista oficial
da Associação Estadunidense de Observação de Aves [American Birding
Association] – cada espécie com as suas próprias peculiaridades de plumagem,
hábitos e canto. Mesmo no caso de uma única espécie, diferenças de plumagem
entre jovens e adultos e entre machos e fêmeas são igualmente prováveis de
serem encontradas no campo, o que significa dizer que todas elas precisam ser
ilustradas, visando deixar o observador devidamente preparado. Guias de campo apresentam
um problema particularmente complicado em termos de exposição dos dados: qual o
melhor jeito de um livro referir-se a essa massa incrivelmente detalhada de
informações?
Os guias de campo
Os
primeiros guias de campo – se é que podemos chamá-los assim – foram feitos para
deleitar, não para ensinar. Ornitólogos e pintores estadunidenses pioneiros
(entre os quais Mark Catesby, Alexander Wilson e John James Audubon) criaram
imagens vívidas de aves nativas, muitas das quais eram até então desconhecidas
da ciência. Publicado entre 1827 e 1838, The birds of America, de
Audubon, é o avô dos guias de campo estadunidenses – um trabalho imponente, retratando
mais de 500 espécies na natureza. (A Norton publicou recentemente uma grandiosa e bonita edição das pranchas cromolitográficas de Audubon.)
É uma obra de arte de tirar o fôlego; as cores vivas e as cenas emocionantes
provocam um entusiasmo de naturalista até mesmo nos observadores contemporâneos
mais sedentários.
Mas não é
um guia de campo. Para começar, tem mais de um metro de altura – você
precisaria de uma mula para levá-lo ao campo. O ímpeto de Audubon foi a
inspiração, não a utilidade; de fato, ele propositalmente excluiu qualquer
texto ao lado das pinturas, de modo a não ter de fornecer às bibliotecas
inglesas cópias gratuitas de seu penoso trabalho. Algumas referências
importantes apareceram em seguida, a mais notável das quais foi Birds through an opera-glass
(1889), de Florence Merriam Bailey; no entanto, a maioria dos guias de aves do
século 19 era de obras densas, cheias de notas detalhadas e observações, mas com apenas umas poucas imagens.
A era
moderna dos guias de campo começou em 1934, com A field guide to the birds,
de Roger Tory Peterson. Parece óbvio agora, mas a grande inovação de Peterson
foi simplesmente mostrar as danadas das aves às pessoas. Em vez de calhamaços
de texto, espécies semelhantes eram ilustradas lado a lado, em uma única
página. Mapas de distribuição foram acrescentados, de modo a dar aos
observadores iniciantes uma ideia dos padrões de distribuição e migração. Mesmo
a simples introdução de setas apontando para pontos-chave na identificação
revelou ser uma grande melhoria. Para muitos, A field guide to the birds
foi algo como uma Pedra de Roseta, permitindo-lhes entender uma linguagem que
até então eles nem sequer sabiam que era falada. Os guias de campo de Peterson
foram um sucesso: o primeiro esgotou em duas semanas
e hoje, quase 80 anos depois, eles ainda continuam sendo impressos.
O Sistema
de Identificação de Peterson, comparando ilustrações, dominou o mundo dos guias
de campo. A linha de livros de Peterson foi a mais bem-sucedida, embora a National Geographic
e a Golden tenham produzido concorrentes conhecidos. O estilo ilustrado foi aperfeiçoado
por David Sibley, em 2000, com o seu Sibley guide to birds,
que eu ainda considero ser o melhor guia de campo existente. A parte artística
é efetivamente utilitária e as maiores dimensões do livro (aparentemente ainda maiores
em 2014) – que foi motivo de críticas
na época – permitem uma incomparável abrangência de plumagens e subespécies.
E abrangência
é o que os observadores de aves necessitam. O divertido da observação de aves é
que você nunca sabe o que irá ver, de modo que quando se vê algo incomum é
necessário estar bem guarnecido. Uma das primeiras aves “boas” que eu encontrei
por conta própria foi um dos primeiros registros da gaivota-da-cabeça-preta
no Mississipi e jamais me esquecerei de como eu fiquei sentado dentro do meu
carro congelado, folheando freneticamente o Sibley até me certificar, antes de
espalhar a notícia, de que eu não estava diante de uma ave mais trivial.
Durante todo esse tempo, os guias de campo
ilustrados foram assombrados por um desafio persistente: as fotografias. Afinal
de contas, por que essa gente desperdiça suas vidas pintando meticulosamente
cada ave dos Estados Unidos, quando eles poderiam simplesmente tirar uma foto?
O que é melhor do que a coisa real? É uma boa suposição, mas qualquer um que já
tenha tentado fotografar uma ave sabe o quão difícil isso pode ser. Mesmo
quando tudo está bem arrumado – a ave está virada para a direção certa, a luz é
suficiente, não há folhas obstruindo partes importantes –, a ave baterá asas tão
logo você aponte a câmera. Durante anos, foi muito difícil obter uma foto de
qualidade de cada espécie, com cada uma das diferentes plumagens, e os guias
que tentaram ficaram marcados por instantâneos borrados, escuros ou perdidos.
A revolução digital
A fotografia
digital mudou tudo. Fotografias boas são agora mais fáceis e mais baratas de se
obter e podem ser manipuladas para melhorar a cor e remover imperfeições. O
resultado é uma melhora acentuada na oferta de guias de campo fotográficos; os
melhores incluem o livro de bolso Kaufman field guide to birds of North America
e o detalhado Stokes field guide to the birds of North America.
Missão cumprida: as fotos nesses livros representam precisamente como as aves
se parecerão quando você as encontrar no campo. Dito isto, a inovação trazida
por esses guias é limitada; eles são basicamente o estilo Peterson, com fotos
no lugar de gravuras. Um verdadeiro rearranjo do gênero apareceu com Richard
Crossley.
Eu não
conheço Crossley, mas uma passada de olhos no seu Crossley ID guide: Eastern birds
me leva a acreditar que ele é louco. Um tipo de gênio louco, contudo, de certo
modo semelhante ao dr. Frankenstein. Como o monstro de Frankenstein, Eastern
birds é imenso; com 1,7 kg, é o mais pesado dos guias de campo modernos –
mais pesado, digamos, do que um saco com 20 tordos-americanos [American robins;
Turdus migratorius]. Como o monstro,
ele também é um conjunto de partes difusas, a saber, quase 10 mil fotografias
do próprio Crossley. Cada espécie é apresentada como uma colagem de fotos,
tiradas de diferentes ângulos e distâncias, dispostas sobre um fundo que é o
hábitat preferido da ave.
O efeito
imediato é desconcertante e quando ele saiu, em 2011, os observadores tiveram
de aplacar o ímpeto de agarrar os seus forcados. Era enorme.
Era confuso.
Com o tempo, no entanto, a utilidade torna-se aparente. Enquanto os guias no
estilo Peterson apresentam as aves como se elas estivessem posando para a foto
perfeita, tirada em algum tipo de estúdio aviário Instantâneos Glamorosos, o
guia de Crossley revela pontos de vista menos satisfatórios, porém mais
realistas. As aves são mostradas no meio da serapilheira ou como manchas
distantes voando alto. Para uso no campo, é mais útil do que a maioria dos
guias, como se nota pelo que os observadores frequentemente dizem: “Eu vi
apenas de relance quando ele voou... que tordo tem uma cauda vermelha?”
Ver ou ouvir?
Tão
inovadores quanto possam ser, no entanto, os guias de Crossley ainda são
livros. Odeio chutar a indústria gráfica quando ela está caída, mas levar um
guia de campo de papel quando se vai observar aves logo se tornará tão
antiquado como trazer uma espingarda para coletar espécimes. Uma nova variedade
de aplicativos móveis oferece uma melhoria significativa em relação aos guias
de papel. Ter um guia inteiro no bolso de trás é, obviamente, mais conveniente
do que carregar um livro de 1,5 kg. E, o mais importante, os guias eletrônicos
(Sibley
e iBird são os melhores) contêm toda
a variedade de sons das aves.
A verdade
é que as aves são mais frequentemente ouvidas do que vistas e um ouvido apurado
para os cantos únicos, os chamados, os assovios e os sons de voo das aves é o
que caracteriza os melhores observadores. Relatar os chamados de uma ave em um
guia de papel pode ser uma futilidade hilariante. Eis aqui o que o Stokes guide diz a respeito do canto do
pardal-de-nelson [Nelson sparrow; Ammodramus
nelsoni]: “Um áspero e nada musical crt tshhhhhhhjut”. Não deve ser difícil
ouvir isto, certo? A inclusão de áudio real com imagens em um único dispositivo
mostrou ser extremamente útil para a aprendizagem no campo.
Não que
trazer uma biblioteca de sons de aves para o campo não tenha as suas
desvantagens. Os debates que campeiam na comunidade de observadores a respeito
do uso de gravações de cantos ou chamados para atrair aves precisam melhorar. Os
adversários dizem que as gravações estressam as aves e as distraem de suas
verdadeiras obrigações vitais. Os defensores do uso limitado e responsável
das gravações – entre os quais, eu me incluo – contra-atacam com argumentos parciais,
do tipo “É só por uns dois segundos” e “Me deixe em paz”. O júri científico ainda está do lado de fora,
mas os debates serão quentes.
Assim
como alguns observadores ainda manterão por muito tempo um envelhecido Peterson
no seu bolso de trás, os aplicativos móveis de identificação de aves vieram para
ficar. Contudo, o fato de o guia ser de papel ou eletrônico não muda o desafio
fundamental da observação de aves: saber como olhar para uma ave. Guias de
campo são utilizados apenas como uma preparação ou em retrospecto; o negócio
real da observação permanece entre você, a ave e os seus binóculos. Isso até que
os nossos óculos Google possam identificar aves voando ou os nossos telefones possam
escanear uma pena caída e reportem a subespécie. Eu dou um ano.
1 Comentários:
Olá Felipe,
Obrigado mais uma vez pelo excelente material.
Eu não cheguei a ser um observador de aves, pulei essa fase para a fotografia digital, começando em 2001. Nem binóculo tenho.
Ao longo de anos, aprendi que não adianta muito levar meu guia de campo, melhor levar a fotografia digital para casa.
E acima de tudo, aprendi que o guia é mesmo como o nome diz, apenas um guia, é necessário discutir com amigos para ter certeza absoluta.
Em algumas espécies de aves em particular, existem casos aonde a identificação é quase impossível, isso ocorre principalmente com fêmeas de "comedores de sementes", tenho uma foto tirada há uns 5 anos na Floresta Nacional de Ipanema (Iperó-SP) que correu o mundo e ninguém conseguiu identificar, à despeito da qualidade da mesma.
Um grande abraço,
Postar um comentário
<< Home