Uma noite encontrei uma pedra
Herberto Helder
Uma noite encontrei uma
pedra
oh pedra pedra!
verde ou azul, de lado,
como se estivesse morta.
Encontrei a noite como
uma pedra inclinada
sobre o meu corpo
puro, profundo como um
sino.
Vi que havia em mim um
pensamento
inocente, uma pedra
quando se entra na noite
pelo lado onde
há menos gente.
Ou era um sino de um
futuro
maior silêncio, tão
grande silêncio para se
habitar só em gestos.
Aí eu poderia erguer-me
na ponta
dos pés e ficar para
sempre: chama
que a noite viesse
alimentar com sua
própria matéria que se
queima. Noite –
– lenha para nossa leveza
humana. Encontrei
uma coisa caída, talvez
madura, um pouco
metida pela terra dentro.
Alguma coisa dessas
coisas da imobilidade, objecto
executado pelo sono,
onde eu passava os dedos
apavorados e doces.
Som ou degrau que eu
beijaria,
elevando-se da terra, não
como uma árvore
ou uma mulher
desenvolvida em sua
atmosfera de doçura
e dolorosa exaltação.
Alguma coisa
subida de raízes mais
milagrosas, que se não
exprimia com a brevidade
subtil de folhas, ou a
quente agudeza de dedos espalhados.
Algo não levantado
inteiramente da obscuridade
de uma vida sepulta,
e não jacente por sobre o
qual milhares de estrelas
rodassem as asas de gelo.
Uma coisa numa existência
demorada entre
o êxtase e a força
sombria
das estações.
Encontrei uma pedra pedra
que não era uma colina
com o mês de março em volta.
Nem, era a boca materna
aberta
debaixo dos rios lisos.
Uma coisa para se
encostar a cabeça, oh não
para morrer. Para alguém
subir
e de onde não era
possível gritar. Uma pedra
sem folhas, um sino
sem pensamento. Encontrei
algo que não andava
pelos montes nem seria
atravessado
por uma flecha. E não
sangrava.
Que não se ouvia se
cantava. Talvez fosse fria
ou vivesse abrasada sobre
a ilusão.
Era verde na noite quando
se vem de longe,
ou azul, ou verde pelo
milagre
que não existe. Ou então
era clara de certas
flores que se dobram.
Ou então era alta, ou
esmagada, ou degolada,
no meio de um silêncio
global.
Encontrei em mim essa
clareira desarrumada na seiva,
como se um poço distante
ressoasse,
ou como
se os dias se fossem
aproximando da minha idade
triunfante,
e eu me calasse e movesse
o rosto aberto
pela luz para a abstracta
violência
da solidão.
Encontrei
um animal adormecido, uma
flor hipnotizada,
uma viola ferozmente
taciturna.
Era amarela só se eu
levantasse a cabeça, ou era
tão escura na infância
grande.
Encontrei uma verde pedra
cravada no mundo
das pessoas, à entrada da
candura,
tão admirável pelo azul
da terra dentro.
Uma coisa incompreendida
no instante
de morrer para a frente.
Encontrei ondas e ondas
contra mim, como se eu fosse
um homem morto entre
palavras.
Campos de cevada
inspirados no fogo que batiam
nas costas das minhas
mãos,
aldeias inteiras cantando
sua pureza
quase louca. Encontrei
depois o lugar
onde deitar a cabeça e
não ser mais ninguém
que se saiba. Uma pedra
pedra seca, uma vida
entre muitos dons.
Com as raízes de quem
divaga.
Uma pedra sem som como
quem se move
sobre os alimentos.
Encontrei como quem
arrasta para a noite
um símbolo pesado e
ardente.
Ou a ideia
da morte mais leve que o
coração sem nada
do amor.
Se me perguntam, digo:
encontrei
a lua, o sol.
Somente o meu silêncio
pensa.
– Se era uma pedra, um
sino. Uma vida verdadeira.
Fonte: Silva, A. C. &
Bueno, A., orgs. 1999. Antologia da poesia portuguesa contemporânea. RJ, Lacerda Editores. Poema publicado em
livro em 1962.
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