Canto da insubmissão
Bueno de Rivera
Eu, que sou pedra e
montanha, sangue e oeste,
negro poço do tempo e da
memória,
mãos sujas no labor do
subsolo,
apenas vos ofereço o
choro vivo
dos homens solitários.
Somos os filhos da noite
mineral, os frutos
sem planície e sem sol,
ignorados
trabalhadores das minas
tenebrosas.
Marinheiros do abismo
sem estrela e âncoras.
Caras de carvão, flores
da treva, lírios
de luto brotando num
jardim de turfas.
Homens duros e amargos,
oriundos
de solidões calcáreas,
escondemos
nosso protesto na ironia
indócil,
não cortante como lâmina,
mas pungente
como anedota de loucos,
confissões
de bêbedo, música de
cego.
É estranho esse modo de
ferir, pedindo
desculpas. Amigos,
perdoai-nos,
amigos, crede em nós, os
homens tristes!
Sob a face solene
há coração sangrando
por nós, por vós.
Um grito de mãe na
tempestade, um morto
não identificado, uma
janela
na noite do hospital, um
pé descalço,
a tecelã tossindo
sob a rosa de seda, ou
uma bandeira
no enterro do operário, todo
o drama
nos fere, nos afoga
em fundas cogitações e
paralelos.
A angústia do povo acende
o lume
de nossos poemas
solidários.
No entanto, os amigos
aconselham: “Ó ingênuos,
por que esse agitar de
braços como flâmulas?
Na tarde do bar, entre os
espelhos,
há poetas cantando a vida
amena.
Alegrai também o vosso
canto, erguei louvores
à farândula dos mitos!”
Impossível, embora
eu saiba que há magnólias
sob a lua,
lotações de sereias,
luminosas
vivendas na praia, entre
piano e beijos,
autos deslizando, peixes lúcidos
no mar do tráfego,
e pernas oleosas, mãos em
brinde
no espelho do champanhe,
o baile, o sonho.
Impossível, pois sei
também que existem
soluços e revoltas,
lírios no charco, luta de
afogados
contra as marés, o monopólio
e a morte.
E isso me comove. Mais
que o fogo
isso me queima e me ilumina.
Eu sofro
o mundo desigual, a vida
em pânico!
Eu, que sou pedra e
montanha, sangue e oeste,
negro poço do tempo e da
memória,
só vos posso este sombrio
canto, denso e amargo
oceano de enigmas,
doloroso
rio subterrâneo.
Fonte: Rivera, B. 2003. Melhores poemas de Bueno de Rivera. SP, Global. Poema publicado em livro em 1948.
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