Um pastor
Manuel de Araújo Porto-Alegre
Toca a hora; silêncio! A
hora soa
Em que
o globo inflamado,
Que o
dia à terra mostra,
Do etéreo oceano ao fundo
rola,
E das celestes vagas já
levanta
As gotas luminosas que
borrifam
O
vasto firmamento!
Salve,
estrelante noite,
Que do berço da aurora
ressurgindo
De um manto adamantino te
apavonas
Nas
cerúleas campinas!
Vagai na imensidade,
ardentes círios,
Que só a imensidade ora
me encanta.
Mesquinha à mente a terra
me parece.
Místicos sonhos, célica
harmonia,
Adejai
vossas asas,
Ressoai
no infinito;
Sombras de amor, passai,
passai ligeiras,
Dançai, e repeti em muda
língua
O Nome
que idolatro.
Como rápida a mente rola
e paira
Sobre
o mar do silêncio!
Como
brilha nas trevas
Do insólito esplendor o
simulacro
Que da imaginação ardido
surge
Em
ideais eflúvios,
E mágico volteja, vai-se,
e volta!
Mãe da contemplação, da
paz, ó noite!
Ah! quão ditoso sinto o
movimento
Que o coração agita a par
dos quadros
Que desenrola a mão de
alma saudade!
Do porvir áureos paços me
franqueias,
Que o cinzel da
esperança, a fantasia
Com místico artifício
adorna, e doura!
Doce esperança, espectro
luminoso,
Coroado de estrelas
caroáveis,
Tu no
peito me escreves
O nome
que idolatro.
Tua imagem só vejo em
toda parte:
Do límpido regato a nívea
espuma
Na corrente descreve em
alvas letras
Sobre um fundo de azul
teu caro nome.
Dulçoroso murmúrio é o
teu sorriso,
E o teu olhar um raio de
ventura.
A flor que cede ao
zéfiro, e balança,
Retrata o teu donaire
gracioso;
E o perfume que exalam
suas pétalas
Teus ditos inocentes
assemelha.
A
saudosa elegia
Que entoa o rouxinol
entre mil flores,
É o hino de ternura da
tua alma!
Tua imagem, anteposta à Natureza,
Diviniza, embalsama-me a
existência.
Do rio a crespa vaga que
desliza,
Minha doce esperança
representa,
Correndo de hora em hora ’té
que chegue
Ao mar delicioso, em que
vogando
Solte as velas da vida, e
feliz frua
De teus lábios o hálito
de rosas;
E
abraçado me entregues...
Cessai, sonhos de amor!
vinde a meus lábios
Em suspiros morrer
misteriosos.
Fere,
lira amorosa,
Entoa co’o meu canto em
puro acordo
O nome
que idolatro.
Invoquei, minha bela, a
eternidade;
Entre os Anjos pairar
almejo agora.
Meu amor já desdenha a
terra nossa;
Só posso refrescar a
calma intensa
Entre
os lúcidos astros,
Eflúvios, que levanta do
universo
A
eviterna torrente.
A noite eu invoquei, para
nas trevas
Do silêncio ocultar as
divas cenas,
Que veemente paixão me
volve n’alma.
Amor eu invoquei, silfos
sidéreos,
Diáfanas visões, que em
ronda aérea
Me
envolvem de almos sonhos.
Invoquei-te, esperança, a
ti me volvo,
Ente misterioso, já que
longe...
Mas que digo?! jamais
longe não podes
Viver
do teu amante.
Mais próxima que a luz e
ar que respiro,
Eu te guardo no adito de
minha alma!
Invoco
ora saudoso
O Anjo consolador, Anjo
do vate,
Que desdobra em minha
alma as asas ígneas
Para escrever no céu
entre as estrelas
O nome
que idolatro.
Fonte (última estrofe): Martins, W. 1978. História da inteligência brasileira, vol. 2. SP, Cultrix & Edusp. O trecho acima – publicado com os dizeres ‘(cantando e tecendo uma coroa de rosas)’ – corresponde a um dos cantos que integram um poema mais extenso, intitulado ‘A voz da Natureza’ e publicado em livro em 1863.
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