Um dia
António Osório
Um dia pensará alguém,
lendo estes versos,
por que razão ocultou
(de propósito) tanta
piedade
e sofreu de mão aberta
por rapaces, ébrios
e um lobinho que sua mãe
enterrou
escavando com focinho
cruel o túmulo,
procurava escrever
direito
por linhas tortas
e amava a tal ponto a
vida
que dela ficou aquém, com
suas garatujas;
porque quis ser folhas de
azinheira
para uma cabra montês,
pagando o mal
dos outros e o seu
e tímida inveja tinha das
aves
(só delas) e dessas
delicadas
entabulações amorosas,
que o assombravam tanto
quanto a perfídia,
um pedinte, a luxúria
ou a consoladora luz matutina;
porque quis, não ao
dilúvio,
mas à arrependida
recessão das águas,
penou com as reses
a caminho do seu fim,
como uvas
de camião no outono,
e todas as estações o
angustiavam
(não só a primavera),
devido à perfeita,
à meticulosa organização
do nada;
e porque amou tão pouco,
ele desejoso
de voltar ao fundo de sua
mãe,
não por afã da morte ou
mórbido enfado,
mas para recomeçar como
criança.
Fonte: Silva, A. C. &
Bueno, A., orgs. 1999. Antologia da poesia portuguesa contemporânea. RJ, Lacerda Editores. Poema publicado em livro em
1978.
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