16 junho 2015

Descobri que as coisas mudam e que tudo é pequeno...

F. Ponce de León

O chamado ‘Clube da Esquina’, movimento musical surgido em Belo Horizonte, na década de 1960, e que talvez represente o mais interessante e o mais agradável dos capítulos que formam a história da música popular brasileira, perdeu um dos seus integrantes: o compositor Fernando Brant.

De Caldas a Belo Horizonte

Quarto dos 11 filhos (um dos quais faleceu prematuramente) de Moacyr [‘Nonô’] Pimenta Brant (falecido em 2004), um juiz, e Yolanda Raimunda da Rocha Brant (falecida em 2011), uma dona de casa, Fernando Rocha Brant nasceu em Caldas, pequena cidade no sul de Minas Gerais, em 9/10/1946.

Acompanhando as remoções do pai, a família mudava de cidade com certa regularidade – seu irmão mais velho, por exemplo, o ex-deputado federal (1987-2007) e ex-ministro da Previdência e Assistência Social (2001-2002), Roberto Brant, nasceu em Belo Horizonte, mas alguns dos outros irmãos nasceram em outros municípios mineiros, como Pitangui, Uberaba e Diamantina. Em 1956, a família fixou residência em Belo Horizonte, onde ele então construiria a sua carreira profissional. Fez os estudos universitários na UFMG, obtendo um diploma de graduação em Direito, em 1970. Em 1972, casou com Leise Ferreira; o casal teve duas filhas, Ana Luiza e Isabel, além de um filho de criação, Diógenes.

Fernando Brant gostava muito de futebol – por influência paterna, tornou-se torcedor do América Futebol Clube (MG). Por sorte, porém, foi longe dos campos de futebol que ele se revelaria um craque.

Um craque das letras

Na história da música popular brasileira, raros compositores souberam introduzir, como ele, força poética em suas letras. Talvez porque a sua obra tenha sido erguida – notadamente nas décadas de 1960 e 1970 – a partir de alicerces fortemente literários. E o mais importante: ele aparentemente não se deixou contagiar pelo concretismo, movimento literário de vanguarda iniciado na década de 1950 e que exerceu uma enorme influência sobre poetas, artistas plásticos e músicos. Ocorre que, no âmbito da música popular, os compositores influenciados pelo concretismo tendiam (e, a rigor, ainda tendem) a ver a elaboração das letras como um mero jogo de palavras, com pouco ou nenhum interesse por temáticas que fujam do dia a dia das grandes cidades. (Compare, por exemplo, a letra de ‘Morro velho’ [1967], uma das poucas composições de Milton Nascimento, com a de ‘Alegria, alegria’ [1966], de Caetano Veloso.)

Brant era um compositor essencialmente lírico, ainda que às vezes fosse levado (ou se deixasse levar) pelas contingências. Seja como for, não é surpresa constatar que as suas composições de natureza ‘mais social’ tenham sido particularmente bem-sucedidas junto ao grande público. Entre os exemplos mais familiares, caberia citar (aqui, e ao longo deste artigo, as datas entre parêntesis se referem à gravação mais antiga que conheço) ‘Maria Maria’ (1978), ‘Credo’ (1978), ‘Unencounter (Canção da América)’ (1980), ‘Povo da raça Brasil’ (1980), ‘Notícias do Brasil (Os pássaros trazem)’ (1981), ‘Coração civil’ (1981), ‘Comunhão’ (1982), ‘Menestrel das Alagoas’ (1983) e ‘Canções e momentos’ (1987). Todavia, apesar do sucesso, estas são seriam necessariamente as suas obras mais líricas.

Algumas obras-primas

Compare os versos das canções acima com os de ‘Saudade dos aviões da Panair (Conversando no bar)’ (“[D]escobri que as coisas mudam e que tudo é pequeno...”) ou com os de ‘Promessas do Sol’ (“Você me quer forte/E eu não sou forte mais”), duas de suas primeiras composições (gravadas em 1974 e 1976, respectivamente) e, em minha opinião, duas de suas obras-primas.

Ou compare com os versos de ‘Travessia’ (1967) – sua primeira composição, escrita por insistência de Milton Nascimento, amigo e parceiro musical ao longo de toda a vida –, ‘Outubro’ (1967), ‘Sentinela’ (1968), ‘San Vicente’ (1972), ‘Milagre dos peixes’ (1973), ‘Ponta de areia’ (1974), ‘Boca a boca’ (1976) – talvez a menos conhecida de suas obras-primas –, ‘Caxangá’ (1977), ‘Maria solidária’ (1977), ‘Itamarandiba’ (1980), ‘Nos bailes da vida’ (1981), ‘Vendedor de sonhos’ (1987) e ‘Que virá dessa escuridão’ (1990).

Em meio a dezenas de composições, várias outras chamam a atenção, incluindo ‘Durango Kid’ (1970), ‘Paisagem da janela’ (1972), ‘Manuel, o audaz’ (1973), ‘Idolatrada’ (1975), ‘Céu de Brasília’ (1977), ‘Paixão e fé’ (1977), ‘O que foi feito deverá’ (1978), ‘Feira moderna’ (1978), ‘O medo de amar é o medo de ser livre’ (1978), ‘Roupa nova’ (1979), ‘Bola de meia, bola de gude’ (1980), ‘Vevecos, panelas e canelas’ (1981), ‘Fruta boa’ (1983), ‘Raça’ (1985), ‘Encontros e despedidas’ (1985), ‘Amormeuzinho’ (1986), ‘Planeta blue’ (1987), ‘Meu mestre coração’ (1987) e ‘Coisas da vida’ (1990) – sem contar ‘Para Lennon e McCartney’ (1970), cuja letra foi escrita a quatro mãos. A respeito desta última, eis uma lembrança de Márcio Borges (BORGES 1996, p. 239-40):

“[...] Lô [Borges] parou de tocar e nos propôs:
– Então, vocês dois não querem meter uma letra nisso não?
– Só se for agora – respondeu Fernando [Brant].
– Qual é o tema que você pensou pra ela? – perguntei [Márcio Borges].
– Na verdade, eu estava pensando na parceria do John e do Paul... nas parcerias, né. A gente aqui, também fazendo as nossas... e eles nunca vão saber. Mas pode ser outra coisa qualquer que você sentirem – Lô se apressou em dizer.
– Por mim esse tema está ótimo – disse Fernando.
– Eu faço a primeira parte e você faz a segunda – combinei com ele. [...] Na minha parte estava escrito:

Por que vocês não sabem
do lixo ocidental
Não precisam mais temer
Não precisam da timidez
todo dia é dia de viver
Por que você não verá
Meu lado ocidental
Não precisa medo não
Não precisa da solidão
Todo dia é dia de viver...

Na parte do Fernando estava escrito:

Eu sou da América do Sul
eu sei vocês não vão saber
Mas agora sou cowboy
sou do ouro, eu sou vocês
Sou do mundo, sou Minas Gerais.

[...] Quanto ao nome, ficou sendo o que Lô sugeriu: ‘Para Lennon e McCartney’.”

Coda

Além das parceiras tradicionais – e.g., com Milton Nascimento, os irmãos Borges (Márcio e Lô), Beto Guedes, Toninho Horta ou Tavinho Moura –, Brant também se envolveu com vários outros empreendimentos artísticos. Também trabalhou alguns anos como jornalista. Mais recentemente, como presidente da União Brasileira dos Compositores, foi um defensor dos direitos autorais de obras musicais, o que lhe valeu alguns dissabores e alguns desafetos, inclusive entre os seus pares.

Fernando Brant faleceu na última sexta-feira (12), aos 68 anos, em decorrência de complicações advindas de um transplante de fígado malsucedido. Além da viúva e dos três filhos, deixou dois netos. Deixou também uma enorme legião de amigos e admiradores.

De resto, não custa lembrar: letra de música não é sinônimo de poesia. Todavia, para quem vive chamando qualquer compositorzinho de ocasião de ‘poeta’, é imprescindível conhecer a obra desse gigante.

Referência citada

BORGES, M. 1996. Os sonhos não envelhecem: Histórias do Clube da Esquina. SP, Geração Editorial.

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