Descobri que as coisas mudam e que tudo é pequeno...
F. Ponce de León
O chamado ‘Clube da
Esquina’, movimento musical surgido em Belo Horizonte, na década de 1960, e que
talvez represente o mais interessante e o mais agradável dos capítulos que
formam a história da música popular brasileira, perdeu um dos seus integrantes:
o compositor Fernando Brant.
De Caldas a Belo Horizonte
Quarto dos 11 filhos (um dos
quais faleceu prematuramente) de Moacyr [‘Nonô’] Pimenta Brant (falecido em 2004),
um juiz, e Yolanda Raimunda da Rocha Brant (falecida em 2011), uma dona de
casa, Fernando Rocha Brant nasceu em Caldas, pequena cidade no sul de Minas
Gerais, em 9/10/1946.
Acompanhando as remoções
do pai, a família mudava de cidade com certa regularidade – seu irmão mais
velho, por exemplo, o ex-deputado federal (1987-2007) e ex-ministro da
Previdência e Assistência Social (2001-2002), Roberto Brant, nasceu em Belo
Horizonte, mas alguns dos outros irmãos nasceram em outros municípios mineiros,
como Pitangui, Uberaba e Diamantina. Em 1956, a família fixou residência em Belo
Horizonte, onde ele então construiria a sua carreira profissional. Fez os
estudos universitários na UFMG, obtendo um diploma de graduação em Direito, em
1970. Em 1972, casou com Leise Ferreira; o casal teve duas filhas, Ana Luiza e Isabel,
além de um filho de criação, Diógenes.
Fernando Brant gostava
muito de futebol – por influência paterna, tornou-se torcedor do América
Futebol Clube (MG). Por sorte, porém, foi longe dos campos de futebol que ele
se revelaria um craque.
Um craque das letras
Na história da música
popular brasileira, raros compositores souberam introduzir, como ele, força
poética em suas letras. Talvez porque a sua obra tenha sido erguida – notadamente
nas décadas de 1960 e 1970 – a partir de alicerces fortemente literários. E o
mais importante: ele aparentemente não se deixou contagiar pelo concretismo, movimento
literário de vanguarda iniciado na década de 1950 e que exerceu uma enorme
influência sobre poetas, artistas plásticos e músicos. Ocorre que, no âmbito da
música popular, os compositores influenciados pelo concretismo tendiam (e, a
rigor, ainda tendem) a ver a elaboração das letras como um mero jogo de
palavras, com pouco ou nenhum interesse por temáticas que fujam do dia a dia
das grandes cidades. (Compare, por exemplo, a letra de ‘Morro velho’ [1967],
uma das poucas composições de Milton Nascimento, com a de ‘Alegria, alegria’ [1966],
de Caetano Veloso.)
Brant era um compositor
essencialmente lírico, ainda que às vezes fosse levado (ou se deixasse levar)
pelas contingências. Seja como for, não é surpresa constatar que as suas composições
de natureza ‘mais social’ tenham sido particularmente bem-sucedidas junto ao grande
público. Entre os exemplos mais familiares, caberia citar (aqui, e ao longo
deste artigo, as datas entre parêntesis se referem à gravação mais antiga que
conheço) ‘Maria Maria’ (1978), ‘Credo’ (1978), ‘Unencounter (Canção da América)’
(1980), ‘Povo da raça Brasil’ (1980), ‘Notícias do Brasil (Os pássaros trazem)’
(1981), ‘Coração civil’ (1981), ‘Comunhão’ (1982), ‘Menestrel das Alagoas’ (1983)
e ‘Canções e momentos’ (1987). Todavia, apesar do sucesso, estas são seriam necessariamente
as suas obras mais líricas.
Algumas obras-primas
Compare os versos das
canções acima com os de ‘Saudade dos aviões da Panair (Conversando no bar)’ (“[D]escobri
que as coisas mudam e que tudo é pequeno...”) ou com os de ‘Promessas do Sol’ (“Você
me quer forte/E eu não sou forte mais”), duas de suas primeiras composições (gravadas
em 1974 e 1976, respectivamente) e, em minha opinião, duas de suas obras-primas.
Ou compare com os versos
de ‘Travessia’ (1967) – sua primeira composição, escrita por insistência de
Milton Nascimento, amigo e parceiro musical ao longo de toda a vida –, ‘Outubro’
(1967), ‘Sentinela’ (1968), ‘San Vicente’ (1972), ‘Milagre dos peixes’ (1973), ‘Ponta
de areia’ (1974), ‘Boca a boca’ (1976) – talvez a menos conhecida de suas
obras-primas –, ‘Caxangá’ (1977), ‘Maria solidária’ (1977), ‘Itamarandiba’
(1980), ‘Nos bailes da vida’ (1981), ‘Vendedor de sonhos’ (1987) e ‘Que virá
dessa escuridão’ (1990).
Em meio a dezenas de
composições, várias outras chamam a atenção, incluindo ‘Durango Kid’ (1970), ‘Paisagem
da janela’ (1972), ‘Manuel, o audaz’ (1973), ‘Idolatrada’ (1975), ‘Céu de
Brasília’ (1977), ‘Paixão e fé’ (1977), ‘O que foi feito deverá’ (1978), ‘Feira
moderna’ (1978), ‘O medo de amar é o medo de ser livre’ (1978), ‘Roupa nova’
(1979), ‘Bola de meia, bola de gude’ (1980), ‘Vevecos, panelas e canelas’
(1981), ‘Fruta boa’ (1983), ‘Raça’ (1985), ‘Encontros e despedidas’ (1985), ‘Amormeuzinho’
(1986), ‘Planeta blue’ (1987), ‘Meu mestre coração’ (1987) e ‘Coisas da vida’
(1990) – sem contar ‘Para Lennon e McCartney’ (1970), cuja letra foi escrita a
quatro mãos. A respeito desta última, eis uma lembrança de Márcio Borges
(BORGES 1996, p. 239-40):
“[...]
Lô [Borges] parou de tocar e nos propôs:
–
Então, vocês dois não querem meter uma letra nisso não?
– Só
se for agora – respondeu Fernando [Brant].
– Qual
é o tema que você pensou pra ela? – perguntei [Márcio Borges].
– Na
verdade, eu estava pensando na parceria do John e do Paul... nas parcerias, né.
A gente aqui, também fazendo as nossas... e eles nunca vão saber. Mas pode ser
outra coisa qualquer que você sentirem – Lô se apressou em dizer.
– Por
mim esse tema está ótimo – disse Fernando.
– Eu
faço a primeira parte e você faz a segunda – combinei com ele. [...] Na minha
parte estava escrito:
Por que vocês não sabem
do lixo ocidental
Não precisam mais temer
Não precisam da timidez
todo dia é dia de viver
Por que você não verá
Meu lado ocidental
Não precisa medo não
Não precisa da solidão
Todo dia é dia de viver...
Na
parte do Fernando estava escrito:
Eu sou da América do Sul
eu sei vocês não vão saber
Mas agora sou cowboy
sou do ouro, eu sou vocês
Sou do mundo, sou Minas Gerais.
[...]
Quanto ao nome, ficou sendo o que Lô sugeriu: ‘Para Lennon e McCartney’.”
Coda
Além das parceiras
tradicionais – e.g., com Milton Nascimento, os irmãos Borges (Márcio e Lô),
Beto Guedes, Toninho Horta ou Tavinho Moura –, Brant também se envolveu com vários
outros empreendimentos artísticos. Também trabalhou alguns anos como jornalista.
Mais recentemente, como presidente da União Brasileira dos Compositores, foi um
defensor dos direitos autorais de obras musicais, o que lhe valeu alguns dissabores
e alguns desafetos, inclusive entre os seus pares.
Fernando Brant faleceu na
última sexta-feira (12), aos 68 anos, em decorrência de complicações advindas
de um transplante de fígado malsucedido. Além da viúva e dos três filhos,
deixou dois netos. Deixou também uma enorme legião de amigos e admiradores.
De resto, não custa
lembrar: letra de música não é sinônimo de poesia. Todavia, para quem vive
chamando qualquer compositorzinho de ocasião de ‘poeta’, é imprescindível
conhecer a obra desse gigante.
Referência citada
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