06 março 2016

Variação I

Ana Hatherly

a manhã acontece quando no movimento aparente da sucessão
dos dias e das noites a terra de súbito ilumina o sol não
tão de súbito porém que o dia acontece lentamente acontece
tudo lentamente porém só de súbito se torna real e súbito
é tudo o que foi lentamente acontecendo até ao momento de
explodir em realidade súbita de súbito é manhã como de súbito
brota uma fonte e tão subitamente intermitente como o dia
a fonte é uma súbita intermitência fenómeno que se explica
pelo principio do vaso de tântalo e toda a magia de uma
fonte resulta do súbito escoamento do ramo maior de um
sistema de comunicantes cujo sifão escorvado permite a
passagem do formoso líquido de um vaso para outro existente
pelo seu fluir e origem da origem fluente e como leonor
é um produto da sucessão dos dias e das noites e do facto
de erguer-se de seu leito onde esteve intermitente durante
a noite escura e subitamente irrompe a fonte o dia e leonor
poisa o pé no chão frio vaso onde nasce a verdura e na ponta
de seus dedos estremecem os filamentos das nervuras das
folhas e leonor treme e seus nervos estremecem até ao registo
das sensações e a mensagem da verdura está na origem de
seus nervos motores transmitirem ordens por seu corpo
e os belos músculos flectem em sua perna para trás
em sua coxa para cima em seu ventre para dentro
em seus ombros para diante e em sua cabeça para baixo
e os músculos orbiculares recebem a mensagem da verdura
e quase cerram as suas belas pálpebras
e sua pupila se contrai e um arrepio
em seus seios endurece a rosada floração de seus mamilos
e tudo isto acontece na intermitência do mecanismo da
sensibilidade só
porque é manhã e surge o dia
e brotam as fontes e há verdura

Fonte: Silva, A. C. & Bueno, A., orgs. 1999. Antologia da poesia portuguesa contemporânea. RJ, Lacerda Editores. Poema publicado em livro em 1970.

0 Comentários:

Postar um comentário

<< Home

eXTReMe Tracker