País em inho
Manuel Alegre
Não é possível suportar
tanta água benta
tantos infernos tantos
paraísos
tanta alma a salvar-se.
Não é possível
tanto salvador vestido de
absoluto.
Neste país do pouco.
Neste país do muito.
Não é possível suportar
tanta sebenta
tanta batina tanto sebo
tanta cela.
Até Marx vestiram de
sotaina
ó Antero: há um jesuíta
um fanático um beato.
Neste país abstracto.
Neste país abstracto.
Não é possível suportar
tanta ideia cinzenta
tanto bolor de caserna e
de convento
lajes lírios lágrimas. E
os círios.
Tanto 1º de Novembro e
tanto Império.
Neste país tão sério.
Neste país tão sério.
Não haverá por aí outra
ferramenta?
Não haverá ideias armas
que não sejam
bentas? Um grande ponto
de interrogação?
Um amor laico? Um
revolucionário ateu
nas tintas para o inferno
e para o céu?
Não é possível suportar
tanta agonia
tanta nódoa de cera tanta mancha de sangue
tanto xaile a cheirar a
sacristia.
(Que eu vi lá longe um
homem crucificado
por este país fardado.
Por este país fardado.)
E já não posso suportar
tanta doença
tanta cebola a fazer de
flor tanta mezinha
tanta Zita Santa Zita
tanto rito
tanto guisado e
catecismo. Tantas coisas em inho.
Neste país quietinho ó Pascoais. Neste país quietinho.
É preciso (como diz o
Torga) correntes de ar
pois falta ó Cesariny é
verdade que falta
por aqui uma grande razão.
(Que não seja só uma
palavra.) Falta uma fúria.
Neste país lamúria. Neste
país lamúria.
Um pouco mais de brasa.
Ou se preferem
(como diria Mário Sá-Carneiro)
Um pouco mais de golpe de
asa. Pois falta ó Breton
um amor louco (laico e
louco).
Neste país do pouco.
Neste país do pouco.
Falta o porquê de António
Sérgio. Falta o porquê.
Faltam concelhos
realmente municipais.
Que não é possível
suportar tanta gordura
tanta tristeza magra
tanta rodilha tantos cestos.
Neste país de restos.
Neste país de restos.
Não é possível suportar
tanto chicharro
tanta espinha na alma
tanta côdea
tanta azeitona miudinha
tanta malha
tanta mágoa apanhada uma
a uma. (Que é tudo
o que se apanha. Neste
país tão mudo. Neste país tão mudo.)
Um pouco um pouco de
ternura.
(Que não seja só uma
canja de galinha.)
Um pouco um pouco de
clareza.
(Que não seja só o sol.
Que não seja só o sul.)
Neste país azul. Neste
país azul.
Que não é possível
suportar tanta mentira
tanta gente de esquerda a
viver à direita
tanta apagada e vil
baixeza tanta reza
tanto cochicho onde é
preciso falar alto.
Neste país a salto. Neste
país a salto.
Não é possível suportar
tanto cotim
tanta manga de alpaca
tanta canga
tanta ganga suada tanta lixívia
tanta lezíria tanto corno
tanto chouriço.
Neste país castiço. Neste
país castiço.
Não é possível tanto
macho tanta fêmea
tanta faca e alguidar
tanto magala
tanta santa tanta puta
tanta infanta
tanta saca tanta faca
tanto fraque.
Neste país a saque. Neste
país a saque.
Pois falta aqui o verbo
ser. E sobra o ter.
Falta a sobra e sobra a
falta. Ó proletários da tristeza
falta a ciência mais
exacta: a poesia.
E há muito já que um
poeta disse: É a Hora.
Neste país de aqui. Neste
país de agora.
Fonte: Silva, A. C. &
Bueno, A., orgs. 1999. Antologia da poesia portuguesa contemporânea. RJ, Lacerda Editores. Poema publicado em
livro em 1981.
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