Faltasse-me a infância e quase tudo me faltava
José Jorge Letria
Faltasse-me a infância e quase tudo me faltava
até o pequeno sol pintado a lápis de cera
sobre o papel pardo das contas do mês.
Assento o cotovelo sobre o parapeito da janela
e os rostos que vejo desfilar têm a idade
das minhas lembranças mais longínquas, alguns
envelheceram como as árvores e as colchas
das camas onde tanto amor foi adiado, outros
conservaram a frescura efémera de uma pétala
atrás de um vidro dentro da memória. São rostos
dilacerados pelo sonho e pela espera. Tornaram-se
perversos a ver o tempo passar por eles
sem deles se compadecer, como os pássaros
que levam na bagagem imaterial do voo
a sede de agosto para a outra metade do mundo.
Fonte: Silva, A. C. & Bueno, A., orgs. 1999. Antologia da poesia portuguesa contemporânea. RJ, Lacerda Editores. Poema publicado em livro em 1991.
0 Comentários:
Postar um comentário
<< Home