13 junho 2023

Até quando a sociedade irá inalar e conviver com a sujeira que o mercado despeja no ar?

F. Ponce de León.

1.

Ainda sobre o imbróglio Petrobras vs. Ibama (ver aqui e aqui). Em 5/6, o informativo Petronotícias divulgou uma entrevista com um pesquisador sênior na área de sedimentologia (geologia) (ver aqui). (Não conhecia o entrevistado, assim como não conhecia o informativo. Soube da entrevista em um sítio malcheiroso que reproduziu a entrevista.) O título da matéria – ‘Pesquisador que estudou a foz do Amazonas afirma que Greenpeace manipulou dados sobre a existência de corais’ – já dá o tom da coisa: o malvado e poderoso Ibama, com base em dados falsos fornecidos por ONGs estrangeiras mal-intencionadas, está (mais uma vez) atrapalhando o trabalho da nossa querida e abnegada Petrobras.

A julgar pelo conteúdo da matéria, além de cutucar ONGs, o sujeito aproveitou para falar umas bobagens sobre os corais. A certa altura, por exemplo, ele teria dito: “No Brasil, só existem seis espécies de corais vivos, que são encontrados na região nordestina.” Não é bem assim. De acordo com a literatura, o número de espécies registradas no litoral do país é ao menos 10 vezes maior: mais de 60 espécies, vinte e poucas das quais são endêmicas. Outra coisa: as formações coralíneas não estão restritas ao litoral do Nordeste; corais (ainda) podem ser encontrados (mesmo que espaçadamente) desde o litoral da região Norte até o litoral de SC.

2.

Estamos a falar da maior empresa do país. Como qualquer petroleira, a Petrobras tenta melhorar a sua imagem diante da opinião pública. Por conta disso, ela distribui algumas gorjetas, alguns farelos de bolo. Ora, levando em conta que a maioria das grandes companhias em operação no país nem farelo de bolo distribui, o papel da petroleira ganha relevo e é muito bem-visto por parte da mídia, além, claro, por parte de muitos empreendedores. A propósito, a empresa patrocina (ou patrocinava) uma iniciativa de estudiosos brasileiros chamada de Coral Vivo. (O empreendimento, ao que parece, foi ideia de gente que trabalha no Museu Nacional, RJ – o mesmo que foi destruído por um incêndio evitável, em 2018.)

3.

Qualquer veículo de mídia interessado em corais deveria falar com gente que sabe do que está falando. Eu mesmo não conheço pessoalmente nenhum pesquisador brasileiro que lide com esses animais (tive um amigo, já falecido, que estudava gorgônias), mas a julgar pela bibliografia disponível sobre o grupo, citaria o nome de ao menos dois: Sérgio Stampar (Unesp) e André Morandini (USP).

Falando ainda em corais, os leitores mais novos talvez não se lembrem do caso ou sequer o conheçam, mas o fato é que, ainda no início da década de 1980, as petroleiras queriam perfurar dentro do arquipélago de Abrolhos (litoral sul da BA, quase na divisa com o ES). Houve muita correria, muita resistência, embora ainda estivéssemos na ditadura. (Em 1983, foi criado um parque nacional na região. O parque ocupa apenas 880 km2 – algo próximo a um quadrado com 30 km de lado –, mas é um marco, visto que foi a primeira unidade de conservação marinha do país.)

4.

Gosto de corais, assim como gosto de gorgônias. Mas não sou advogado do Ibama, muito menos de alguma ONG verde. Estou aqui apenas e tão somente para expor e defender um ponto de vista e aí, quem sabe, levantar uma hipótese: o rei está nu.

Fato é que o pano de fundo do imbróglio Petrobras vs. Ibama não tem a ver com ONGs. Nem tem a ver com corais. Não tem a ver sequer com a Amazônia ou com o oceano Atlântico. O imbróglio que de fato urge e está a nos cobrar uma posição é sobre inércia, é sobre petróleo, é sobre energia limpa, é sobre transporte inteligente.

Sim, energia limpa e transporte inteligente. Ou não caberia a qualquer cidadão minimamente preocupado com a sociedade brasileira exigir ações inteligentes por parte da maior empresa do país? (Quando digo exigir inteligência, claro, estou a pensar tão somente em gente que integra o corpo técnico da companhia.)

5.

Um erro grave e recorrente nessas discussões é tratar os conceitos de sociedade e mercado como sinônimos. Não podemos incorrer nesse erro. A produção de petróleo (assim como a de eletricidade, automóveis, geladeiras, arroz, leite em pó, goiabada etc.) não visa atender as sociedades, visa atender aos mercados. A rigor, cada bem ou serviço tem o seu próprio mercado. Como consumidor, por exemplo, eu mesmo participo de alguns mercados – e.g., arroz e goiabada –, mas não participo de muitos outros – e.g., automóveis, motocicletas ou iates.

6.

Pode não parecer, mas já estamos no futuro. A capital do país, por exemplo, inaugurada outro dia, já tem mais de 60 anos. Estamos em 2023. E está a ocorrer hoje com o petróleo o que ocorreu com a lenha a partir do século 17: a busca por fontes alternativas de energia (ver artigo ‘Finda a lenha, eis o carvão: Como foi mesmo que entramos nessa enrascada?’).

Antes do fim do século 18, a lenha praticamente já não era mais usada para fundir o ferro. Cito: “No último quarto do século 18, queimar coque para fundir o ferro havia se estabelecido como o procedimento padrão na indústria siderúrgica. Com a crise da madeira, muitos formos haviam sido fechados. A nova técnica não só salvou a indústria, como a fez prosperar. Em meados da década de 1790, a produção de ferro à base de coque equivalia ao triplo da produção de anos anteriores, ainda à base de carvão vegetal” (ver aqui).

Como fonte de energia, o petróleo de hoje pode ser substituído por outras coisas (tão ou mais eficientes e muito mais limpas), incluindo energia nuclear e energia solar. Esta última seria a melhor (definitiva?) alternativa para a sociedade, mas não para os mercados, razão pela qual as companhias que controlam as fontes convencionais estão a fazer corpo mole e a atrasar a chamada transição energética.

7.

Atualmente, considerando apenas a geração de eletricidade, as principais fontes de energia em escala planetária são as seguintes (em ordem decrescente de importância): carvão mineral, hidrelétrica, energia nuclear, gás, petróleo e fontes alternativas (esta última categoria inclui energia solar, eólica e outras).

Entre 1971 e 2018 (passando por 1990 e 2005), a maior parte da produção mundial (64-75%) de eletricidade veio da queima de combustíveis fósseis (carvão, gás e petróleo). Ao longo desse período, o peso relativo do carvão (a principal fonte) se manteve mais ou menos inalterado (entre 35 e 40%). Os outros combustíveis fósseis citados (gás e petróleo), no entanto, exibiram tendências opostas. A importância relativa do gás aumentou, tendo saltado de uns 12% (1971) para mais de 20% (2018). A do petróleo diminuiu, caindo de uns 20% (1971) para menos de 5% (2018). Entre 1971 e 2018, as fontes alternativas foram as que mais ganharam espaço, saltando de percentuais inexpressivos (1% ou menos, em 1971, 1990 e 2005) para pouco mais de 10% em 2018.

8.

A grande barreira a impedir a utilização em larga escala de uma nova fonte de energia não são os corais do litoral brasileiro. A barreira a impedir o desenvolvimento e a utilização em larga escala da energia solar talvez seja o fato de que se trata de uma fonte de energia, digamos, descentralizada; do tipo cuja adoção plena implicaria no fim de muitos mercados. As contas de luz e os postos de gasolina, por exemplo, teriam de mudar ou simplesmente deixariam de existir (ver artigo ‘O fim das contas de energia’). Presumo que o leitor, assim como eu, vê isso com bons olhos. Todavia, não acho que as petroleiras (Shell, Exxon, BP, Petrobras etc.) estejam interessadas nisso. Ao contrário: o que elas fazem – e fazem para valer (ver, por exemplo, como a Shell interferiu e manipulou no relatório final da Conferência da ONU em Joanesburgo, em 2002) – é retardar o progresso técnico.

9.

Não, o imbróglio Petrobras vs. Ibama não é sobre ONGs, não é sobre corais, não é sequer sobre a Amazônia. É sobre energia limpa, é sobre transporte inteligente.

Motores a combustão são hoje um testemunho de duas coisas medonhas: deliberado atraso tecnológico e deliberado descaso com a atmosfera e, claro, com as sociedades. Em outras palavras, a queima de petróleo atende e satisfaz aos mercados. O lado negativo, porém, penaliza as sociedades como um todo: inalar e conviver com a sujeira que a combustão despeja no ar.

Sim, todos nós estamos a inalar fuligem e fumaça resultantes da combustão de motores. Inalamos sujeira todas as horas do dia, todos os dias do ano, todos os anos das nossas vidas – até quando?

* * *

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