04 junho 2023

A um púlpito quebrado

Lúcio de Mendonça

Ao livre pensador Angelo Agostini.

Estás inofensivo, estás vazio,
     Velho caixão malvado,
Que trazias de Roma, consignado
     Às multidões beatas
O preconceito estúpido e sombrio
E o dogma bestial, de quatro patas.

Tu nunca foste compassivo e terno:
     Ao pobre, quase nu,
     Que lhe dizias tu?
Os terrores dramáticos do inferno!
     Por todos os três lados,
Blasfemavas feroz contra o Progresso,
Que foi 93? foi um possesso,
     Crivado de pecados;
A Liberdade, um sonho sedicioso;
A Ciência, uma cínica atrevida;
Só a Religião é que é a vida,
E a reza, o largo porto bonançoso.

Da Imprensa tu disseste mais horrores
Do que Mafoma disse do toicinho...
     É o pestífero ninho
Dos abutres do mal e da impiedade,
     Covil de pecadores
Que têm de arder por toda a eternidade.

Hoje, caída em ruínas a capela,
Estás à chuva e ao vento e ao sol aberto...
     Estás melhor, decerto.
Hoje, em lugar do círio, vês a estrela.
Do mau cheiro de incenso desinfecto,
     Agora perfumou-te
A viva aragem fresca da campina;
E tens por vasto, radioso teto
     A cúpula divina,
A constelada abóbada da noute.

Em vez do órgão fanhoso, ouves agora
     O cântico das aves,
     As músicas da aurora.
     E sobre as tuas traves,
Donde escorria a onda das asneiras,
Gemem de amor as pombas forasteiras.

Novo padre Jacinto, sacudiste
O teu jugo católico romano,
E em vez de velho púlpito tão triste,
És um digno caixão, livre e profano.
     E, pois te restituíste
À grande comunhão da natureza,
     Acharás, com certeza,
Um fim mais nobre, donde te provenha
De ser útil a esplêndida alegria:
     Acabarás em lenha
Para aquecer de um pobre a noite fria.

Fonte (última estrofe): Martins, W. 1978. História da inteligência brasileira, vol. 4. SP, Cultrix & Edusp. Poema publicado em livro em 1889.

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