17 julho 2023

Darei minhas joias por um rosário (II)


F. Ponce de León.

Darei minhas joias por um rosário,
Trocarei meu palácio suntuoso por um cemitério,
Meus ricos trajes pelas roupas de um mendigo,
Minhas taças cinzeladas por um prato de madeira,
Meu cetro por um bastão de peregrino,
Meus vassalos por um par de santos esculpidos,
E meu grande reino por um pequeno túmulo,
Mais que modesto, um túmulo obscuro.
William Shakespeare [1].

Repousa aqui Dulcineia,
Que, sendo gorda e corada,
Em cinza e pó foi mudada
Pela morte horrenda e feia.

Foi de castiça raleia,
E teve assomos de dama,
Do grão Quixote foi chama,
E foi glória de sua aldeia.
Miguel de Cervantes [2].

1. Dia 7 de julho, a notícia.

Na noite de 7/7, sexta-feira retrasada, meu caçula esteve aqui em casa. Havíamos marcado e desmarcado uma pizza e, no fim das contas, ele veio apenas trazer dois itens de cozinha que eu carecia com alguma urgência. Tudo, porém, logo se evaporou – consternado, ele me informou que a mãe estava internada em um hospital da capital, tendo sido diagnosticada com um tumor no fígado. (Um filme de muitas cenas correu pela minha cabeça. E, por alguns instantes, me vi cercado por moinhos.)

(Ela e eu fomos casados por 27 anos [1994-2021]. A separação veio em meados de 2021, ainda em plena pandemia. Não nos encontramos pessoalmente desde então. Embora de vez em quando trocássemos mensagens pelo celular. A partir de 8/7, passei a enviar ao menos um alô diário. Ela respondeu a alguns, incluindo o ‘Bom dia!’ que enviei na manhã do dia 14.)

2. Dia 14 de julho, o pesadelo.

O diagnóstico de que um tumor havia sido identificado no fígado, ela recebeu em junho. Em 7/7, quando eu soube do problema, ela já estava internada. Não sei detalhes sobre o curso das conversas que ela teve com os profissionais envolvidos (médicos, psicólogos etc.), seja na fase do diagnóstico, seja já na internação. Mas soube agora que ela estava decidida a se submeter (o mais depressa possível) a uma cirurgia.

Com previsão inicial de quatro horas de duração (ou algo assim), a cirurgia teve início por volta de 14:45 do dia 14. A julgar pelos relatos que recebi (na sexta e no sábado) de quem estava com ela (a irmã e o nosso filho caçula, além de nossa filha, que estava na retaguarda, em casa), o curso dos acontecimentos foi mais ou menos o que segue.

A cirurgia teve inicio como um procedimento não invasivo. O tumor foi encontrado e removido. Já na parte final do que seria uma intervenção normal, um vaso foi rompido. Tiveram de abrir. Houve uma hemorragia. (E muita coagulação.) Conseguiram estancar a hemorragia, mas ela só saiu do centro cirúrgico depois das 21:00. E já saiu intubada.

3. Decisões críticas exigem evidências sólidas.

Uma pista decisiva na fase de diagnóstico foram as imagens do tumor. Entre o diagnóstico, em junho, e o dia da cirurgia (14/7), mais de uma tomografia teria sido produzida – mostrando tórax, abdome, fígado etc. Não vi nenhuma delas ou sequer sei quantas foram produzidas. Muito menos sei sobre a resolução das imagens e sobre a validade desses materiais como evidências confiáveis do tumor (e.g., dimensões, localização e vizinhança).

A opção inicial seria conduzir uma cirurgia de ‘barriga aberta’. Mas isso mudou e a cirurgia se converteu em ‘não invasiva’. (O que soou para todo mundo, para mim inclusive, como um bom sinal – algo do tipo: tumor bem localizado, de pequenas dimensões e, sobretudo, de fácil extração.)

Diante de uma hemorragia, porém, qualquer observador bem-intencionado poderia (e deveria) se interrogar. Afinal, fazer uma intervenção de modo não invasivo parece exigir uma boa margem de segurança sobre a irrigação do tumor. (Tumores não crescem sem uma fonte de nutrientes – leia-se: acesso a vasos sanguíneos.)

Por mais hábil e experiente que seja o cirurgião que está a conduzir um procedimento desses, iniciada a hemorragia (notadamente no fígado), a situação se converte em uma verdadeira corrida contra o tempo. Torna-se urgente abrir o abdome e estancar a sangria... Foi o que aconteceu com a minha Dulcineia – o abdome dela virou uma poça de sangue coagulado ou em coagulação.

4. Pergunta ainda sem resposta: De onde veio o sangue?

Salvo melhor juízo, uma pergunta simples, porém de fundamental importância para entendermos o que houve no dia 14 (e para a qual eu ainda não obtive resposta) seria: Qual foi a origem da hemorragia? O sangue veio da vascularização do tumor ou veio de algum vaso vizinho que foi rompido durante o procedimento não invasivo?

Olhando de fora e mesmo sem acesso ao prontuário dela (documento que os hospitais costumam manter longe dos olhos dos familiares), ouso levantar aqui duas hipóteses: (i) O procedimento inicial não estava devidamente amparado pelas evidências (tomografia e outros exames preliminares); e/ou (ii) alguns dos procedimentos adotados foram malconduzidos.

Entender o que houve, evidentemente, não irá trazê-la de volta. Nada neste mundo o faria [3]. Razão pela qual, em casos assim, é comum que os familiares não queiram saber do que há nos prontuários. É uma posição compreensível (e.g., descobrir que diagnósticos equivocados ou manipulações mal conduzidas resultaram na morte de alguém só deixa a gente com raiva e, pior, pode nos empurrar para um labirinto kafkiano).

5. Coda.

Todavia, para além de eventuais questões legais, vejo aqui um duplo problema (técnico e pedagógico): (i) – Nós, o povo, devemos aprender a refletir criticamente sobre o nível dos serviços que nos são oferecidos (em qualquer área). Serviço ruim não tem a ver só com escassez de recursos ou equipamentos. Não tem a ver com mais ou menos corrupção. Tem a ver, isto sim, com o baixo nível técnico dos profissionais que atuam no mercado. Em muitos casos, com o baixo nível técnico dos profissionais oriundos de nossas universidades – em qualquer área [4]; e (ii) – Profissionais fracos ou mal treinados, ainda que cheios de medalhas no peito ou diplomas na parede, não deveriam estar à frente de cargos ou tarefas de responsabilidade em nosso sistema de saúde. (E eu já conheci alguns profissionais assim, notadamente em hospitais de fachada reluzente.)

(Para minha surpresa, minha ex-esposa deixou uma carta escrita à mão na qual revelava o desejo de que, se fosse o caso, ela gostaria que o seu corpo fosse cremado. Assim será. A cerimônia está prevista para amanhã, terça-feira, às 18:00.)

*

NOTAS.

[1] Fala do personagem Ricardo II durante a Cena III, do Ato III, da peça Ricardo II (escrita por volta de 1595). Consta do livro Gigantes e anões (Best Seller, s/d [1990]), de Allan Bloom. O trecho da fala foi traduzido para o português por Oscar Mendes (William Shakespeare – Obras completas; José Aguilar, 1969). (O livro foi traduzido por Wladir Dupont.)

[2] Epitáfio na sepultura de Dulcineia del Toboso. Consta do Livro Primeiro, Cap. 52, de Dom Quixote (LPM, 2005), de Miguel de Cervantes. Originalmente publicado em 1605 (o Livro Segundo apareceu em 1615). Traduzido para o português por Viscondes de Castilho e Azevedo.

[3] Embora, devo aqui confessar, por volta de 2:00 da madrugada, pouco mais de uma hora após ter sido alcançado pela notícia do falecimento, eu tenha recebido a visita de uma estrela cadente – 20 anos morando aqui na zona rural onde moro, foi uma das raras que vi, para não dizer que foi a primeira. E olha que não teve nenhuma chuva de estrelas cadentes durante a madrugada. Mas eu sou míope e é bem provável que tenha sido apenas mais um dos meus moinhos...

[4] Vale lembrar, no caso específico da graduação em Medicina, que a maioria dos jovens profissionais que estão por aí é oriunda de faculdades particulares. Digo: instituições de segunda, terceira ou quinta categoria. Não é à toa que certos conselhos profissionais costumam agir como leões-de-chácara de prostíbulos.

* * *

1 Comentários:

Blogger Desi disse...

Caro Felipe, quando soube do acontecido fiquei imaginando a dor desta perda. Agora, lendo seu relato, percebo com maior clareza como foi e deve estar sendo, a tristeza. Um grande e fraterno abraço cheio de energia confortante.

18/7/23 08:05  

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