A cachorra
Pedro Dantas
Veio uma angústia de cima
Pelos ombros me agarrou
No mais fundo do meu peito
Sua lâmina cravou
Depois que no chão desfeito
O meu corpo estrebuchou
Pelos cabelos a fera
Sobre pedras me arrastou.
Meu corpo se espedaçou.
Mas ainda não satisfeita
Nova vida me insuflou:
Para mostrar poderio
Com a sua mão direita
Uma cidade arrasou
Na esquerda tomou um rio
Fogo nas águas soprou
As águas todas do rio
Com seu hálito secou
Levou-me aos cimos mais altos
No ar me imobilizou
Depois em súbitos saltos
A garra adunca fincando
No meu coração, lá do alto
Soltou um grito nefando
E sobre o mar me atirou.
Ah! nas águas do mar alto
Meu corpo logo afundou.
Veio buscar-me de novo:
Angina-pectoris, polvo,
Meu coração sufocou
E tais surras de chicote
Me deu, que a cada lambada
Minh’alma mortificada
Minh’alma perto da morte
Só a morte desejou;
Meu rosto esfregou na lama
As faces me babujou
E quando, à atroz azáfama,
O meu olhar se turvou
Vencido entregue arquejante
– Perdido o sangue das veias –
Na praia sobre as areias
Meu corpo exausto rodou.
Ah! pobre corpo do amante
Que até o fim se humilhou!
Então um riso infamante
As fauces lhe escancarou
Zombou da minha tolice
“Eu sou a Cachorra”, disse,
“Tu me chamaste: aqui estou.”
A essa voz dissiparam-se as sombras
E enquanto ela me mastigava os últimos restos da memória
Senti que da sua boca nasciam rosas
E vi que o céu se rasgava para a maravilhosa aparição.
Fonte: Pinto, J. N. 2004. Os cem melhores poetas brasileiros do século, 2ª edição. SP, Geração Editorial. Poema publicado em livro em 1946. ‘Pedro Dantas’ é pseudônimo de Prudente de Morais Neto.
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