23 março 2014

Na Fazenda Paraíso

Cora Coralina

Na Fazenda Paraíso, grandes terras de Sesmaria, nos dias
da minha infância ali viviam meu avô, minha bisavó Antônia,
que todos diziam Mãe Yayá, minha velha tia Bárbara, que era tia Nhá-Bá.
Essa governava a casa da cozinha ao coalho, passando pela copa,
onde fazia o queijo com o coalho natural e guardava os potes
sempre cheios de doce, e tinha uma pequena forma de açúcar,
coberta de barro, inviolada para uso exclusivo dela e da velha mãe.
Era um açúcar todo especial da garapa coada e mel espumado.
Essa tia, que renunciara ao casamento para melhor garantia
do seu lugar no céu, tinha se extremado em limpeza e asseio,
zelo pela administração da casa, amor à capela da fazenda
e cuidados com a velha mãe.
Tinha a sua horta, canteiros de couve e cebolinha verde,
salsa, hortelã e ervas santas, milagrosas, de curar.
Pimenteiras não faltando, mostarda e sarralhas,
tomatinho por todos os lados.
Rodeando o cercado, plantas de fumo, suas flores rosadas,
rejeitadas das abelhas.
Suas roseiras, jasmineiros, cravos e cravinas, escumilhas,
onde beija-flores faziam seus ninhos delicados
e pingentes de outros ninhos de um passarito amarelo sem mérito cantor,
engraçadinho piador – o caga-sebo.
Nas mangueiras enfolhadas faziam seus ninhos apanelados
e dobravam o canto inigualável, nas longas tardes de outubro,
todos os sabiás dos reinos de Goiás.
Corria pelo meio da horta o rego d’água e era o mundo verde do agrião.
A terra era fofa, recoberta de uma camada espessa de cana moída
e apodrecida, transformada em húmus, trazida da bagaceira do engenho.
Era um feudo privativo da tia Nhá-Bá, portão fechado a chave,
cerca impenetrável, era o seu reinado assistido pela
Nicota que trabalhava no terreiro.
Naquele vai-e-vem o dia todo meu avô dizia a ela: “Ocê não cansa, mana?”
E a resposta invariável: “Quando durmo”.
Minha bisavó, Mãe Yayá, passava o seu dia sentada
numa antiga mala encourada, e sobre esta estendido um couro de lobo.
Trazia, também, tiras do couro e palhas roxas
amarradas em atilhos nas pernas para evitar cãibras.
Vivia, já naquele tempo, vida vegetativa, assistida pela filha.
E meu avô, todos os dias, antes de outra iniciativa,
ia tomar a benção à velha mãe, saber o que lhe faltava.
Ela requeria sempre uma braçada de lenha recortada,
cavaqueira que ele mandava do engenho de serra,
era agasalhada debaixo da mesa onde lhe serviam as refeições.
Suas comidinhas apresentadas em pires e tigelinhas antigas,
sua mesa sempre recoberta de toalha grossa de tear
marcada com pontos de cruz, pontos de marca, se dizia, sua cama,
antiga marquesa, de sobrecéu e babados, ela, a velinha curvada,
passado no busto um xale de lã de cor indefinida de velhice crônica.
Agasalho de frio e de calor.
Nos pés, chinelos e meias pretas, saia escura, uma bata clara
abotoada no pescoço, mangas de punho.
Nas orelhas, uns brincos rebuçadinhos de preto, dizendo luto permanente.
Eram periodicamente descobertos e de novo recobertos,
isso, contavam os da casa, desde a morte do marido, já passados muitos anos.

Essa matriarca era de uma saúde admirável
e não mais se intrometia na direção da casa.
Tinha um pitinho pequenino de barro, feito a capricho pelas paneleiras do lugar.
O fumo era preparado por tia Nhá-Bá, colhido nas hortas. Destaladas,
murchas as folhas, eram entregues à velha mãe que fazia a torção
de forma especial, que só ela sabia fazer.
Eram postas para curtir num pequeno varal, num canto remoto do oratório.
Ela governava aquilo e daquela reserva se fazia com muita ciência
e pachorra, o torrado de meu avô. Trabalho esse entregue a Nicota.

Daquela bisavó emanava um cheiro indefinido e adocicado
de folhas murchas a que se misturavam fumo desfiado, cânfora e baunilha.
Sua sala, onde passava o dia, tinha pelos cantos amarrados,
murchos, pendurados de folhas diversas: congonha-do-campo,
arnica da serra, folha-santa, artemísia e gervão,
arrancadas com as raízes que eram sempre renovadas pelos moradores
que traziam seus agrados e respeito.
Tudo isso impregnava seus aposentos de um cheiro característico
e vago que gostávamos de respirar e que, dizia meu avô,
dava saúde à velha mãe.
Sua comidinha parca era repartida com os gatos,
que ela, com uma vara fina e longa, mantinha em disciplina.
Sua preocupação constante: saber das horas e se a serra estava encoberta.
Qualquer resposta que lhe dessem, satisfazia.
Durante o dia eram suas várias caminhadas para a cozinha.
Acender o pito, ali, alguém tinha que colher
e assentar na panelinha atochada de fumo uma brasinha minúscula
que fumaçava agradavelmente. Todos na casa e na fazenda
lhe pediam a benção e veneravam a grande anciã.

De noite, frio ou calor, chuva ou relâmpago, trovões,
céu barrado de estrelas ou lua, clara como o dia,
vinha para o meio da grande varanda uma telha-vã
com um braseiro trazido pela Ricarda.
Uma braçada de cavacos ou sabugos de milho das reservas de debaixo da mesa.
Vinha antes o couro de lobo, estendia-se no centro de um antigo canapé
forrado de sola negra, tacheado de tachas amarelas.
Tia Nhá-Bá trazia pelo braço a velha mãe,
fazia-a sentar no meio do vasto canapé,
aconchegava o chalé, ajeitava o saquitel das coisas misteriosas, inseparáveis
e acendia-se o braseiro.
De lado, bancos pesados, a mesa das refeições.
Meu avô puxava o tamborete da cabeceira, tomava assento.
Tio Jacinto vinha e se ajeitava, nós, gente menor, rodeávamos o fogo
sentadas em pedaços de couro de boi, pelo chão.
Gente grande nos bancos em fileira.
Ricarda, acocorada, alimentava o fogo.
Ficávamos ali em adoração naquele ritual sagrado,
que vem de milênios, de quando o primeiro fogo se acendeu na terra.
Contavam-se casos. Conversas infindáveis de outros tempos
e pessoas mortas.

Às tantas, vinha da cozinha o pote de canjica, bem cozida, caldo grosso,
colher de pau revolvendo aquele conteúdo amarelado ou todo branco.
Tia Nhá-Bá trazia da copa um pote bojudo, panela funda de barro,
cheia de leite com uma nata amarelada e grossa, a concha de tirar,
duas rapaduras cheirosas para serem raspadas.
Cada qual pegava seu  prato fundo, tigela e colher.
Tia Nhá-Bá servia com abundância, canjica e leite, rapadura à vontade.
Comia-se ruidosamente. Repetia-se e ainda sobrava canjica fria e grossa,
gelatinosa, para o demanhã seguinte.
Ruim era para a criançada, quando se matava uma vaca
e se juntava ao cozido um tal chamado osso-de-corrê.
Meu Deus, botavam a canjica a perder. Ninguém suportava.
Só os mais velhos exaltavam a substância daquela mistura.
Era ruim com sal, pior com rapadura. A meninada não tolerava aquilo.
Gente do terreiro vinha buscar as sobras e levava o pote quase cheio.
Pelas nove horas amortecia o fogo. Ricarda cabeceava de sono.
O braseiro ia se cobrindo lentamente de cinza clara.
Cada qual procurando as camas, colchões barulhentos de palha em couro
pelo chão, dormida das melhores.
De tempos em tempos um cerimonial complementar,
a que a criançada queria assistir.
A queima dos feixes de ervas ressecadas, já trocados por feixes novos.
Ricarda trazia a ramalhada. Tia Nhá-Bá ia lentamente arrumando
no braseiro esmorecido de jeito a evitar chamas,
e todo o casarão se enchia de uma fumaça de cheiro incomparável,
que de vez em quando me vem ao olfato da memória.
A velha matriarca, meu avô, tio Jacinto, nós todas,
tomávamos configurações fantásticas
naquele incensatório ritual e rústico.
Meu avô dizia que aquela fumaceira
que se esvaía lentamente pelos telhados e frestas,
desinfetava os miasmas e era a saúde da casa.

Dali caíamos num sono que o dia seguinte nos acordava
com o alarido dos pássaros e o berro das vacas crioulas,
muito diferente do mugido das raças casteadas.
Todo o gado da fazenda era crioulo e as raças eram chamadas
toutina, caraúna, mocha, curraleira e outras.
Não se falava em castas importadas, não havia doenças no gado,
esse parecia indene, era rústico e manso.
E o melhor para limpar de bernes e carrapatos era o sal grosso torrado,
e a salga geral se fazia uma vez por ano.
Era a vaquejada festiva. Vinha gente da cidade e vizinhos das fazendas,
rapaziada roceira, na esperança de ver as moças,
alguns olhares, alguma conversa, possível noivado, casamento.
Arrebanhavam o gado, traziam em correria para os currais.
Salgava-se, marcava-se a rês salgada cortando a ponta da cerda.
Marcava-se a ferro quente a rês ainda desferrada.
Castravam-se os machos. Alguns castradores mais antigos faziam
num canto do curral um braseiro e, ali, em espeto já preparados,
assavam e comiam com farinha, sal, pimenta e limão, as glândulas
espremidas dos garrotes. A casa via aquilo enojada. Não participava.
Era prática, uso, entre castradores velhos. Prolongavam-lhe a virilidade.
As cozinheiras se danavam quando solicitavam panelas
para variar do assado. Pediam que as quebrassem depois do uso.
Eles chacoteavam, lúbricos, e elas riam disfarçadas.
A casa da fazenda estava sempre cheia. Parentes da cidade que traziam amigos,
caçadores que alegravam meu avô. Todo o terreiro se movimentava
e os moradores recebiam carnes abundantes das cargas abatidas.
Os couros eram esticados com varas e pendurados de alto a baixo
no grande varandado da frente da casa.

Meninos sem conta interessados na caça morta.
O forno de barro estava sempre aceso
e a copa e a mesa das refeições transbordavam
da fartura e da abundância da casa grande.

Havia no tempo, uma prática medicinal, prescrição médica:
– Mudar de ares. Gente enfastiada, anêmica, insatisfeita,
nervosa da cidade, descorada, falta de apetite, vinham tentar melhoras
nos ares sadios, no leite farto e frutas das fazendas.
Eram bem aceitos e se fazia a grande hospitalidade antiga.
Tudo de melhor para os hóspedes. Havia mesmo na fazenda dois quartos
chamados quartos de hóspedes.
Deixávamos as camas, passávamos a dormir no couro, o que adorávamos,
nos colchões barulhentos de palha nova que ajudávamos a rasgar.
Um forro grosseiro e uma coberta de tear bastavam para nós.
Dormíamos de três a quatros juntas, e que sono!
Acordávamos cedo e corríamos para o curral.

Copos e canecas na mão e o primeiro apojo espumado e morno
tinha um gosto renovado e puro.
Depois, o mundo do engenho. A garapa da cana serenada,
a garapa fervida, o melado com mandioca cozida no respiradouro da fornalha,
“forrando o estômago” para o almoço às nove horas, invariavelmente.
Aqueles hóspedes ganhavam novas cores, nutrição, nesse regime de fartura
e ares puros. Banhos nos ribeirões, passeios pelos campos.
Comiam fruta do mato, carne de caça, leite de curral, ovos quentes, gemada,
transbordando os pratos de mingau de fubá fino, de milho canjica.
Café com leite, chocolate, a que se adicionavam gemas batidas, ovos quentes.
Tudo substancial e forte. Voltavam outros para a cidade,
carregando ainda lataria de doces e frutas do quintal, ovos, frangos
e queijos. Era a regra do tempo. Aqueles hóspedes alegravam
e se tornavam amigos, prometendo voltar.
Quando a gente menina esquecia alguma regrinha da boa cortesia,
era chamada de parte, corrigida, admoestada,
acima de tudo nos velhos tempos,
os deveres sagrados da hospitalidade.

Fonte: Coralina, C. 2004. Melhores poemas, 2ª edição. SP, Global. Poema publicado em livro em 1983.

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