Na Fazenda Paraíso
Cora Coralina
Na Fazenda Paraíso, grandes
terras de Sesmaria, nos dias
da minha infância ali
viviam meu avô, minha bisavó Antônia,
que todos diziam Mãe Yayá,
minha velha tia Bárbara, que era tia Nhá-Bá.
Essa governava a casa da
cozinha ao coalho, passando pela copa,
onde fazia o queijo com o
coalho natural e guardava os potes
sempre cheios de doce, e
tinha uma pequena forma de açúcar,
coberta de barro, inviolada
para uso exclusivo dela e da velha mãe.
Era um açúcar todo
especial da garapa coada e mel espumado.
Essa tia, que renunciara
ao casamento para melhor garantia
do seu lugar no céu,
tinha se extremado em limpeza e asseio,
zelo pela administração
da casa, amor à capela da fazenda
e cuidados com a velha
mãe.
Tinha a sua horta, canteiros
de couve e cebolinha verde,
salsa, hortelã e ervas
santas, milagrosas, de curar.
Pimenteiras não faltando,
mostarda e sarralhas,
tomatinho por todos os
lados.
Rodeando o cercado,
plantas de fumo, suas flores rosadas,
rejeitadas das abelhas.
Suas roseiras, jasmineiros,
cravos e cravinas, escumilhas,
onde beija-flores faziam
seus ninhos delicados
e pingentes de outros
ninhos de um passarito amarelo sem mérito cantor,
engraçadinho piador – o
caga-sebo.
Nas mangueiras enfolhadas
faziam seus ninhos apanelados
e dobravam o canto
inigualável, nas longas tardes de outubro,
todos os sabiás dos
reinos de Goiás.
Corria pelo meio da horta
o rego d’água e era o mundo verde do agrião.
A terra era fofa,
recoberta de uma camada espessa de cana moída
e apodrecida,
transformada em húmus, trazida da bagaceira do engenho.
Era um feudo privativo da
tia Nhá-Bá, portão fechado a chave,
cerca impenetrável, era o
seu reinado assistido pela
Nicota que trabalhava no
terreiro.
Naquele vai-e-vem o dia
todo meu avô dizia a ela: “Ocê não cansa, mana?”
E a resposta invariável:
“Quando durmo”.
Minha bisavó, Mãe Yayá,
passava o seu dia sentada
numa antiga mala
encourada, e sobre esta estendido um couro de lobo.
Trazia, também, tiras do
couro e palhas roxas
amarradas em atilhos nas
pernas para evitar cãibras.
Vivia, já naquele tempo,
vida vegetativa, assistida pela filha.
E meu avô, todos os dias,
antes de outra iniciativa,
ia tomar a benção à velha
mãe, saber o que lhe faltava.
Ela requeria sempre uma
braçada de lenha recortada,
cavaqueira que ele
mandava do engenho de serra,
era agasalhada debaixo da
mesa onde lhe serviam as refeições.
Suas comidinhas
apresentadas em pires e tigelinhas antigas,
sua mesa sempre recoberta
de toalha grossa de tear
marcada com pontos de
cruz, pontos de marca, se dizia, sua cama,
antiga marquesa, de
sobrecéu e babados, ela, a velinha curvada,
passado no busto um xale
de lã de cor indefinida de velhice crônica.
Agasalho de frio e de
calor.
Nos pés, chinelos e meias
pretas, saia escura, uma bata clara
abotoada no pescoço,
mangas de punho.
Nas orelhas, uns brincos
rebuçadinhos de preto, dizendo luto permanente.
Eram periodicamente
descobertos e de novo recobertos,
isso, contavam os da
casa, desde a morte do marido, já passados muitos anos.
Essa matriarca era de uma
saúde admirável
e não mais se intrometia
na direção da casa.
Tinha um pitinho
pequenino de barro, feito a capricho pelas paneleiras do lugar.
O fumo era preparado por
tia Nhá-Bá, colhido nas hortas. Destaladas,
murchas as folhas, eram
entregues à velha mãe que fazia a torção
de forma especial, que só
ela sabia fazer.
Eram postas para curtir
num pequeno varal, num canto remoto do oratório.
Ela governava aquilo e
daquela reserva se fazia com muita ciência
e pachorra, o torrado de
meu avô. Trabalho esse entregue a Nicota.
Daquela bisavó emanava um
cheiro indefinido e adocicado
de folhas murchas a que se
misturavam fumo desfiado, cânfora e baunilha.
Sua sala, onde passava o
dia, tinha pelos cantos amarrados,
murchos, pendurados de
folhas diversas: congonha-do-campo,
arnica da serra, folha-santa,
artemísia e gervão,
arrancadas com as raízes
que eram sempre renovadas pelos moradores
que traziam seus agrados
e respeito.
Tudo isso impregnava seus
aposentos de um cheiro característico
e vago que gostávamos de
respirar e que, dizia meu avô,
dava saúde à velha mãe.
Sua comidinha parca era
repartida com os gatos,
que ela, com uma vara
fina e longa, mantinha em disciplina.
Sua preocupação
constante: saber das horas e se a serra estava encoberta.
Qualquer resposta que lhe
dessem, satisfazia.
Durante o dia eram suas
várias caminhadas para a cozinha.
Acender o pito, ali,
alguém tinha que colher
e assentar na panelinha
atochada de fumo uma brasinha minúscula
que fumaçava
agradavelmente. Todos na casa e na fazenda
lhe pediam a benção e
veneravam a grande anciã.
De noite, frio ou calor,
chuva ou relâmpago, trovões,
céu barrado de estrelas
ou lua, clara como o dia,
vinha para o meio da
grande varanda uma telha-vã
com um braseiro trazido
pela Ricarda.
Uma braçada de cavacos ou
sabugos de milho das reservas de debaixo da mesa.
Vinha antes o couro de
lobo, estendia-se no centro de um antigo canapé
forrado de sola negra,
tacheado de tachas amarelas.
Tia Nhá-Bá trazia pelo
braço a velha mãe,
fazia-a sentar no meio do
vasto canapé,
aconchegava o chalé,
ajeitava o saquitel das coisas misteriosas, inseparáveis
e acendia-se o braseiro.
De lado, bancos pesados,
a mesa das refeições.
Meu avô puxava o
tamborete da cabeceira, tomava assento.
Tio Jacinto vinha e se
ajeitava, nós, gente menor, rodeávamos o fogo
sentadas em pedaços de
couro de boi, pelo chão.
Gente grande nos bancos
em fileira.
Ricarda, acocorada,
alimentava o fogo.
Ficávamos ali em adoração
naquele ritual sagrado,
que vem de milênios, de
quando o primeiro fogo se acendeu na terra.
Contavam-se casos.
Conversas infindáveis de outros tempos
e pessoas mortas.
Às tantas, vinha da
cozinha o pote de canjica, bem cozida, caldo grosso,
colher de pau revolvendo
aquele conteúdo amarelado ou todo branco.
Tia Nhá-Bá trazia da copa
um pote bojudo, panela funda de barro,
cheia de leite com uma
nata amarelada e grossa, a concha de tirar,
duas rapaduras cheirosas
para serem raspadas.
Cada qual pegava seu prato fundo, tigela e colher.
Tia Nhá-Bá servia com
abundância, canjica e leite, rapadura à vontade.
Comia-se ruidosamente.
Repetia-se e ainda sobrava canjica fria e grossa,
gelatinosa, para o
demanhã seguinte.
Ruim era para a
criançada, quando se matava uma vaca
e se juntava ao cozido um
tal chamado osso-de-corrê.
Meu Deus, botavam a
canjica a perder. Ninguém suportava.
Só os mais velhos
exaltavam a substância daquela mistura.
Era ruim com sal, pior
com rapadura. A meninada não tolerava aquilo.
Gente do terreiro vinha
buscar as sobras e levava o pote quase cheio.
Pelas nove horas
amortecia o fogo. Ricarda cabeceava de sono.
O braseiro ia se cobrindo
lentamente de cinza clara.
Cada qual procurando as
camas, colchões barulhentos de palha em couro
pelo chão, dormida das
melhores.
De tempos em tempos um
cerimonial complementar,
a que a criançada queria
assistir.
A queima dos feixes de
ervas ressecadas, já trocados por feixes novos.
Ricarda trazia a
ramalhada. Tia Nhá-Bá ia lentamente arrumando
no braseiro esmorecido de
jeito a evitar chamas,
e todo o casarão se
enchia de uma fumaça de cheiro incomparável,
que de vez em quando me
vem ao olfato da memória.
A velha matriarca, meu
avô, tio Jacinto, nós todas,
tomávamos configurações
fantásticas
naquele incensatório
ritual e rústico.
Meu avô dizia que aquela
fumaceira
que se esvaía lentamente
pelos telhados e frestas,
desinfetava os miasmas e
era a saúde da casa.
Dali caíamos num sono que
o dia seguinte nos acordava
com o alarido dos
pássaros e o berro das vacas crioulas,
muito diferente do mugido
das raças casteadas.
Todo o gado da fazenda
era crioulo e as raças eram chamadas
toutina, caraúna, mocha,
curraleira e outras.
Não se falava em castas
importadas, não havia doenças no gado,
esse parecia indene, era
rústico e manso.
E o melhor para limpar de
bernes e carrapatos era o sal grosso torrado,
e a salga geral se fazia
uma vez por ano.
Era a vaquejada festiva.
Vinha gente da cidade e vizinhos das fazendas,
rapaziada roceira, na
esperança de ver as moças,
alguns olhares, alguma
conversa, possível noivado, casamento.
Arrebanhavam o gado,
traziam em correria para os currais.
Salgava-se, marcava-se a
rês salgada cortando a ponta da cerda.
Marcava-se a ferro quente
a rês ainda desferrada.
Castravam-se os machos.
Alguns castradores mais antigos faziam
num canto do curral um
braseiro e, ali, em espeto já preparados,
assavam e comiam com
farinha, sal, pimenta e limão, as glândulas
espremidas dos garrotes.
A casa via aquilo enojada. Não participava.
Era prática, uso, entre
castradores velhos. Prolongavam-lhe a virilidade.
As cozinheiras se danavam
quando solicitavam panelas
para variar do assado.
Pediam que as quebrassem depois do uso.
Eles chacoteavam,
lúbricos, e elas riam disfarçadas.
A casa da fazenda estava
sempre cheia. Parentes da cidade que traziam amigos,
caçadores que alegravam
meu avô. Todo o terreiro se movimentava
e os moradores recebiam
carnes abundantes das cargas abatidas.
Os couros eram esticados
com varas e pendurados de alto a baixo
no grande varandado da
frente da casa.
Meninos sem conta
interessados na caça morta.
O forno de barro estava
sempre aceso
e a copa e a mesa das
refeições transbordavam
da fartura e da
abundância da casa grande.
Havia no tempo, uma
prática medicinal, prescrição médica:
– Mudar de ares. Gente
enfastiada, anêmica, insatisfeita,
nervosa da cidade,
descorada, falta de apetite, vinham tentar melhoras
nos ares sadios, no leite
farto e frutas das fazendas.
Eram bem aceitos e se
fazia a grande hospitalidade antiga.
Tudo de melhor para os
hóspedes. Havia mesmo na fazenda dois quartos
chamados quartos de
hóspedes.
Deixávamos as camas,
passávamos a dormir no couro, o que adorávamos,
nos colchões barulhentos
de palha nova que ajudávamos a rasgar.
Um forro grosseiro e uma
coberta de tear bastavam para nós.
Dormíamos de três a
quatros juntas, e que sono!
Acordávamos cedo e
corríamos para o curral.
Copos e canecas na mão e
o primeiro apojo espumado e morno
tinha um gosto renovado e
puro.
Depois, o mundo do
engenho. A garapa da cana serenada,
a garapa fervida, o
melado com mandioca cozida no respiradouro da fornalha,
“forrando o estômago”
para o almoço às nove horas, invariavelmente.
Aqueles hóspedes ganhavam
novas cores, nutrição, nesse regime de fartura
e ares puros. Banhos nos
ribeirões, passeios pelos campos.
Comiam fruta do mato,
carne de caça, leite de curral, ovos quentes, gemada,
transbordando os pratos
de mingau de fubá fino, de milho canjica.
Café com leite,
chocolate, a que se adicionavam gemas batidas, ovos quentes.
Tudo substancial e forte.
Voltavam outros para a cidade,
carregando ainda lataria
de doces e frutas do quintal, ovos, frangos
e queijos. Era a regra do
tempo. Aqueles hóspedes alegravam
e se tornavam amigos,
prometendo voltar.
Quando a gente menina
esquecia alguma regrinha da boa cortesia,
era chamada de parte,
corrigida, admoestada,
acima de tudo nos velhos
tempos,
os deveres sagrados da
hospitalidade.
Fonte: Coralina, C. 2004.
Melhores poemas, 2ª edição. SP, Global.
Poema publicado em livro em 1983.
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