Uma obra-prima do desespero silencioso
Peter Beech
Alguns dos meus amigos e
familiares podem revirar os olhos se virem isto – eles já ouviram inúmeras vezes
a minha falação sobre Os restos do dia [Nota 1]. Alguns já receberam um
exemplar imposto como presente. Ao longo dos anos, desde que o li, tornei-me um
pregador de Os restos do dia. A culpa não é minha. A sutil obra-prima de Kazuo
Ishiguro sobre as angústias íntimas de um mordomo envelhecido não é de todo
desconhecida – afinal, ganhou o Prêmio Booker
de 1989 –, mas às vezes a gente encontra uma obra literária tão bem escrita,
tão comovente e tão perceptível sobre as vidas que muitos de nós estamos a
levar, que não se pode deixar de elogiá-la a qualquer um que não seja perspicaz
o suficiente para parecer ocupado.
A falta de comedimento
talvez seja a melhor resposta ao romance de Ishiguro, a história de um homem
tão oprimido pela decência a ponto de deixar o amor de sua vida escorregar por
entre os dedos. O sr. Stevens é o chefe dos empregados de uma imponente mansão
inglesa; quando o romance começa, no verão de 1956, ele está pronto para
empreender uma viagem de carro com o propósito de visitar a srta. Kenton, uma
governanta que saiu 20 anos antes para se casar. O mordomo diz que gostaria de
lhe perguntar se ela pensaria em retornar ao trabalho: “Srta. Kenton, com seu
grande apreço por esta casa e seu exemplar profissionalismo, era o elemento que
me faltava para completar um plano de empregados plenamente satisfatório para
Darlington Hall”. Mas Stevens não engana ninguém, especialmente quando deixa
escapar que uma carta (“a sua primeira em sete anos, descontando os cartões de
Natal”) contém pistas de que o casamento dela está desmoronando.
Narradores inconfiáveis –
aquelas figuras misteriosas que o leitor deve tentar destrinchar – são comuns
demais na ficção. Ishiguro, em vez disso, prefere nos oferecer narradores
incônscios: falantes que permanecem aprisionados em fantasias de
auto-preservação, misteriosas até para eles mesmos. Pouco a pouco, a gente
aprende a procurar as reais emoções circulando debaixo da superfície lustrosa
da prosa. Stevens recorda com prazer o seu antigo empregador, lorde Darlington,
um aristocrata que se aliou aos nazistas e eventualmente morreu em desgraça.
Ele esquadrinha as lembranças de seu pai – ele próprio um mordomo, que se
mantinha distante a ponto de magoar – e prega sobre a “dignidade”, um ideal
fictício que tem a ver “com a capacidade do mordomo de não abandonar o ser
profissional que o habita”.
Cada anotação no diário
se torna um afetado exercício de evasão e projeção. Quando Stevens chega a um
assunto emotivo – tal como se a srta. Kenton foi embora por causa de sua recusa
em admitir seus sentimentos por ela –, ele dá uma guinada, tagarelando em defesa
própria, choramingando por algumas páginas antes de se sentir capaz de
prosseguir. “Apesar de tudo”, escreve ele de modo revelador, “não vejo motivo
para o seu retorno a Darlington Hall e acompanhar seus anos de trabalho lá não
ofereceria um real consolo a uma vida que se tornou tão dominada por uma
sensação de perda”.
O que é e o que poderia ter sido
Temos a imagem de um
homem tentando desesperadamente abafar suas emoções – e quão completa é a
imagem. Os restos do dia faz a coisa mais maravilhosa que um trabalho literário
pode fazer: faz a gente sentir como se tivéssemos uma vida humana em nossas
mãos. Quando chegamos ao fim, parece que realmente perdemos um amigo – um amigo
ridiculamente pomposo, sério e antiquado [Nota 2], mas, ainda assim, um bom
amigo. Temos vontade de abraçá-lo, a não ser que ele fique indignado.
Os restos do dia é um
livro sobre uma vida frustrada. Sobre como o condicionamento de classe pode
transformar você em seu pior inimigo, fazendo-o cúmplice de sua própria
subserviência. É um livro bem inglês – não imagino que leitores de nações mais
gregárias tenham muita paciência com um protagonista que consome quatro décadas
e não consegue declarar seus sentimentos. “À espera, em silente desespero, é o
jeito inglês” [Nota 3], como o Pink Floyd cantou. É um livro para todos aqueles
que acham que já se contiveram quando algo que realmente importava estava ao
seu alcance.
Acima de tudo, porém, é
um livro sobre o amor. Stevens é forçado a abandonar suas ilusões sobre lorde
Darlington, seu orgulho filial, sua estimada “dignidade”, até que tudo o que
resta é a srta. Kenton e o que poderia ter sido. A história atinge o seu
discreto clímax na calma de uma pequena lanchonete na Cornualha. Não vou
estragar o final, apenas dizer que, nessa como em outras passagens, o que não é
dito faz toda a diferença.
Ouvi certa vez que, para
fazer o leitor chorar, o escritor deveria tentar manter os personagens com os
olhos secos. Há algumas lágrimas nesse romance – todavia, talvez não o
suficiente, pois a história do inabalável e irremediavelmente equivocado
Stevens sempre me emociona. Se ainda não leu Os restos do dia, espero que me dê
licença para deixar de lado minha dignidade profissional, implorando a você que
consiga logo um exemplar. E se você tiver lido e gostado – o que quer que você
faça –, não guarde os seus sentimentos só para si.
Notas do tradutor
1. Em janeiro de 2015,
com bastante atraso, descobri que a Companhia das Letras havia publicado uma
versão do livro em português, intitulada Os resíduos do dia (2003) (aqui).
Achei o título desastroso e, na ocasião, escrevi o seguinte comentário:
“Traduzir ‘The remains of
the day’ como ‘Vestígios do dia’, como aconteceu com o filme (1993), já foi uma
escolha ruim, mas a ambiguidade do termo ‘vestígio’ (= indício, pista) parece
ter emprestado algum charme, o que terminou encobrindo a barbeiragem. A opção
por ‘Os resíduos do dia’, no entanto, é simplesmente ruim de doer (para não
dizer patética), não só de um ponto de vista semântico ou estético, mas também
porque induz o leitor a mal-entendidos. Em português, penso eu, uma opção bem
mais apropriada seria ‘Os restos do dia’. Não li o livro, mas no filme (uma
obra-prima e, ouso dizer, um dos maiores filmes da história do cinema [aqui])
a expressão fixada no título é usada pelo mordomo Stevens (Anthony Hopkins) em
alusão ao seu futuro (os anos pela frente com o novo senhorio etc.) não em
alusão ao passado, embora a maior parte do filme seja ocupada por recordações
(flashbacks)”.
Enquanto preparava a
tradução do artigo acima, descobri que a editora relançou a versão em
português, agora sob o título Os vestígios do dia (2016). (Cabe notar que o título
do filme lançado no país não tem o “Os”.)
2. No original: “[...] a laughably pompous,
part[y]-hat-refusing, stick-in-the-mud friend […]”.
3. No original: “Hanging on in quiet
desperation is the English way”.
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