Falsos problemas científicos
Felipe A. P. L. Costa
O papel de Ernst Mayr (1904-2005) na história da
biologia não foi exatamente o de um inovador, como ele próprio parecia estar
ciente. Escritor prolífico e longevo, ele talvez fosse mais bem descrito como
um articulador, tanto em termos acadêmicos (e.g., reunindo e divulgando informações
dispersas na literatura) como políticos (e.g., assumindo cargos de chefia e
participando de comitês de avaliação).
No contexto da teoria sintética, Mayr sempre deu muita ênfase ao conceito
de espécie e ao processo de especiação. Eis algumas noções que ele elaborou ou
ajudou a burilar: (i) o reconhecimento da espécie
como uma entidade real, em oposição a entidades arbitrárias, como gênero e
família; (ii) o isolamento reprodutivo
como uma barreira que segrega espécies que vivem juntas (simpatria), noção que
serviu de base para a elaboração do conceito biológico de espécie; (iii) o isolamento geográfico como o principal
estímulo à especiação; e (iv) o efeito do
fundador e as revoluções genéticas
como fatores que promovem a especiação, tipicamente em populações pequenas e
isoladas.
Em maior ou menor extensão, no entanto, todos esses conceitos têm sido
contestados ou relativizados, embora os livros-textos nem sempre deixem isso
claro. Nesse sentido, cabem aqui as seguintes ponderações: (i) vários autores
questionam a realidade da espécie, mesmo entre organismos que se só reproduzem
de modo sexuado; (ii) o isolamento reprodutivo não é necessário nem suficiente
para definir uma espécie; (iii) a especiação não depende de alopatria; e (iv)
em muitos casos (a maioria?), a especiação seria o resultado de seleção, não de
processos fortuitos.
O problema da espécie
Entre as barbeiragens
cometidas por Mayr, Mallet (2008)
observa que ele (talvez inconscientemente) ‘editou’ certos trechos da obra de
Darwin incluídos em alguns dos seus escritos, de modo a ressaltar
‘deficiências’ no que tange ao conceito de espécie e ao processo de especiação.
Ocorre que o ‘problema da espécie’, a respeito do qual Mayr escreveu bastante,
tem se revelado um falso problema.
Para Darwin, explicar a multiplicação das espécies – “o mistério dos
mistérios” – era um desafio. Mayr defendia insistentemente a ideia de que
Darwin não chegou a propor nenhum modelo que pudesse explicar a origem das espécies,
a ponto de outros autores passarem a reproduzir essa afirmativa (e.g., Futuyma 1992). Na verdade, um exame atento
prontamente revela que Darwin adotou uma solução, embora, ao que parece, ela
não tenha sido do agrado de Mayr. Em primeiro lugar, cabe notar que o
naturalista britânico tratava o conceito de espécie com ceticismo. Por uma
questão de conveniência prática, Darwin aceitava o que os especialistas
reconheciam como espécies (e.g., Canis
familiaris, Homo sapiens, Solanum tuberosum etc.) e, por isso
mesmo, ele reteve a palavra em seus escritos. O fundamento biológico de sua
posição não é difícil de entender: a distinção que há entre espécies afins é a
expressão ‘madura’ da variação aparentemente contínua que observamos entre
variedades de uma mesma espécie.
A genética do saco de feijões
Outro exemplo de barbeiragem envolve uma controvérsia – uma das várias discussões
acaloradas em que Mayr se envolveu em decorrência de alguma opinião enviesada de
sua parte. Incomodado com a profusão de modelos matemáticos – a respeito dos
quais, aliás, tinha pouco conhecimento – e desgostoso com a crescente
importância atribuída à genética de populações, Mayr virou-se contra o trabalho
de alguns pioneiros, especificamente Fisher, Haldane e Wright.
Em suas palavras (Mayr 1959, p. 2; tradução livre):
A mudança evolutiva foi apresentada [pela
genética de populações] essencialmente como uma entrada ou saída de genes, como
a adição de alguns feijões em um saco de feijões e a retirada de outros. [...]
A mim me parece que a principal importância
da teoria matemática foi que ela deu rigor matemático a afirmações qualitativas
feitas muito anteriormente. [...] Contudo, eu talvez devesse deixar que os
próprios Fisher, Wright e Haldane mostrassem o que eles julgam que sejam as
maiores contribuições deles.
Mayr passou a se referir ao trabalho daqueles teóricos como ‘genética do
saco de feijões’ (beanbag genetics).
Alguns anos depois, Haldane terminou escrevendo uma resposta. Wright ficou
chocado com o episódio e o seu relacionamento com Mayr, até então amigável,
azedou. (Em 1984, voltando de uma viagem à Itália, Wright confidenciou a [James]
Crow que o valor do prêmio que acabara de receber diminuiu muito depois que ele
soube que Mayr havia sido agraciado no ano anterior.)
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