23 abril 2018

A improvável ascensão de Hallelujah

F. Ponce de León

Aleluia é uma palavra hebraica que significa ‘Glória ao Senhor’. A canção explica que existem muitos tipos de aleluias. Digo que todas as aleluias, as perfeitas e as imperfeitas, têm o mesmo valor. É um desejo de afirmar minha fé na vida, não de algum modo religioso formal, mas com entusiasmo, com emoção.

– Leonard Cohen (apud Alan Light 2012).

Gravada originalmente no álbum ‘Various positions’ (1984), do escritor, cantor e compositor canadense Leonard Cohen (1934-2016), a canção ‘Hallelujah’ permaneceu dormente por quase uma década. Abraçada e reinventada por outros artistas, ela se converteu no fenômeno que é hoje: uma das canções mais gravadas de todos os tempos [1]. Tendo escrito cerca de 80 estrofes, ao longo de um período de cinco anos, Cohen terminou gravando uma versão com apenas quatro estrofes [2]. A canção, a rigor, foi incluída no álbum a contragosto da gravadora.

Então, o cantor e compositor galês John Cale (nascido em 1942), um dos fundadores do grupo Velvet Underground, gravou uma versão de ‘Hallelujah’ para um álbum em tributo a Cohen. Isso foi em 1991. No ano seguinte, o cantor e compositor estadunidense Jeff Buckley (1966-1997) teria ouvido a canção pela primeira vez, na versão de Cale, em casa de amigos. Ele prontamente a incorporou ao seu repertório, e a gravou no único álbum de sua breve carreira, ‘Grace’ (1994). O álbum não fez nenhum barulho especial. No entanto, após a sua morte trágica e precoce, muita gente no meio musical passou a prestar atenção ao que ele havia gravado – e a sua interpretação de ‘Hallelujah’ se converteu em uma referência.

Algum tempo e algumas regravações depois, eis que a indústria cinematográfica lança o filme de animação ‘Shrek’ (2001), inspirado no livro Shrek!, de William Steig. Os diretores musicais do filme haviam visto ‘Basquiat’ (1996), filme dirigido por Julian Schnabel, cuja trilha sonora incluía a versão de Cale. Esta versão é a mesma que ouvimos no filme ‘Shrek’, mas não em sua trilha sonora. Por questões contratuais, a versão que aparece ali foi gravada pelo cantor e compositor canadense de origem estadunidense Rufus Wainwright (nascido em 1973).

Foram as versões de Cale e Wainwright que impulsionaram a trajetória de sucesso de ‘Hallelujah’, convertendo-a em uma das canções mais conhecidas, mais amadas e mais mal-entendidas em todo o mundo. O sucesso levou a mais regravações, inclusive como hino religioso, o que não deixa de ser irônico, visto que Cohen sempre foi ambíguo a respeito do conteúdo sexual e religioso da canção.

Algumas ‘recriações’ em português já foram gravadas. Escritas como letras de hinos religiosos (e.g., ‘Aleluia’, atribuída a Filipe Marnoto), elas, no entanto, pouco ou nada guardam da canção original, excetuando a melodia.

No que segue, apresento uma versão em português para os versos originais [3], os quais são reproduzidos logo em seguida.

Aleluia

Leonard Cohen

1.
Ouvi falar de um acorde secreto
que Davi dedilhava para agradar o Senhor
mas você de fato não liga para música, não é?
Era parecido com isto: a quarta, a quinta
a menor abaixa, a maior levanta;
o malogrado rei compondo Aleluia!

2.
Sua fé era forte, mas você queria prova.
Você a viu se lavando lá do terraço;
a beleza dela e a lua cheia abalaram você.
A um banco de cozinha ela o amarrou
ela destruiu seu trono, suas tranças ela rapou,
e dos seus lábios ela extraiu Aleluia!

3.
Você diz que eu usei o Nome em vão;
eu nem mesmo sei que nome é.
Mas se o fiz, ora, o que de fato ele diz a você?
Há um clarão de luz em toda palavra;
e não importa qual você escuta,
a sagrada ou a mal falada Aleluia!

4.
Eu fiz o que pude; não foi muito.
Eu nada sentia, então apurei o tato.
Contei a verdade, não vim aqui enganá-la.
E ainda que tudo tenha dado errado,
diante do Senhor da Canção estarei postado
sem nada em meus lábios, exceto Aleluia!

5.
Querida, eu já estive aqui antes.
Conheço este quarto, neste piso eu já andei.
Eu costumava viver só antes de conhecê-la.
Vi sua bandeira sobre a fortaleza majestosa,
mas o amor não é uma marcha pomposa,
é uma fria e é uma alquebrada Aleluia!

6.
No passado você me deixava por dentro
do que estava rolando lá por baixo
mas agora você não me mostra mais, não é?
Lembro quando em você eu me instalava,
e a pomba sagrada também ía,
e cada suspiro nosso era Aleluia!

7.
Talvez haja um Deus no firmamento
mas tudo o que do amor em mim ficou
foi como atirar em alguém que desarma a gente.
E não é um lamento que ouvimos à noite,
e não é algum peregrino tendo uma revelação –
é uma fria e é uma alquebrada Aleluia!

A seguir, o original. As estrofes 1-4 integram a versão gravada por Cohen, em 1984; as estrofes 1, 2 e 5 são as que ouvimos no filme ‘Shrek’.

Hallelujah

Leonard Cohen

1.
I’ve heard there was a secret chord
that David played to please the Lord
but you don’t really care for music, do you?
It goes like this: the fourth, the fifth
the minor fall, the major lift;
the baffled king composing Hallelujah!

2.
Your faith was strong but you needed proof.
You saw her bathing on the roof;
her beauty and the moonlight overthrew you.
She tied you to a kitchen chair
she broke your throne, she cut your hair,
and from your lips she drew the Hallelujah!

3.
You say I took the Name in vain;
I don’t even know the name.
But if I did, well, really, what’s it to you?
There’s a blaze of light in every word;
it doesn’t matter which you heard,
the holy, or the broken Hallelujah!

4.
I did my best; it wasn’t much.
I couldn’t feel, so I learned to touch.
I’ve told the truth, I didn’t come to fool you.
And even though it all went wrong,
I’ll stand before the Lord of Song
with nothing on my lips but Hallelujah!

5.
Baby I’ve been here before.
I know this room, I’ve walked this floor.
I used to live alone before I knew you.
I’ve seen your flag on the marble arch,
but love is not a victory march,
it’s a cold and it’s a broken Hallelujah!

6.
There was a time you let me know
what’s really going on below
but now you never show it to me, do you?
I remember when I moved in you,
and the holy dove was moving too,
and every breath we drew was Hallelujah!

7.
Now maybe there’s a God above
but all I ever learned from love
it how to shoot at someone who outdrew you.
And it’s no complaint you hear tonight,
and it’s not some pilgrim who’s seen the light –
it’s a cold and it’s a broken Hallelujah!

Notas

[1] Para uma amostra expressiva, mas não exaustiva, ver artigo ‘60 versions of Leonard Cohen’s‘Hallelujah,’ ranked’, de Zach Schonfeld, publicado pela Newsweek, em 21/1/2015.

[2] Para detalhes sobre esta e algumas outras informações citadas aqui, ver o artigo ‘How Leonard Cohen’s ‘Hallelujah’ became everybody’s ‘Hallelujah’’, de Ashley Fetters, publicado pelo The Atlantic, em 4/12/2012.

[3] Extraído de: The holy or the broken: Leonard Cohen, Jeff Buckley, and the unlikely ascent of ‘Hallelujah’ (Atria, 2012), de Alan Light. Excerto do livro pode ser lido aqui. As sete estrofes reproduzidas neste artigo abrangem todas ou quase todas as versões que já foram gravadas, embora versões específicas raramente utilizem todas essas estrofes.

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