03 setembro 2018

Museus de história natural


Ao contrário do que possa parecer, nosso escasso conhecimento a respeito da biodiversidade do país não é tanto uma consequência da falta de amostras trazidas do campo – há museus brasileiros de história natural que estão literalmente abarrotados de material. Além de espaço e segurança para as coleções, faltam, isto sim, profissionais especializados em lidar com elas, a começar pelos taxonomistas e por técnicos (taxidermistas, herbaristas etc.) que cuidam desse tipo de acervo. Quer dizer, precisamos mais de gente para ‘tirar o pó’ de nossos museus do que de ‘caçadores’ a sair por aí, coletando tudo e todos em nome de uma suposta ‘prospecção da biodiversidade’ [1].

Isso não significa que coletas não sejam mais necessárias; significa apenas que precisamos cuidar melhor do material que já foi coletado. Há casos de coleções valiosíssimas, algumas com mais de 100 anos de idade, que jamais foram estudadas, simplesmente porque nunca apareceu (i.e., nunca formamos) um especialista para se debruçar sobre elas [2]. Quem visita e se encanta com as salas de exposição do maior museu brasileiro de história natural, o Museu Nacional, no Rio de Janeiro (RJ), não imagina os apertos e as dificuldades que caracterizam a sua história – desde problemas na fiação elétrica e paredes com infiltração até o corte drástico na assinatura de periódicos científicos [3]. Ao que parece, foi por essas e outras que certos museus começaram a adotar procedimentos bizarros, como, por exemplo, estocar peles de aves em tonéis com conservantes líquidos, em vez de guardá-las secas e devidamente taxidermizadas (empalhadas) dentro de armários apropriados.

Tal situação, no entanto, pode ser equacionada e resolvida. Formar taxonomistas talvez seja uma das opções mais baratas dentro do quadro geral de formação de recursos humanos em ciência, embora também esteja entre as mais desprezadas. Quer dizer, não é impossível mudar toda essa situação, mas para isso não basta fazer poses diante dos holofotes da imprensa: será necessário encarar um pouco mais o trabalho duro e anônimo com a enxada.

Notas

[1] ‘Prospecção da biodiversidade’ é um daqueles chavões que povoam o imaginário dos burocratas. Mas não só deles: já li declarações de cientistas brasileiros dizendo coisas insensatas a esse respeito, do tipo “Precisamos concluir logo o inventário de nossa biodiversidade, para então descobrirmos aplicações”. A menos que se esteja pensando na biodiversidade contida em uma salada de agrião, o ‘logo’ mais ousadamente breve que conheço não deve demorar menos do que 25 anos – ver as pretensões da All Species Foundation. Para um bom exemplo do que seja de fato ‘prospecção da biodiversidade’, ver Ribeiro et al. (1999).

[2] Quando for a um museu de história natural, faça um teste: procure saber se a instituição abriga coleções científicas (cujo acesso em geral é vetado ao público); em caso afirmativo, pergunte aos curadores das coleções existentes (plantas, insetos, vertebrados etc.) qual o percentual de cada uma delas que está devidamente identificado.

[3] Cortar ou suspender a assinatura de periódicos científicos é um claro sinal do grau de miopia de nossa burocracia científica. Não me surpreenderia, porém, se tal medida estivesse sendo classificada em algum relatório como mais um exemplo de ‘alocação ótima para a formação de recursos humanos’.

Referência citada

Ribeiro, J. E. L. S. & mais 13 coautores. 1999. Flora da Reserva Ducke: Guia de identificação das plantas vasculares de uma floresta de terra-firme na Amazônia Central. Manaus, INPA.

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Fonte: artigo integra a 1ª edição (2003) do livro Ecologia, evolução & o valor das pequenas coisas (2014, 2ª edição).

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