31 dezembro 2006

Frase, gramaticalidade e inteligibilidade

Othon M. Garcia

Dentro da liberdade de combinações que é própria da fala ou discurso – liberdade que permite a cada qual expressar seu pensamento de maneira pessoal, sem ter de repetir sempre, servilmente, frases já feitas, já estereotipadas – há certos limites imposto pela gramática, limites que impedem a invenção de uma nova língua cada vez que se fala. Nossa liberdade de construir frase está, assim, condicionada a um mínimo de gramaticalidade – que não significa apenas nem necessariamente correção (há frases que, apesar de, até certo ponto, incorretas, são plenamente inteligíveis). Carentes da articulação sintática necessária, as palavras se atropelam, não fazem sentido – e, quando não há nenhum sentido possível, não há frase, mas apenas um ajuntamento de palavras. “Cada qual é livre para dizer o que quer, mas sob a condição de ser compreendido por aquele a quem se dirija. A linguagem é comunicação, e nada é comunicado se o discurso não é compreendido. Toda mensagem deve ser inteligível”, diz Jean Cohen (Structure du langage poétique, p. 105-6).

O seguinte agrupamento, por ser totalmente caótico, isto é, totalmente agramatical, é totalmente ininteligível: de maus tranqüilos se nunca instintos os jovens sentem. Só reagrupadas segundo as normas gramaticais vigentes na língua, podem essas palavras tornar-se fala ou discurso, assumindo então feição de frase: Os jovens de maus instintos nunca se sentem tranqüilos.

Não obstante, um conjunto de palavras pode ter aparência de frase, por apresentar certo grau de gramaticalidade e ser dificilmente inteligível, como o seguinte exemplo de Oswald de Andrade: Romarias escadais de horas bureaus assinadores do conhecimento tomado e lavrado dos vencimentos invencíveis (Memórias sentimentais de João Miramar, p. 153). Apesar dos tênues vestígios de gramaticalidade – ou justamente por serem muito tênues esses vestígios – a frase de O. de A. depende quase que exclusivamente da interpretação que lhe possa dar o leitor. (...)

Portanto, ausência de gramaticalidade ou gramaticalidade muito precária significam ausência de inteligibilidade. Mas a simples gramaticalidade, o simples fato de algumas palavras se entrosarem segundo a sintaxe de uma língua para tentar comunicação não é condição suficiente para lhes garantir inteligibilidade. A célebre e assaz citada e comentada frase de ChomskyColorless green ideas sleep furiously (incolores idéias verdes dormem furiosamente) – apresenta os traços de gramaticalidade integral; no entanto, constitui (fora, evidentemente, do plano metafórico, onde todas as interpretações são possíveis) um enunciado incompreensível no plano referencial-denotativo, pois há incompatibilidade lógica entre os seus componentes, que se isoladamente têm sentido, no conjunto não têm: idéias não podem ser verdes nem incolores, e muito menos ser uma coisa e outra ao mesmo tempo. (...) Assim, por razões de impertinência semântica entre os seus componentes, esse conjunto de palavras só é frase na sua estrutura gramatical, mas só é mensagem no plano metafórico [...], só poderá ser entendida como um contexto poético, que depende fundamentalmente, predominantemente, da cultura e da subjetividade do leitor ou ouvinte, pois, como diz I. I. Revzin [...], “le poète crée un univers dans lequel se trouvent justifiées des phrases que n’avaient pas de sens dans sa langue”.
(...)

Fonte: Garcia, O. M. 2006. Comunicação em prosa moderna, 26a edição. RJ, Editora da FGV.

1 Comentários:

Anonymous Anônimo disse...

Oi Felipe, um grande abraço. Muito interessante, este texto! Eu venho imaginando (motivado pela leitura do livro "The language instinct" de Steven Pinker), que palavras se possam referir a objetos ou ações ou constelações sociais. Pois estas três categorias, objetos, ações e constelações sociais, são importantes para o sucesso evolutivo. Daí, ao se levar em consideração que a associação entre palavras e seus significados seja aleatória e mero resultado da história, de certa forma todas as palavras são metáforas. Mas é claro que poetas e romancistas vão até onde podem, ou seja, procuram criar novas metáforas inusitadas, fora do senso comum, sem serem todavia totalmente fora do senso comum, pois as pessoas têm de entende-las afinal. O heteronimo Alberto Caeiro de Fernando Pessoa é uma interessante exceção à regra, pois Alberto Caeiro quer simplesmente tirar o teor metaforico das palavras, criando assim uma poesia sem metaforas. Talvez o estudo de Fernando Pessoa seja importante justamente por ele colocar tais perguntas fundamentais a língua portuguesa? De qualquer forma, ca estamos, e não entendemos como surge o prazer de um texto? É claro, existem rimas simples, existe o eterno Camões (cuja metrica, li agora recentemente, só se revela em português brasileiro e não em português europeu?), enfim, coisas que apelam imediatamente ao nosso sentimento de ritmo e de elegância. Mas quando se trata do valor artístico de textos modernos, não sei não como é que se vê isso e como é que se define isso.

3/1/07 20:58  

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