07 outubro 2012

O ruído do mar, o seu roído

Nuno Guimarães

O ruído do mar, o seu roído
através de canais. Que banho o
sopra e elege por ruínas e ruínas
e que História o
destrói, cantando
o ido, a memó-
ria nos
os-
sos?
O lar, o lar se imove, sob o fluxo
do mar; pasto em molduras
e no fogo, em sua cálida
grafia. Eis
o presente: raso
de larvas e de história
em seu casulo inserto. Desses campos,
mente

capta
o roído, o brilho, a tessitura
dos lares, em vasta ruína.
Escreve ou pensa: uma toalha, vítrea.
Resiste ao clamor, ao denso
das retinas, vivas: dorsos
jovens, rútilos ou apenas
servidores de imagens, destruídas.

Nem sempre, entre os ilíacos, quem pense
nessa glória – o pó, a crosta pública,
o rito deste crânio – no regime
do inverno, na póstuma
tensão das suas fibras
distendidas; o mar, erecta
brisa sobre a testa. Cego,
cego! O ar respira, canta, re-

conduz ao recto mar, roído
e fixo – em toda a dureza
da matéria – a vasta flora
da nevrose: extintas
manhãs por entre os dias, trilhos,
as regiões sem beleza ou a difícil
rota – extratos, lava.
O puro gás.

Esta a floresta, um cúmulo
de veios, cerebrais. Ele celebram-nos,
transitam
num resto de memória, tranquilos.
Contudo, vibra o ar. E respirá-lo
afecta. Resiste, então
ao movimento, a este mal
pensar – mal mover
a mente

irresoluta.
Restaura-se o visível, que o autor
já perverteu: o visto, exangue.
Ó atenção, peso de imagens
toldando a luz marinha, os alimentos
de olhar, ávidos, dispersos!
Do solo solicita: as grandes manchas
do sol, as tempestades que assolam
a ciência, sobre os vidros.

Despede-se o olhar. Limita
o seu campo insaciável. Este lugar onde
o repouso é duvidoso, sob as névoas,
as frias cataratas. Diminui
a antiga nitidez. Assim
se turva, incerto,
o cristalino.

Quem das rotas diverge e encaminha
o seu canto por inábil
dispersão, assim se cria de
novo, híbrido de rota. Despende-se
nos actos e por eles
se funda, calcinado
em casas, ou em
fogos

ou chamas, projectados des-
ígneos, cinza a cinza.
Quem, por ruínas, ao vento o
escuta e nele passa
os dias? Breve esquece
a idade e o seu lugar, a origem.
Procura-se o passado e em diversas
arcas a ignomínia e os des-

tro-
ços se acumulam. Ó nítido
declínio, breve outono
cívico e ordeiro! O
crânio, esparso, sobre a terra
se escusa. E o repouso,
amigos pendulares?
Agora vive, em novas
estações, pelas calendas
in-fólio, escritas sobre as
folhas
persistentes, livro a livro
e nervo a nervo, resistindo.
Hirtas, em sangue, as letras
deflagraram.

É o estio
em cada acto, em faces
surdas, nos amplos salmos
e cantos bibliográficos.
Isto são
puros sinais: a sua morte
algures, só entre si, ou entre sí-
labas e lavas.

Pax aeternis. A língua
te soletra. Ó longos canaviais,
vias bravias! Os da morte liter-
ária, sob a chuva. Assim invocas
um sentido ao teu excesso
diário. A previsível
morte literal.

Fonte: Silva, A. C. & Bueno, A., orgs. 1999. Antologia da poesia portuguesa contemporânea. RJ, Lacerda Editores. Poema publicado em livro m 1973.

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