Olhos de ressaca
Geraldo Carneiro
minha deusa negra quando
anoitece
desce as escadas do
apartamento
e procura a estátua no
centro da praça
onde faz o ponto
provisoriamente
eu fico na cama pensando
na vida
e quando me canso abro a
janela
enxergando o porto e suas
luzes foscas
o meu coração se queixa
amargamente
penso na morena do andar
de baixo
e no meu destino cego,
sufocado
nesse edifício sórdido
& sombrio
sempre mal e mal vivendo
de favores
e a minha deusa corre os
esgotos
essa rede obscura sob as
cidades
desde que a noite é noite
e o mundo é mundo
senhora das águas dos
encanamentos
eu escuto o samba mais
dolente & negro
e a luz difusa que vem do
inferninho
no primeiro andar do
prédio condenado
brilha nos meus tristes
olhos de ressaca
e a minha deusa, a
pantera do catre
consagrada à fome e à
fertilidade
bebe o suor de um
marinheiro turco
e às vezes os olhos onde
a lua
eu recordo os laços na
beira da cama
percorrendo o álbum de
fotografias
e não me contendo
enquanto me visto
chego à janela e grito
pra estátua
se não fosse o espelho
que me denuncia
e a obrigação de guerras
e batalhas
eu me arvoraria a herói
como você, meu caro
pra fazer barulho e
preservar os cabarés.
Fonte: Hollanda, H. B.,
org. 2001 [1976]. 26 poetas hoje, 4ª
edição. RJ, Aeroplano.
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