05 agosto 2016

Em estilo amável

Eugénio de Andrade

Chega ao fim o verão, resta-me agora
a poesia a caminho da prosa.
Pelo lado matinal
um gato pé ante pé aproxima-se
de um pardal saltitando
entre as folhas amarelas. “É o meu coração,
a luz é o meu coração”, diz ele, e salta,
voa na tarde. O mar
recua, uma criança, vem vindo pelo molhe,
canta canta,
não sabe ainda que o pai não voltará
a casa. Um velho traz o céu
azul pela mão, olha de soslaio
os rapazes ao passar, ri
da praga humana empurrando
as suas bolas de esterco.
Deus deve ser assim: afável,
simples de espírito, distraído –
sem esterco que empurrar, de tão velho.

Fonte: Silva, A. C. & Bueno, A., orgs. 1999. Antologia da poesia portuguesa contemporânea. RJ, Lacerda Editores. Poema publicado em livro em 1995. ‘Eugénio de Andrade’ é pseudônimo de José Fontinhas.

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