A Francisco Brennand
Ariano Suassuna
Aquele amargo que restringe cada coisa.
José Launênio de Melo
Nossa vida, Francisco, é
muito estranha:
tudo nela é restrito e se
desgasta.
Quando menos se espera,
o jogo cede passo ao fado
cego
e assume mesmo a forma de
seu rosto.
Este, impiedoso e velho,
tem cicatrizes, chagas de
perigo,
e esconde o caos no
abismo de seus olhos.
Ei-lo: reduz na sombra
a demência que chama e
que fascina.
Suas raízes, braços
indomáveis,
subjugam nosso sangue,
e a quem, na solidão, não
perturbou,
ao menos uma vez, aquela
besta
de formas excitantes
que todos temem e no
íntimo desejam?
Ah, Francisco, bem duro é
constatar:
o que se tem é pouco
ante o que se deseja e se
pressente.
Preciso é suportar e em
tudo há crime,
de tudo somos presa:
do desejo das formas e
das cores,
da sede de criação, da
ânsia de posse,
do mistério dos frutos,
do amor da vida, sempre
machucado,
do travo a um tempo
amargo e derrisório,
que acaba por manchar
o desejo de tudo – carne
ou treva.
Mas se, um dia, o limite
das paredes
e as grades deste mundo
ao toque das trombetas
derruíssem,
se possível à carne se
tornassem
a posse do verão.
a sensação de perda e de
ternura
que nos comove ao ver a
água clara
em que o céu se reflete;
se a essência das coisas,
dominada,
ao sangue se entregasse,
duradoura,
com o sol na folhagem,
o cheiro do jasmim depois
da chuva,
os animais, os barcos ao
crepúsculo,
a sombra dos cajueiros,
tudo aquilo que, enfim,
parece vindo
de um mundo sem desejo e
sem saudade...
Ah, Francisco, quem sabe?
Um mundo novo, a paz de
seus regatos,
a terra renovada, o trono
entregue
aos homens, para sempre,
com tudo o que ele traz
de pressentido,
quem sabe se tudo isso
não viria
extinguir-nos a sede,
harmonizando a carne e o
som do fogo?
Ou seria somente a
consunção?
Não sei nem ninguém sabe.
Talvez fosse melhor nada
falar,
pois mesmo aqui há fatos
indizíveis,
sagrados como as coisas,
se bem que mergulhados no
perigo,
sangue e desejo, carne e
pulsação.
Contentes com o dom
que a nós gratuitamente
foi partido
de harmonizar as formas e
as palavras,
fazendo ressaltar
o vermelho, o dourado e o
som de bronze,
louvemos fielmente a dura
vida
nas formas e nas cores.
Quanto ao mais, não
pertence a nossa alçada:
olhemos sem rancor e
emudeçamos.
Fonte: Pinto, J. N. 2004.
Os cem melhores poetas brasileiros do século, 2ª ed. SP, Geração Editorial.
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