25 abril 2018

A Francisco Brennand

Ariano Suassuna

Aquele amargo que restringe cada coisa.
José Launênio de Melo

Nossa vida, Francisco, é muito estranha:
tudo nela é restrito e se desgasta.
Quando menos se espera,
o jogo cede passo ao fado cego
e assume mesmo a forma de seu rosto.
Este, impiedoso e velho,
tem cicatrizes, chagas de perigo,
e esconde o caos no abismo de seus olhos.
Ei-lo: reduz na sombra
a demência que chama e que fascina.
Suas raízes, braços indomáveis,
subjugam nosso sangue,
e a quem, na solidão, não perturbou,
ao menos uma vez, aquela besta
de formas excitantes
que todos temem e no íntimo desejam?
Ah, Francisco, bem duro é constatar:
o que se tem é pouco
ante o que se deseja e se pressente.
Preciso é suportar e em tudo há crime,
de tudo somos presa:
do desejo das formas e das cores,
da sede de criação, da ânsia de posse,
do mistério dos frutos,
do amor da vida, sempre machucado,
do travo a um tempo amargo e derrisório,
que acaba por manchar
o desejo de tudo – carne ou treva.
Mas se, um dia, o limite das paredes
e as grades deste mundo
ao toque das trombetas derruíssem,
se possível à carne se tornassem
a posse do verão.
a sensação de perda e de ternura
que nos comove ao ver a água clara
em que o céu se reflete;
se a essência das coisas, dominada,
ao sangue se entregasse, duradoura,
com o sol na folhagem,
o cheiro do jasmim depois da chuva,
os animais, os barcos ao crepúsculo,
a sombra dos cajueiros,
tudo aquilo que, enfim, parece vindo
de um mundo sem desejo e sem saudade...
Ah, Francisco, quem sabe?
Um mundo novo, a paz de seus regatos,
a terra renovada, o trono entregue
aos homens, para sempre,
com tudo o que ele traz de pressentido,
quem sabe se tudo isso não viria
extinguir-nos a sede,
harmonizando a carne e o som do fogo?
Ou seria somente a consunção?
Não sei nem ninguém sabe.
Talvez fosse melhor nada falar,
pois mesmo aqui há fatos indizíveis,
sagrados como as coisas,
se bem que mergulhados no perigo,
sangue e desejo, carne e pulsação.
Contentes com o dom
que a nós gratuitamente foi partido
de harmonizar as formas e as palavras,
fazendo ressaltar
o vermelho, o dourado e o som de bronze,
louvemos fielmente a dura vida
nas formas e nas cores.
Quanto ao mais, não pertence a nossa alçada:
olhemos sem rancor e emudeçamos.

Fonte: Pinto, J. N. 2004. Os cem melhores poetas brasileiros do século, 2ª ed. SP, Geração Editorial.

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