As guerras entre fundamentalismo e modernidade
Michael Robbins
Quando eu tinha 8 ou 9
anos, fui raptado momentaneamente por uns lunáticos bem-intencionados. Minha
irmã mais nova e eu estávamos a explorar o Festival FIBArk (First in Boating the
Arkansas [Primeiro a Navegar o Arkansas]), em Salida, Colorado, quando fomos
atraídos pela promessa de doces em um pequeno trailer onde estavam outras
crianças. Descobrimos que, para ganhar os doces, teríamos de penar diante de um
curta-metragem sobre Jesus, o qual, se me lembro bem, retratava em detalhes os
tormentos que aguardam os incrédulos no próximo mundo. Após o filme, um jovem
pastor de cabelo alinhado e uns quatro ou cinco do seu rebanho falaram algumas
chatices. Por fim, o pastor disse, “Antes de vocês saírem, deixem-me fazer uma
pergunta. Há alguém aqui que não aceitou Jesus Cristo como o seu salvador
pessoal? Levante a mão se você ainda não foi salvo”.
Não sei que teimosia me
fez levantar a mão – gosto de pensar que eu estava protestando contra a
coercitiva conversa fiada que acabara de presenciar. Em todo caso, não foi
porque o filme me assustou – eu sabia que já estava salvo. Havia convidado
Jesus para dentro do meu coração, frequentava a igreja e muitas outras coisas.
Sabia também que não gosto dessa gente – se soubesse a palavra, teria dito que
eles eram sebosos.
Qualquer que tenha sido o
motivo, eu levantei a mão e, quando o pastor nos dispensou, dois adultos me
impediram de sair com as outras crianças. Eles rezaram por mim e, apesar dos
meus pedidos cada vez mais apavorados para sair, eles se recusaram a me liberar
até que eu dissesse “Aceito Jesus Cristo como meu senhor e salvador”, o que eu
terminei fazendo; saí correndo do trailer para me juntar à minha irmã, sem
sequer aceitar os doces e folhetos de Jack Chick.
Esse foi meu primeiro
encontro com o evangelicalismo protestante conservador, mas não seria o último.
Cresci em Colorado Springs – sede da ‘Foco na Família’ [1] e o tipo de cidade
onde um amigo meu de escola uma vez encontrou um grupo de pessoas sentadas em
círculo, no meio da rua, diante da casa de alguém. Ele perguntou o que eles
estavam fazendo e um deles respondeu: “Aqui vive uma bruxa; estamos rezando
pela alma dela”.
No entanto, o pastor
luterano da igreja onde eu fui crismado era extraordinariamente aberto às
minhas tentativas juvenis de reconciliar o racionalismo que eu havia herdado do
meu pai, um ateu liberal, com a atração que eu sentia pelos ensinamentos de
Cristo. Por exemplo, eu era fortemente contra a doutrina do inferno, alegando
que não era justo o criador sujeitar ao fogo eterno pessoas que, em primeiro
lugar, jamais pediram para nascer e tão somente porque elas não conseguiram
decifrar os mistérios da vida em seu insignificante período de tempo na Terra
(ou por qualquer outro motivo). Poderia um hindu ser censurado por praticar o
hinduísmo, tendo ele nascido em uma cultura hindu? O pastor conversava comigo a
respeito de alegorias e metáforas e estava disposto a concordar que era
improvável que um Deus de amor se parecesse com a caricatura acima de gases
sulfurosos apresentada por pregadores enfurecidos. Ele estava mais interessado
na graça e nesse sujeito estranho que irritou as autoridades da antiga Galileia
e exortou os ricos a vender seus bens e a dar o dinheiro aos pobres. Ele não
tinha medo de dizer “Eu não sei” e “Também tenho esse problema”.
‘Apóstolos da razão’
Não consigo lembrar o
nome desse homem, mas eu lhe devo muito. Ele não impediu que eu debandasse para
um ateísmo de ocasião, entre a adolescência e os meus 20 anos, mas, graças ao
seu exemplo, foi mais fácil retornar a uma versão mais liberal do cristianismo,
posteriormente. Ele era exatamente o tipo de administrador da palavra de Deus
que, no passado, deixava sem dormir homens como Carl Henry e Harold Ockenga –
homens que, guiados por uma abominação da modernidade e uma crença na infalibilidade
bíblica, lideraram um movimento neoevangélico que culminaria no fundamentalismo
da Coalizão Cristã [2], de Ralph Reed, e no cretinismo criacionista atual.
Em Apóstolos da razão,
Molly Worthen, professora de história da Universidade da Carolina do Norte,
traça a história intelectual do moderno evangelicalismo estadunidense, definido
segundo ela por uma “crise de autoridade”. “Três perguntas unem os
evangélicos”, ela escreve:
como
reconciliar fé e razão; como conhecer Jesus; e como agir publicamente na fé
após a ruptura da cristandade.
Worthen começa o seu relato
em 1942, com a fundação da Associação Nacional de Evangélicos, em St. Louis
[Missouri], “um movimento intelectual consciente de pastores, estudiosos e
evangelistas, dentro da comunidade protestante conservadora”. Esses
neoevangélicos, nas palavras de Carl Henry, procuravam mostrar que “a
cosmovisão cristã é não apenas intelectualmente defensável, mas... também
explica a realidade e a vida de um modo mais lógico e compreensível que as
alternativas modernas”. Seguindo o exemplo de seu professor, Gordon Clark,
preocupado que os evangélicos estivessem negligenciando “os problemas
políticos, sociais, científicos e filosóficos que agitam” o século 20, Henry
convocou os cristãos a se engajarem no secularismo, em um nível especificamente
ideológico.
Worthen segue o curso das
ondas da ofensiva evangélica, resultando em círculos cada vez mais abrangentes,
a ponto de abarcarem os píncaros mais altos do poder nos Estados Unidos. Ao
longo do caminho, linhas de batalha dentro e entre as várias denominações são
meticulosamente redesenhadas – menonitas e wesleyanos vs. a tradição reformada,
presbiterianos vs. pentecostais, batistas do sul vs. batistas do sul. Worthen é
uma retratista fascinante, especialmente quando ela relata os choques de
gerações que surgiram entre os evangélicos, nos anos 1960. Eis o jovem Wes
Craven sendo afastado do cargo de editor-chefe da revista dos estudantes da
Faculdade de Wheaton [Illinois] por ter publicado “histórias moralmente
complexas e perturbadoras”. Eis o reitor da Universidade Biola [Califórnia]
assegurando a ex-alunos irados que “nós não apoiamos... cantores de esquerda
nem visitas a cervejarias, a qualquer hora, muito menos em uma tarde de
domingo”. Alguém pode largar o livro de Worthen com a imagem de um caos
pastelão em um navio naufragando, todas as mãos se chocando em tentativas
conflituosas de tirar a água e tapar os furos (ao menos até que a direita
cristã decidisse abandonar o barco e sequestrar o iate de passageiros do
Partido Republicano).
A chave para entender as
ansiedades que levaram o evangelicalismo conservador a essa ação frenética está
em uma expressão de Henry, ’cosmovisão’ [world-life
view], uma tradução estranha de Weltanschauung,
palavra que, no dizer de Worthen, tem obcecado os neoevangélicos: “Eles a
entoam sempre que escrevem sobre o declínio da cristandade, a dissociação entre
fé e razão e a necessária alfinetada dos Evangelhos em cada ponto crítico do
pensamento e da ação”. Eles não pinçaram o termo de [Immanuel] Kant, mas de
teólogos reformados, e ele passou a representar um conjunto de orientações e
premissas, as quais, uma vez descobertas e articuladas, poderiam reunir o corpo
disperso de fiéis em uma nova igreja militante.
A fé própria do capitalismo tardio
Apóstolos da razão, portanto, é um capítulo da história mais ampla
da secularização e, como tal, é uma interessante companhia ao livro Uma era secular
[3], de Charles Taylor, que li paralelamente. “É lugar-comum que algo que
mereça” o título de secularização
“tenha acontecido em nossa civilização”, escreve Taylor. “O problema é definir
exatamente o que é que aconteceu”. (A versão popular vulgar mantém que a ciência,
em algum sentido, provou que a religião é falsa; isto é simplesmente outro modo
de dizer que o cientificismo é a fé própria do capitalismo tardio.) A despeito
do conteúdo exato de secularização, os neoevangélicos de Worthen perceberam que
a imagem coerente do mundo, um pressuposto compartilhado da verdade da religião
cristã, desapareceu. E eles começaram a tentar descobrir como restaurá-la.
O interessante é que as
soluções propostas estão frequentemente assentadas sobre as metodologias do
próprio secularismo. Worthen reconta as tentativas evangélicas de reforçar
dogmas pré-modernos usando as ferramentas da antropologia, da sociologia e do
empirismo moderno – as mesmas formas de conhecimento que eles muitas vezes
condenaram por terem deixado Cristo de lado. Isso é perversamente apropriado,
considerando o argumento de Taylor de que a própria Reforma estabeleceu as
bases para a secularização. O que [Max] Weber diagnosticava (tomando emprestado
de [Friedrich] Schiller) como “o desencantamento do mundo” começou como o
desencantamento sistêmico no interior do cristianismo. Na abolição do “sagrado
do culto e da vida social” e em sua “atitude instrumental”, visando a ordem
social, o protestantismo radical prepara o caminho para o humanismo. Ele não
faz isso sozinho e ele próprio pode ser visto como o produto de forças
econômicas em mudança, mas há um sentido importante no qual os evangélicos se
descobriram vítimas da própria armadilha. Assim, não é de todo surpreendente
encontrar Carl Henry argumentando que a verdade bíblica é proposicional, ao que
Clyde Kilby, professor em Wheaton, rapidamente retrucaria, “Como podem os
Salmos ser proposicionais?”.
Foi ingenuidade dos
neoevangélicos, sem dúvida, pensar que eles simplesmente poderiam formular uma
visão de mundo, como se isso fosse uma questão de decisão individual. Todavia,
eles reconheceram um fato real a respeito do mundo e de suas épocas, isto é,
que as opções básicas para a compreensão da experiência vivida haviam mudado
dramaticamente, e isso era algo recente. Como Taylor argumenta, ser um cristão
no século 21 não é a mesma coisa como era ser um cristão em 1500, e nós
poderíamos acrescentar que ser um ateu também já não é mais a mesma coisa.
Taylor usa o exemplo de
uma pessoa possuída por espíritos malignos na Palestina do século 1: para
aqueles que conviviam com tal pessoa, simplesmente não havia possibilidade de
“alimentar a ideia de que essa era uma explicação interessante para uma
condição psicológica, identificável puramente em termos intrapsíquicos, mas que
havia outras etiologias, possivelmente mais confiáveis, para essa condição”.
Nós, por outro lado, “não podemos ajudar, mas estamos cientes de que há uma
variedade de diferentes constructos, pontos de vista em relação aos quais
pessoas razoavelmente esclarecidas e inteligentes podem de boa vontade
discordar, e o fazem”. Não podemos ajudar “vivendo nossa fé também em uma
condição de dúvida e incerteza”.
Foi essa dúvida e
incerteza que os evangélicos da história de Worthen tentaram exorcizar e,
claro, eles podem também ter tentado recriar as condições sociais da Galileia
do Novo Testamento. O que os filósofos chamam de ‘fundamento’ [‘background’], Taylor escreve, mudou: de
um, no qual um constructo teísta ingênuo era quase onipresente, a outro, “no
qual o constructo de todo mundo se mostra como tal; e no qual, além disso, a
incredulidade tornou-se a opção padrão principal para muitos”. Essa
transformação não pode ser desfeita, exceto por outra transformação igualmente
fundamental, e tais eventos não podem ser provocados deliberadamente.
Ateus de graduação
Uma consequência infeliz
dessa mudança de fundamento é que, como a incredulidade parece ser a única
interpretação plausível a um número cada vez maior de pessoas, elas acham
difícil entender o motivo de alguém adotaria uma posição diferente. Desse modo,
“elas chegam a teorias bastante equivocadas para explicar a crença religiosa”,
deixando-nos expostos a livros grosseiros [ignorant
books], como os de Richard Dawkins, Christopher Hitchens e Daniel Dennett.
Veja, por exemplo, Dawkins falando a respeito de Tomás de Aquino,
uma discussão tão inepta que é como se Noam Chomsky decidisse publicar um livro
introdutório sobre rock pesado [black
metal]. (Veja, em A experiência de Deus,
a elegante demolição que David Bentley Hart faz da análise de Dawkins.)
Os ‘ateus de graduação’,
como o filósofo Mark Johnston os chama em Salvando Deus,
foram definitivamente refutados por Hart, Terry Eagleton, Marilynne Robinson, o
próprio Johnston e outros. Podem ser divertidos como carnificinas intelectuais
– é como assistir Jon Stewart cutucando Glenn Beck [4]. Evidentemente, porém,
Richard Dawkins é apenas um sintoma. Já encontrei ateus que parecem não só
nunca terem conhecido um crente educado e inteligente, mas que duvidam da
existência de tal criatura.
A mim me parece que esses
incrédulos perderam algo fundamental a respeito da natureza do ser, como ela se
manifesta ao animal humano, algo que as principais tradições teístas tentam
abordar com um pouco mais de nuance e generosidade do que o positivismo lógico,
em suas versões atualizadas, consegue reunir. Obviamente, você não tem de
acreditar em Deus para se sentir humilhado e desorientado diante do que
[Martin] Heidegger chamou de “a questão do significado do Ser”. (Na verdade, eu
muitas vezes penso que a noção de “crença” é mais problemática do que deveria.)
Mas você tem de reconhecer que há uma questão, “a grande questão que gira em
torno de você”, como John Ashbery coloca: “sua presença aqui”. E você tem de
reconhecer que se trata de algo fora do âmbito das ciências naturais.
Um dos piores aspectos do
evangelicalismo conservador, especialmente em suas orlas fundamentalistas, é
que muitas vezes o seu literalismo incentiva o ateísmo néscio da variedade
Dawkins. Se o cristianismo de fato abrigasse as crenças de que a Terra foi
criada 6.000 anos atrás, de que a homossexualidade é um mal e de que Noé
realmente construiu uma arca gigantesca, eu também não ia querer ter nada a ver
com isso. Imagino que Richard Dawkins nunca prendeu uma criança de terceiro ano
em um trailer, obrigando-a a confessar que a teoria do equilíbrio pontuado é falsa.
Mas o cristianismo, ouso
dizer, não abriga tais crenças. Como de costume, Marilynne Robinson chamou a atenção para esse ponto
com uma contundência eloquente:
As
pessoas que insistem que a sacralidade das Escrituras depende da crença na
criação em seis dias literais parecem nunca insistir em uma leitura literal de
“dá a quem te pede” [Mt 5, 42] ou “vende o que tens, e dá-o aos pobres” [Mt 19,
21]. De fato, sua política e economia os alinham precisamente com aquelas de
seus adversários, que anseiam por se livrar dos fracos e por soltar as grandes
forças criativas da concorrência. Os defensores da “religião” fizeram com que a
religião parecesse uma tolice, ao mesmo tempo em que emudeceram diante de um
prolongado e altamente efetivo ataque aos pobres.
Em 1931, C. S. Lewis foi
convertido durante um passeio ao luar com J. R. R. Tolkien. No intervalo dessa
caminhada, Lewis escreveria mais tarde, Tolkien o convenceu de que “a história
de Cristo é simplesmente um mito verdadeiro”. Taylor, Robinson, Hart e Johnston
– todos os quais estão abertos às verdades de outras religiões, assim como às
do cristianismo – nos ajudam a entender o que isso significa. Apóstolos da razão, uma história
emocionante, ainda que parcial, das cinzas das guerras fundamentalismo vs.
modernismo, nos ajuda a entender o que elas não significam.
*
Notas do tradutor
Michael Robbins é escritor; autor, entre outros, de Equipment for living e das coletânias de poesia Alien vs.Predator
e The second sex.
Versão ligeiramente diferente deste
artigo foi publicada no Observatório da Imprensa, em 14/1/2014. O artigo original, ‘You being here’, foi publicado
na revista eletrônica Slate, em 6/1/2014. A tradução é de Felipe A. P. L. Costa.
[1] Para detalhes, ver
aqui.
[2] Para detalhes, ver
aqui.
[3] Sobre a edição
brasileira deste livro, ver aqui.
*
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