31 julho 2018

Por causa de uma ave


para a minha mãe

Cada vez gosto menos de saborear
o travo tão pastoso da morte, o murmúrio
secreto dos seus olhos invisíveis
dentro de mim. Porém, há pouco tempo,
num fim de tarde deste fim de julho,
passou-se um episódio que rompeu
de repente na alma todas as comportas
que fingem proteger os ópios tranquilos
a que chamamos vida. Aconteceu
depois de ter chegado a esta casa
perdida numa encosta de província
e onde venho só de longe em longe:
foi durante a limpeza da sala maior
que, afastando um armário, descobri
entre pequenas teias, quase envolto
num sudário de pó, ali esquecido,
na treva e no silêncio dos meses de inverno,
o esqueleto de um pássaro. Entrara
pla chaminé de pedra e escorregara
até cair junto à lareira. Hoje
imagino o pavor do seu voo suicida,
poisando às cegas de móvel em móvel,
dias e dias plo escuro deserto
da sala fria, à toa, procurando
escapar ao seu naufrágio, encontrar
uma réstia de céu, até que, já sem forças,
se deixou deslizar para trás desse armário
onde morreu de sede e fome e solidão
enquanto mal batia as asas
em arremedos de frustradas fugas.

Ao ter na mão aquele resto de corpo,
os ‘pedacinhos de ossos’, toda a quilha
do peito sustentando o arco das costelas,
as minúsculas patas quase intactas,
lembrei-me, num relance de terror,
de outros ossos maiores, os do meu pai,
a não muitas centenas de metros daqui,
num absurdo cubículo de pedra
sobre o qual está gravado um nome de família.
Apodrecem há mais de quinze anos
em sombras que serão iguais a nós
– passageiros ingénuos e translúcidos
de corpos consumidos no seu próprio lume.
Ao sentir entre os dedos o que foram asas,
vi nos últimos gestos dessa ave,
chocando com as paredes, sem saída,
o mesmo desespero esbracejante
de uma nocturna cama de hospital
onde houve um homem que lutou às cegas
no seu estertor febril e consciente,
junto à fronteira íntima, abissal,
que nem a voz transpõe. Nenhum dos gritos
pode ecoar nos meus, aqui, agora,
nesta dádiva exangue e sem destinatário,
porque toda a poesia se resume
a um calafrio embalsamado em letras,
palavras destinadas a morrer
no momento em que as páginas de um livro,
como as asas de um pássaro, os braços de um homem,
se fecharem num sono a que ninguém responde.

Fonte: Silva, A. C. & Bueno, A., orgs. 1999. Antologia da poesia portuguesa contemporânea. RJ, Lacerda Editores. Poema publicado em livro em 1997.

29 julho 2018

Solidão


Matteo [Pietro] Olivero (1879-1932). Solitudine, 1908.

Fonte da foto: Wikipedia.

27 julho 2018

The city limits

A. R. Ammons

When you consider the radiance, that it does not withhold
itself but pours its abundance without selection into every
nook and cranny not overhung or hidden; when you consider

that birds’ bones make no awful noise against the light but
lie low in the light as in a high testimony; when you consider
the radiance, that it will look into the guiltiest

swervings of the weaving heart and bear itself upon them,
not flinching into disguise or darkening; when you consider
the abundance of such resource as illuminates the glow-blue

bodies and gold-skeined wings of flies swarming the dumped
guts of a natural slaughter or the coil of shit and in no
way winces from its storms of generosity; when you consider

that air or vacuum, snow or shale, squid or wolf, rose or lichen,
each is accepted into as much light as it will take, then
the heart moves roomier, the man stands and looks about, the

leaf does not increase itself above the grass, and the dark
work of the deepest cells is of a tune with May bushes
and fear lit by the breadth of such calmly turns to praise.

Fonte (versos 5-8): Bloom, H. 1991 [1973]. A angústia da influência. RJ, Imago. Poema publicado em livro em 1972.

25 julho 2018

Em meu pensamento

Kori Bolivia

Além,
onde a sombra
deixou cravada a tua lembrança,
está a noite derramando
um sonho sagrado,
um canto de luzes
dispersas pelo universo.
E escuto o palpitar
noturno do vento
oculto em meio à erva
de minhas mãos,
de meus beijos.
Além,
onde o mar
deixou seu salgado murmúrio,
estão teus olhos
acariciando a sede misteriosa
de meu corpo.
Além,
onde o amor é profundo,
estás...
e o mundo se contém vibrante
em meu pensamento.

Fonte: Horta, A. B. 2003. Sob o signo da poesia. Brasília, Thesaurus. Poema publicado em livro em 1982. (Versão em português de Anderson Braga Horta.)

22 julho 2018

O pequeno Togo derrota a elefantíase

Charu Sudan Kasturi

Anos depois da picada do mosquito, tudo ainda parece normal. É que a infecção se espalha silenciosamente. As pernas começam a inchar. Em seguida, é a vez dos braços e dos órgãos genitais. O corpo intumescido ingressa em um clube de doenças de aparência física indesejável, um dos maiores do mundo, com um total estimado de 120 milhões de membros, em mais de 70 países. Até o ano passado, 37 desses países estavam no continente africano. Então, uma improvável nação saiu do clube.

Um dos países africanos mais pobres, Togo é cercado por vizinhos mais ricos que, há décadas, lutam para derrotar a filariose linfática, uma doença tropical comumente conhecida como elefantíase (a infecção faz com que a pele das áreas inchadas se pareça com a pele enrugada dos elefantes). Potências mundiais ascendentes, Índia, Brasil e Indonésia também estão a travar uma guerra contra essa moléstia que desabilita ou desfigura uma em cada três vítimas. A malária é a única doença transmitida por vetor que infecta mais gente no mundo.

O feito de Togo, formalmente reconhecido pela Organização Mundial da Saúde (OMS), é o resultado de quase duas décadas de intervenções inteligentes, dizem os especialistas. A nação da África ocidental foi uma das primeiras a encarar o desafio feito pela OMS, nos anos de 1990, de erradicar a doença, disse Rachel Bronzan, uma epidemiologista da agência global de assistência médica Health and Development International.

Em 2000, após constatar que a elefantíase era endêmica em oito dos 40 distritos de Togo, os especialistas em saúde iniciaram um massivo programa de medicação que durou nove anos. Em 2006, uma rede de 47 laboratórios – ao menos um em cada distrito – começou a coletar amostras de sangue em busca da microfilária Wuchereria bancrofti, o verme nematoide por trás da doença, mesmo em distritos onde a elefantíase não era endêmica. Na época, nenhum outro país havia criado esse tipo de sistema de vigilância nacional.

O rigor por si só, no entanto, não foi o que levou o país ao sucesso. Um desafio: furos no sistema de pesquisa, aparentemente robusto. Em Togo, muitas famílias não registram as datas exatas de nascimento, dificultado assim identificar quem poderia receber as drogas (a OMS aconselha que se evite medicar crianças com menos de 5 anos). Mas o país encontrou soluções inovadoras para cada um desses desafios. “É um enorme sucesso e demonstra o compromisso de Togo com esse tipo de trabalho”, disse Bronzan. “Vários outros países poderiam tirar lições disso”.

Na verdade, o tamanho dá a Togo algumas vantagens diante de nações maiores. Cobrir uma população de 8 milhões é mais fácil do que uma de 200 milhões (Brasil) ou de 1,3 bilhão (Índia). Mas as nações em volta – como Burkina Fasso, Benim e Gana – têm populações igualmente pequenas e rendas per capita mais elevadas, porém a filariose linfática permanece endêmica por lá. E a dedicação de Togo para vencer a doença é algo que falta em gigantes como Índia e Brasil, dizem os especialistas.

Enquanto identificavam os distritos mais afetados pela doença, os profissionais de saúde de Togo constataram que a maioria dessas áreas já havia recebido tratamento contra a oncocercose, comumente chamada de ‘cegueira dos rios’. Togo adaptou o programa existente para administrar doses de albendazol, que trata de elefantíase, a todos os cidadãos visitados.

Togo também tem sido ágil em ajustar sua estratégia, quando necessário. Afinal, identificar comunidades vulneráveis e administrar drogas está correto e é bom, mas o que fazer com aqueles que já sofrem com o corpo inchado de modo tão grotesco? Em 2007, Togo capacitou um membro de cada uma das 570 unidades sanitárias do país, visando educar e cuidar de pacientes com a doença. “O programa procurou assegurar a sustentabilidade, a despeito de ajuda externa, por ser de baixo custo”, relata um artigo escrito por Yao Sodahlon e uma equipe internacional de cientistas, publicado em 2013 na revista PLOS Neglected Tropical Diseases.

Mais evidências do compromisso permanente de Togo? Em 2009, ao descobrir que alguns pequenos bolsões de sua população ainda não haviam sido pesquisados pelos 47 laboratórios, o país criou mais 20 unidades, especificamente para as comunidades negligenciadas.

Para enfrentar o desafio imposto pela falta de registros etários de muitas crianças, voluntários usaram varetas para medir a altura delas, adotando a medida como uma idade aproximada. E, embora seja o atual líder africano no combate à doença, Togo tem procurado colaborar com outros países. Ingressou em um projeto multinacional de combate a mortalidade na África ocidental, no qual cirurgiões locais eram treinados em procedimentos recomendados pela OMS. Em 2007 e 2008, os cirurgiões realizaram 215 de tais operações em Togo.

A confiança em soluções locais e regionais para muitos dos desafios impostos por essa batalha reduziu a dependência do país em relação à ajuda internacional, embora o apoio de agências globais, especialmente em relação ao suprimento de medicamentos, tenha tido um papel importante, dizem os especialistas. “O apoio vindo de agências internacionais também tem sido importante, tanto em termos financeiros como técnicos”, disse Bronzan. “Mas o sucesso reside em Togo”.

Os riscos subsistem, especialmente porque a doença permanece endêmica em países vizinhos. Em 2015, as autoridades identificaram um migrante vindo da Costa do Marfim que era portador da infecção. “Como isso é transmitido por mosquitos, o risco de entrada persiste”, disse Bronzan.

Mas o seu sólido sistema de vigilância dá a Togo uma vantagem em superar esses riscos. Quando se trata de enfrentar uma das doenças mais debilitantes do mundo, ficar um passo à frente é agora um hábito para Togo.

Nota

[1] Charu Sudan Kasturi é um jornalista estadunidense de origem indiana. O artigo original, ‘Tiny Togo conquered elephantiasis’, foi publicado na revista eletrônica OZY, em 17/7/2018. Ressalva: o artigo original abriga um erro grave e grosseiro – trata Wuchereria brancofti como uma bactéria, não como um verme netamoide (ver aqui), integrante do filo Nemata (ou Nematoda). Na versão acima, as duas passagens em que isso acontece (2º e 4º parágrafo) já foram ajustadas. Os ajustes e a tradução são de Felipe A. P. L. Costa.

20 julho 2018

O quarto estado


Giuseppe Pellizza da Volpedo (1868-1907). Il quarto stato. 1898-1901.

Fonte da foto: Wikipedia.

18 julho 2018

A Jesus Cristo Nosso Senhor


Pequei, Senhor; mas não porque hei pecado,
Da vossa alta clemência me despido;
Porque, quanto mais tenho delinquido,
Vos tenho a perdoar mais empenhado.

Se basta a vos irar tanto pecado,
A abrandar-vos sobeja um só gemido:
Que a mesma culpa, que vos há ofendido,
Vos tem para o perdão lisonjeado.

Se uma ovelha perdida e já cobrada
Glória tal e prazer tão repentino
Vos deu, como afirmais na sacra história,

Eu sou, Senhor, a ovelha desgarrada;
Cobrai-a; e não queirais, pastor divino,
Perder na vossa ovelha a vossa glória.

Fonte: Spina, S. 1995. A poesia de Gregório de Matos. SP, Edusp.

16 julho 2018

Comiat

Joan Brossa

Els núvols vénen apilotats.

Agafo un mocador per dues puntes
i hi faig un nus. Després un altre.
(Fluixos tots dos, però dic que els estrenyo.)
Un altre en faig d’igual i estiro sempre
el mateix bec. Tapo els nusos.
Llanço el mocador enlaire, i els nusos
estan desfets.

Ah, Llibertat!

Fonte: Pinto, J. N. 2002. Solos do silêncio, 2ª ed. SP, Geração Editorial. Poema publicado em livro em 1958.

14 julho 2018

O amor calado


Ainda que o canto desça, de atropelo
como abelhas no enxame alucinante
em torno a um tronco, e me penetre pelo
ouvido, em sua música incessante,

juro a mim mesmo: nunca hei de escrevê-lo.
Hei de fechá-lo em mim como diamante
dentro da pedra feia. Hei de escondê-lo
na minha alma cansada e navegante.

E nunca mais proclamarei que te amo.
Antes o negarei como os namoros
secretos de menino encabulado.

Que se cale este verso em que te chamo.
Cessem para jamais risos e choros.
Meu amor mineral é tão calado!

Fonte (tercetos): Nejar, C. 2011. História da literatura brasileira. SP, Leya. Poema publicado em livro em 1979.

13 julho 2018

Onze anos e nove meses no ar

F. Ponce de León

Ontem, 12/7, o Poesia contra a guerra completou 11 anos e nove meses no ar.

Desde o balanço anterior – ‘Onze anos e oito meses no ar’ – foram publicados aqui pela primeira vez textos dos seguintes autores: Jessica Brown, Leda Maria Martins, Magalhães de Azeredo, Theotonio dos Santos e Tito Iglesias. Além de alguns outros que já haviam sido publicados em meses anteriores.

Cabe ainda registrar a publicação de imagens de obras dos seguintes pintores: Elías García Martínez, Théo van Rysselberghe e William Powell Frith.

11 julho 2018

Solstício

Leda Maria Martins

Nem sempre
os subúrbios da noite
foram assim tão vastos
e os movimentos dos olhos
assim tão tênues.

Nem sempre nem sempre
os signos da dor
figuraram só brumas
e o sossobrar dos passos
acanharam-se tanto.

Os resíduos do verbo
encenam os tempos da memória
tessitura imaginária
de estranho e familiar desejo.

Nos subúrbios da noite
minha ilusão bordeja
e nas franjas do real
uma fala ébria se alucina
e chacina as alíneas do tempo.

Toda história é sempre
sua invenção.
Qualquer memória é sempre
um hiato do vazio.

E os subúrbios da noite
tecem-se no intervalo dos becos
nas relíquias e ruínas do futuro
nos edifícios da desmemória
que produzem sombras
sob as luminárias.

Fonte (penúltima estrofe): Pereira, E. A., org. 2010. Um tigre na floresta de signos. BH, Maza Edições. Poema publicado em livro em 1999 (versão algo diferente apareceu em 1995).

09 julho 2018

Menos crachás, mais argumentos


Juízes não são apenas bonecos animados manipulados por forças contrárias à soberania popular. O comportamento de muitos deles é, antes de tudo, a expressão máxima de um caldo cultural dos mais rarefeitos: adoramos confeitos, medalhas e adjetivos, mas desconhecemos os substantivos e os verbos impessoais. Nas escolas e universidades, não aprendemos a argumentar. Palpitamos e chutamos. Às vezes, esbravejamos. Tal qual crianças, desconhecemos como o mundo funciona. Há quem ache isso o máximo. Afinal, vivemos em um paraíso tropical. Louvamos o jeitinho e as gambiarras, louvamos a ignorância. Não é de estranhar que tanta coisa funcione mal em nossa sociedade – e.g., de salva-vidas e bombeiros que não trabalham à noite a professores iletrados e médicos que desconhecem fisiologia. (Para não citar os advogados, uma categoria profissional repleta de gaiatos semianalfabetos.)

Quarenta anos atrás, Luiz Inácio Lula da Silva foi adotado como o ponto de confluência de algumas correntes políticas existentes no país. Além dos companheiros habituais de movimento sindical, ele passou a conviver com um amplo leque de gente, incluindo políticos e intelectuais. Anos e anos de convivência deram no que temos hoje: um cidadão do mundo, um sujeito que sabe conversar de igual para igual com qualquer outro chefe de estado ou de governo. A biografia de Dilma Rousseff me parece mais interessante (e bem mais impressionante), mas o fato é que o país nunca teve alguém como Lula na presidência. (As comparações com Getúlio Vargas e JK sempre me pareceram erros grosseiros. Para não mencionar as comparações com FHC, um sujeito que pouco ou nada fez ao longo de sua vida acadêmica e política além de ficar sentado diante do espelho.)

Precisamos nos armar, sobretudo de argumentos.

Precisamos enxotar os adjetivos, sobretudo os mais raivosos.

No plano mais imediato, precisamos desvendar um mistério: Quantos anos de experiência eleitoral ainda serão necessários até que o eleitorado brasileiro entenda a expressão ‘Patrão vota em patrão, trabalhador vota em trabalhador’?

Em termos mais amplos e duradouros, eu diria que a fórmula que faz falta é: Menos adjetivos, menos crachás; mais substantivos, mais argumentos.

07 julho 2018

Passeio na praia


Théo van Rysselberghe (1862-1926). La promenade. 1901.

Fonte da foto: Wikipedia.

05 julho 2018

Procelárias

Magalhães de Azeredo

Quando, no mar cavo e revolto,
Estala o raio e o vento berra,
Como um leão nas trevas solto;

E as ondas – líquidas montanhas –
Rolam; e d’essa horrenda guerra
Avultam, de hora em hora, as sanhas;

Seu ninho, aspérrimo rochedo,
As procelárias, brancas aves,
Deixam; e vão calmas, sem medo,

Por onde o embate é mais agudo,
Rompendo, em círculos suaves,
O turbilhão, que envolve tudo.

Em vão o raio os céus retalha;
Em vão ulula e brame o vento;
Em vão das ondas a batalha

Ferve, e marulhos roucos troam...
Bem alto, além, no firmamento,
As procelárias brancas voam...

Vento, ao teu julgo não as curvas!
Raio feroz, não as abrasas;
Não as tragais, vós, ondas turvas!

Por que são livres – gozo intenso! –
Por que são livres, e têm asas
Para voar no espaço imenso!

*

No mar do século dispersos,
Como as ardidas procelárias,
Sois vós também, meus pobres versos!

Aqui, debate-se a tormenta
Das paixões torpes e nefárias,
Que as almas débeis desalenta!

Triunfa o mal; sórdida, a inveja
Tramas combina, em sombras mudas;
Ri o cinismo; o ódio esbraveja.

Conspira, intrépida e serena,
A traição; o ósculo de Judas
As frontes puras envenena;

Os justos são vilmente expulsos;
Coroa os déspotas a plebe,
Dando aos grilhões da infâmia os pulsos;

Sangue fraterno se derrama,
Que, ávida, a terra aos sorvos bebe...
Sangue que por vingança clama!

Assim desonra a humana luta,
Com baixos cálculos abjetos,
A gente falsa e dissoluta!

Que enorme, infrene vozeria!...
Quem há-de ouvir, cantos diletos,
A vossa límpida harmonia?

Cantos da lira peregrina!
Voai! voai! no solo infenso
Do exílio, a podridão domina,

E ardem do inferno a peste e as brasas...
Voai! a vós o espaço imenso,
Por que também vós tendes asas!

Fonte: Martins, W. 1978. História da inteligência brasileira, vol. 5. SP, Cultrix & Edusp. Poema publicado em livro em 1898.

03 julho 2018

O fim das contas de energia


A primeira companhia elétrica do mundo foi criada em 1880, em Nova York (EUA), por Thomas Edison (1847-1931), o inventor da lâmpada elétrica. Sua companhia começou a produzir eletricidade dois anos depois, a partir de um protótipo de usina: uma caldeira a carvão conectada a um motor movido a vapor e a um dínamo. Quando a usina foi inaugurada, em 6/9/1882, a quantidade de eletricidade produzida era suficiente para acender uma centena e meia de lâmpadas.

O sucesso da empreitada foi imediato, enriquecendo os pioneiros e levando as companhias concorrentes (movidas a gás) à falência. Hoje, virtualmente todas as cidades do mundo estão ligadas por fios de transmissão a uma alguma usina geradora de eletricidade. Na maioria dos casos, o modelo é mais ou menos o mesmo: a corrente elétrica flui a partir de usinas distantes, situadas a dezenas, centenas ou milhares de quilômetros até o interior da casa de cada um dos consumidores.

De Marmelos a Itaipu

A primeira usina geradora de energia elétrica construída no país foi uma termelétrica, instalada em Campos (RJ). O objetivo era gerar eletricidade para uso público e doméstico na capital do país, então a cidade do Rio de Janeiro. Pouco depois, foram construídas as duas primeiras hidrelétricas, ambas em Minas Gerais e para uso privado: a primeira em Diamantina (1883) e a segunda em Nova Lima (1887). A primeira hidrelétrica brasileira a gerar eletricidade para uso público foi Marmelos (1889), uma usina construída em Juiz de Fora (MG). De lá para cá, as hidrelétricas proliferaram pelos quatro cantos do país, alterando a geologia, a ecologia e a sociologia de muitos lugares. Foi assim que, ao longo do século 20, a geração, a transmissão e a distribuição de eletricidade se converteram em três filões de negócios tão desejados.

Uma usina hidrelétrica – seja Marmelos ou Itaipu, ainda a maior usina a fornecer eletricidade aos brasileiros – pode ser descrita como um conjunto de obras e equipamentos (sistemas de captação e adução de água, casa de força etc.) organizados de modo a converter a energia potencial (potencial hidráulico) de um corpo d’água em eletricidade. Uma diferença importante entre as usinas de Marmelos e Itaipu – além das dimensões, claro – é que a primeira aproveita o desnível natural de uma corredeira, enquanto a segunda depende do desnível artificial criado por uma gigantesca barragem de aço e concreto. Em ambos os casos, porém, é o desnível que estabelece o potencial hidráulico a ser explorado.

O coração de uma hidrelétrica é a sua casa de força. É lá que estão as máquinas projetadas para gerar tensões elétricas de alguns milhares de volts. Como as usinas estão situadas longe dos centros consumidores, a energia elétrica gerada precisa ser transmitida a longas distâncias. Para que isso ocorra de modo eficiente, a tensão original é elevada (passando de dezenas para centenas de milhares de volts), o que é feito por um ou mais transformadores de elevação, situados na própria usina ou nas proximidades. Itaipu, por exemplo, tem mais de uma subestação; nelas, os transformadores elevam a tensão de 18 kV para 500-750 kV. Quando a linha de transmissão chega a um ponto de distribuição (digamos, uma cidade), a tensão é reduzida (caindo então para alguns milhares de volts), o que é feito por um transformador de redução. Em seguida, a energia é distribuída até as unidades consumidoras. No caminho, porém, a tensão é reduzida mais uma vez (de milhares de volts para os conhecidos valores de 127 ou 220 V), o que é feito por um segundo transformador de redução (pequenos e em geral instalados em postes na rua).

Embora o potencial hidráulico dos rios possa ser visto como uma fonte renovável de energia, as hidrelétricas têm uma vida útil relativamente curta. A principal razão disso é que o desnível criado pela barragem tende a diminuir, baixando a capacidade geradora da usina. Isso ocorre porque a própria barragem acelera o depósito de partículas (grãos de areia etc.) no fundo, reduzindo o desnível e, consequentemente, a capacidade de armazenamento do lago. Fenômeno semelhante ocorre no leito de lagos e lagoas naturais: com o tempo, o acúmulo de sedimentos trazidos pelas águas tende a ir preenchendo o fundo, o que faz com tais corpos d’água desapareçam. Assim, diferentemente dos rios, que podem correr sobre um mesmo leito durante milhares ou mesmo milhões de anos, lagos e lagoas têm um tempo de vida bem mais curto.

Nas hidrelétricas, a sedimentação de partículas em suspensão pode ser evitada ou revertida por meio da remoção periódica do material acumulado no fundo. Desse modo, a capacidade geradora volta a se aproximar do patamar original, um processo referido como repotenciação. Embora seja uma alternativa óbvia à alegada necessidade de construção de novas usinas (capitães de indústria e gestores oportunistas estão sempre de olho nas grandes obras), na prática esse processo não tem sido devidamente utilizado entre nós. No fim das contas, talvez não seja difícil entender porque há tanta má vontade em torno desse assunto: afinal, construir novas hidrelétricas é um modo muito mais lucrativo de ganhar dinheiro (nem sempre de modo lícito, é bom que se diga), em vez de repotenciar usinas antigas.

Fontes renováveis de energia

Além do carvão mineral e da força das águas, outras fontes têm sido usadas para gerar eletricidade, incluindo gás natural, petróleo e, após a II Guerra Mundial, o chamado combustível nuclear. Um problema comum a todas essas fontes de energia, com exceção talvez da água dos rios, é que elas são fontes não renováveis. Significa dizer que todas elas são fontes de recursos que logo se esgotarão – mais cedo ou mais tarde, dependendo da taxa de consumo.

O esgotamento das fontes não renováveis, no entanto, não implicaria no fim das fontes de energia. Visto que outras fontes estão agora a ser exploradas. É o caso da luz solar, fontes geotérmicas, força das marés, força dos ventos e dos chamados biocombustíveis (etanol, metano e outros materiais de origem biológica). Se o uso dessas fontes renováveis vier a promover a conversão dos motores atuais (combustão) em motores elétricos, é possível que a demanda social por energia passe a ser atendida de modo duradouro, barato e eficiente.

Mas há outras vantagens. Por exemplo, além de um prazo de validade virtualmente indefinido, algumas dessas fontes renováveis podem ser aproveitadas por meio da instalação de unidades locais de geração (residenciais ou comunitárias). É o caso dos aquecedores solares e das células fotovoltaicas, equipamentos capazes de converter a energia solar em calor ou eletricidade, respectivamente. No caso de aquecedores solares, já há modelos disponíveis no mercado que são perfeitamente acessíveis ao consumidor brasileiro. De resto, embora a geração de eletricidade a partir de fontes renováveis não seja tão simples como a obtenção de calor, essa é uma área efervescente de pesquisa e novidades aparecem todos os anos.

Converter energia solar em eletricidade envolve a instalação de muitas células fotovoltaicas, formando numerosos agregados de pequeno ou médio porte. Esse modelo deve se repetir em larga escala, propiciando o surgimento de inúmeras centrais elétricas autônomas, em vez de umas poucas centrais gigantescas, concentradas em lugares distantes, como acontece hoje com as hidrelétricas. Nesse contexto, comunidades locais e até mesmo consumidores individuais poderiam adquirir pequenas usinas, pelas quais seriam a partir de então responsáveis (direta ou indiretamente, contratando o serviço de empresas de manutenção). Dependendo do nível de consumo, o aporte oferecido pelo sistema convencional poderia ser minimizado e eventualmente dispensado.

Coda

A tendência óbvia é que os consumidores poderiam se livrar de vez das contas de energia (em tempo: muitas empresas já fizeram isso, construindo suas próprias hidrelétricas), de modo a compensar os custos com a aquisição e manutenção de uma usina própria. Em outras palavras, comunidades locais e mesmo consumidores individuais poderiam se desconectar da rede elétrica, livrando-se de uma vez por todas das contas de energia!

O fim das contas de energia! – eis aí um objetivo em torno do qual mais gente deveria estar se organizando.

01 julho 2018

Fuente seca

Tito Iglesias

Es cada poeta muerto
una fuente ya sin agua...

Quién escuchará murmullos,
quién sentirá su oleaje,
cuando no fluyan palabras?

Fonte: Horta, A. B. 2016. Do que é feito o poeta. Brasília, Thesaurus. Poema publicado em livro em 2008.

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