29 junho 2012

O mundo de Sofia

Jostein Gaarder

1.
Sofia Amundsen voltava da escola para casa. Percorrera a primeira parte do caminho em companhia de Jorunn, sua colega de classe. Tinham conversado sobre robôs. Jorunn considerava o cérebro humano um computador complicado. Sofia não estava bem certa se concordava com isto. O ser humano não seria algo mais do que uma máquina?

Quando passaram pelo supermercado, cada uma tomou o seu rumo. Sofia morava no final de um bairro extenso, com belas casas, e tinha que andar quase o dobro de Jorunn para voltar da escola. Sua casa parecia ficar no fim do mundo, pois atrás do quintal não havia outras casas, só a floresta.

Dobrou a rua Kløverveien. Bem no fim, a rua formava uma curva fechada, chamada de ‘a curva do capitão’. Só aos sábados e domingos viam-se pessoas por ali.

Era um dos primeiros dias de maio. Em alguns jardins, densas coroas de narcisos floriam sob as árvores de frutas. As bétulas pareciam vestidas de finas capas de florescências verdes.

Não era curioso como nesta época do ano tudo começava a crescer e a medrar? Como se explicava que quilos e quilos da substância verde das plantas pudessem brotar da terra sem vida quando o tempo ficava mais quente e os últimos resquícios de neve desapareciam?

Sofia olhou a caixa de correio, antes de abrir o portão do jardim. Em geral havia um monte de folhetos de propaganda e alguns envelopes grandes para sua mãe. Sofia costumava colocar toda a correspondência sobre a mesa da cozinha, antes de ir para o seu quarto fazer a lição de casa.

Para o seu pai vinham às vezes só alguns extratos bancários, o que não era de se estranhar, pois afinal de contas ele não era um pai como os outros. O pai de Sofia era capitão de um petroleiro e passava quase todo o ano viajando. Quando voltava para casa por algumas semanas, ficava andando pela casa de chinelos e dedicava toda a sua atenção a Sofia e a sua mãe. Mas a proximidade desses momentos desaparecia por completo quando ele estava em serviço.

Hoje havia na grande caixa verde do correio apenas uma pequena carta – e ela era para Sofia.
[...]

Fonte: Gaarder, J. 1995 [1991]. O mundo de Sofia: romance da história da filosofia. SP, Companhia das Letras.

27 junho 2012

Reunião


Marie Bashkirtseff (1858-1884). La réunion. 1884.

Fonte da foto: Wikipedia.

25 junho 2012

Caramuru

Santa Rita Durão

Canto 6

38.
“Bárbaro (a bela diz), tigre e não homem...
Porém o tigre por cruel que brame,
Acha forças amor, que enfim o domem;
Só a ti não domou, por mais que eu te ame:
Fúrias, raios, coriscos, que o ar consomem,
Como não consumis aquele infame?
Mas pagar tanto amor com tédio, e asco...
Ah! que corisco és tu... raio... penhasco.

39.
Bem puderas, cruel, ter sido esquivo,
Quando eu a fé rendia ao teu engano;
Nem me ofenderas a escutar-me altivo,
Que é favor, dado a tempo, um desengano;
Porém deixando o coração cativo
Com fazer-te a meus rogos sempre humano,
Fugiste-me, traidor, e desta sorte
Paga meu fino amor tão crua morte?

40.
Tão dura ingratidão menos sentira,
E esse fado cruel doce me fora.
Se o meu despeito triunfar não vira
Essa indigna, essa infame, essa traidora:
Por serva, por escrava te seguira,
Se não temera de chamar Senhora
A vil Paraguaçu, que sem que o creia,
Sobre ser-me inferior, é néscia, e feia.

41.
Enfim, tens coração de ver-me aflita,
Flutuar moribunda entre estas ondas;
Nem o passado amor teu peito incita
A um ai somente, com que aos meus respondas;
Bárbaro, se esta fé teu peito irrita,
(Disse, vendo-o fugir), ah não te escondas;
Dispara sobre mim teu cruel raio...”
E indo a dizer o mais, cai num desmaio.

42.
Perde o lume dos olhos, pasma e treme,
Pálida a cor, o aspecto moribundo;
Com mão já sem vigor, soltando o leme,
Entre as salsas escumas desce ao fundo;
Mas na onda do mar, que irado freme,
Tornando a aparecer desde o profundo:
“Ah! Diogo cruel!” disse com mágoa,
E sem mais vista ser, sorveu-se n’água.

Fonte (estrofes 38, 40-42): Cereja, W. R. & Magalhães, T. C. 1995. Literatura brasileira. SP, Atual. O poema inteiro, publicado em livro em 1781, comporta 10 cantos; o trecho acima corresponde às estrofes 38-42 do Canto 6 (79 estrofes).

23 junho 2012

Sobre a origem do amor

Harry F. Harlow

O primeiro amor da criança é sua mãe. A terna intimidade desse apego é tal que é às vezes considerado como uma força sagrada ou mística, um instinto não-suscetível de análise. Sem dúvida, tais escrúpulos, ao lado dos obstáculos óbvios no caminho de um estudo objetivo, dificultam a observação experimental dos vínculos entre mãe e filho.

Embora os dados sejam parcos, a literatura teórica sobre o assunto é rica. Psicólogos, sociólogos e antropólogos afirmam todos que o amor da criança é aprendido através da associação do rosto, corpo e outras características físicas da mãe com o alívio de tensões biológicas internas, particularmente fome e sede. Os psicanalistas tradicionais tendem a enfatizar o papel de segurar e mamar ao seio como a base do desenvolvimento afetivo. Recentemente, alguns jovens psiquiatras puseram em dúvida tais explicações simples. Alguns argumentam que o manuseio afetivo no ato de cuidar da criança é uma variável de importância, enquanto uns poucos sugerem que nas atividades que compõem esse cuidado, o contato, a limpeza e mesmo a visão e a audição se combinam para elicitar o amor da criança por sua mãe.

Entretanto, é difícil, se não impossível, usar crianças humanas como sujeitos para os estudos necessários para [superar o] presente impasse especulativo. Ao nascer, a criança é tão imatura que ela tem pouco ou nenhum controle sobre qualquer sistema motor além do envolvido na sucção. Além disso, sua maturação física é tão lenta que, na época em que ela pode conseguir respostas precisas, coordenadas e mensuráveis de sua cabeça, mãos, pés e corpo, a natureza e a seqüência do desenvolvimento têm sido desesperadamente confundidas e obscurecidas. É claro que as pesquisas sobre as relações entre mãe e filho precisavam de um animal de laboratório mais adequado. Acreditamos que este foi encontrado no filhote de macaco. Nos últimos anos, nosso grupo, no [Laboratório de Primatas] da Universidade de Wisconsin, vem empregando filhotes de macacos Rhesus num estudo que, nos parece, já começou a lançar luz sobre a origem do amor da criança por sua mãe.
[...]

Fonte: Harlow, H. F. 1977. O amor em filhotes de macacos. In: Scientific American, Psicobiologia: as bases biológicas do comportamento. RJ, LTC. Artigo originalmente publicado em 1959.

21 junho 2012

Círculo vicioso


Bailando no ar, gemia inquieto vaga-lume:
– “Quem me dera que fosse aquela loura estrela,
Que arde no eterno azul, como uma eterna vela!”
Mas a estrela, fitando a lua, com ciúme:

– “Pudesse eu copiar o transparente lume,
Que, da grega coluna à gótica janela,
Contemplou, suspirosa, a fronte amada e bela!”
Mas a lua, fitando o sol, com azedume:

– “Mísera! tivesse eu aquela enorme, aquela
Claridade imortal, que toda a luz resume!”
Mas o sol, inclinando a rútila capela:

– “Pesa-me esta brilhante auréola de nume...
Enfara-me esta luz e desmedida umbela...
Por que não nasci eu um simples vaga-lume?”

Fonte: Lenko, K. & Papavero, N. 1979. Insetos no folclore. SP, Conselho Estadual de Artes e Ciências Humanas. Poema publicado em livro em 1880.

19 junho 2012

Harvest moon


Come a little bit closer
Hear what I have to say
Just like children sleepin’
We could dream this night away
But there’s a full moon risin’
Let’s go dancin’ in the light
We know where the music’s playin’
Let’s go out and feel the night

Because I’m still in love with you
I want to see you dance again
Because I’m still in love with you
On this harvest moon

When we were strangers
I watched you from afar
Then when we were lovers
I loved you with all my heart
But now it’s gettin’ late
And the moon is climbin’ high
I want to celebrate
See it shinin’ in your eye

Because [...]

Fonte: encarte que acompanha o LP do álbum Unplugged (1993), de Neil Young.

17 junho 2012

Tenho uma grande confiança

Carl Rogers

[...]
Tenho uma grande confiança no potencial do homem para resolver seus próprios problemas. Isso vem de fora da minha experiência em terapia e em grupos. Mas esta confiança se baseia, ou tem como condição, que a pessoa esteja realmente consciente dos fatos. O que realmente me perturba a respeito da sociedade de hoje é a pequeníssima consciência de todos os fatos. Acho que uma grande quantidade de pessoas – políticos, oficiais do governo, industriais, facção da extrema direita, facção da extrema esquerda – está empenhada em ocultar os fatos. Não sei se os fatos estarão disponíveis para o homem tomar decisões sensíveis e perfeitas neste período realmente crucial. Alguém me perguntou, não faz muito tempo, se eu era otimista ou pessimista em relação ao gênero humano. Respondi que tinha uma enorme confiança no indivíduo, em grupos pequenos, mas, pelas razões que já coloquei, minha opinião em relação ao futuro da nossa cultura é que nós estamos sob o fio da navalha. Não sei se chegaremos lá ou não. Se houvesse, digamos, uma tomada do poder por uma facção de direita – que acho muito mais provável do que uma tomada do poder pela facção de esquerda – os psicólogos teriam muito a contribuir com quem quer que assumisse a ditadura. Os psicólogos têm se orgulhado de predizer e controlar o comportamento; eles poderiam orientar um ditador na manipulação da opinião pública, na modelagem do comportamento. Quando você tenta imaginar as contribuições da psicologia ou das ciências do comportamento numa democracia viável, isto é uma coisa muito mais difícil. Há realmente só alguns poucos psicólogos que têm contribuído com idéias que ajudam a manter as pessoas livres, tornando-as psicologicamente liberadas e auto-responsáveis, encorajando-as na tomada de decisões e na resolução de problemas.
[...]

Fonte: Evans, R. I. 1979 [1976]. Construtores da psicologia. SP, Summus & Edusp.

15 junho 2012

Segurando uma concha


Frank Weston Benson (1862-1951). Eleanor holdind a shell. 1902.

Fonte da foto: Wikipedia.

13 junho 2012

Pátio


Com a tarde
Cansaram-se as duas ou três cores do pátio.
A grande franqueza da lua cheia
Já não entusiasma o seu habitual firmamento.
Hoje que o céu está frisado,
Dirá a crendice que morreu um anjinho.
Pátio, céu canalizado.
O pátio é a janela
Por onde Deus olha as almas.
O pátio é o declive
Por onde se derrama o céu na casa.
Serena
A eternidade espera na encruzilhada das estrelas.
Lindo é viver na amizade obscura
De um saguão, de uma aba de telhado e de uma cisterna.

Fonte: Bandeira, M. 2007. Estrela da vida inteira. RJ, Nova Fronteira. Poema publicado em livro em 1923.

12 junho 2012

Sessenta e oito meses no ar

F. Ponce de León

Nesta terça-feira, 12/6, o Poesia contra a guerra completa cinco anos e oito meses no ar. Ao fim do expediente de ontem, o contador instalado no blogue indicava que 172.129 visitas foram registradas ao longo desse período.

Desde o balanço mensal anterior – Cinco anos e sete meses no ar – foram aqui publicados textos dos seguintes autores: Bolivar Costa, Eduardo Ritter Aislán, Gilberto Amado, Gordon A. Fox, Jessica Gurevitch, Lamartine F. Mendes, Margaret Sanger, Mário Pederneiras, Milton Santos e Samuel M. Scheiner. Além de alguns outros que já haviam sido publicados em meses anteriores.

Cabe ainda registrar a publicação de imagens de obras dos seguintes pintores: Edmund Tarbell, Ignacio Barrios e José Clemente Orozco.

11 junho 2012

Tragédia evitável

Margaret Sanger

Num dia quente de julho de 1912, fui chamada a um apartamento de Grand Street. Minha paciente era uma pequena e fraca judia russa, de vinte e oito anos, aproximadamente, com as feições especiais a que o sofrimento dá expressão de madona. O apertado apartamento de três aposentos estava em triste estado de confusão. Jake Sachs, motorista de caminhão pouco mais velho que a mulher chegara à casa para encontrar os três filhos chorando e ela inconsciente devido aos efeitos de um aborto provocado por ela mesma. Chamara o médico mais próximo que, por sua vez, mandara chamar-me. O que Jake ganhava era insignificante, e quase tudo era consumido na manutenção dos filhos, não muito fortes, se bem que sempre limpos e devidamente alimentados. A habilidade da mulher ajudara o casal a economizar um pouquinho, e o marido preferiu empregar as economias chamando uma enfermeira ao invés de mandá-la para um hospital.

O médico e eu preparamo-nos para a tarefa de lutar contra a septicemia. Jamais eu trabalhara tão depressa, e nunca tão concentradamente. Os dias e noites abafados foram transformados num inferno letárgico. Parecia impossível que pudesse haver tal calor, e cada porção de alimento, gelo e drogas tinha que ser transportada através de três lances de escadas.

Jake era mais bondoso e compreensivo que muitos maridos que conheci. Amava os filhos e sempre ajudara a mulher a banhá-los e vesti-los. Levava a água para cima e descia com o lixo antes de sair, pela manhã, e fez tudo o que pôde por mim enquanto, ansiosamente, observava o estado da enferma.

Após quinze dias, a melhora da sra. Sachs estava à vista. Os vizinhos – geralmente fatalistas quanto aos resultados de um aborto – ficaram verdadeiramente alegres pelo fato de ela ter sobrevivido. A sra. Sachs sorria frouxamente a todos que a iam ver, mas não podia reagir às sinceras congratulações. Parecia estar mais abatida e ansiosa do que deveria estar, e passava muito tempo meditando.

Ao final de três semanas, quando eu me preparava para deixar a frágil paciente retomar sua vida difícil, ela, finalmente, falou de seus receios.

– Outra criança acabaria comigo, não acha?

– Ainda é cedo para falar sobre isso – contemporizei.

Quando o médico veio fazer sua última visita, falei com ele:

– A sra. Sachs está bastante preocupada com a possibilidade de ter outro filho.

– Com toda a razão – respondeu o médico. E postando-se diante dela disse: – Outra brincadeira dessas, jovem, e não haverá necessidade de mandar chamar-me.

– Eu sei, doutor – respondeu ela timidamente, hesitando como se precisasse de toda a coragem para falar. – Mas que posso fazer para evitá-lo?

O médico era homem bondoso e trabalhara muito para salvá-la, mas acidentes como esse eram tão comuns que ele havia muito perdera toda e qualquer delicadeza que pudesse ter tido. Riu-se com vontade.

– Você quer guardar o bolo e, também, comê-lo, não é verdade? Bem, isso não pode ser feito. – Pegando o chapéu e a maleta, para sair, completou: – Diz a Jake para dormir no telhado...

Olhei rapidamente para a sra. Sachs. Mesmo através de minhas lagrimas repentinas pude ver estampada em seu rosto uma expressão de completo desânimo. Olhamos, simplesmente, uma para a outra. Nada dissemos até que a porta se fechou após a saída do médico. Ela, então, levantou as mãos magras, de veias azuis, e uniu-as implorando:

– Ele não pode entender. É somente um homem. Mas a senhora entende, não é verdade? Por favor, diga-me qual é o segredo, e não direi a pessoa alguma. Por favor!

Que poderia eu fazer? Não podia empregar as frases convencionalmente confortadoras que não serviriam de conforto. Fiz, em vez disso, o que foi possível para seu bem-estar físico e prometi voltar dentro de alguns dias para, novamente, conversar com ela. Logo depois, enquanto ela dormia, saí na ponta dos pés.

Noite após noite a imagem da sra. Sachs apareceu diante de mim. Inventei, a mim mesma, todas as espécies de desculpa por não ter voltado. Estava ocupada com outros casos; não sabia, na realidade, o que dizer a ela ou como convencê-la de minha ignorância; sentia-me impotente para evitar tais monstruosas atrocidades. O tempo passou, e nada fiz.

Três meses depois, certa noite, o telefone tocou e a voz agitada de Jack Sachs implorou-me que fosse imediatamente à sua casa; a mulher estava doente, de novo, pelo mesmo motivo. Por um instante doido pensei em mandar outra pessoa mas, naturalmente, apressei-me a vestir o uniforme, apanhei a maleta e saí. Quando em caminho, ansiei por um desastre no metrô, por uma explosão, por qualquer coisa que me impedisse de entrar novamente naquela casa. Nada, porém, aconteceu, nem mesmo para atrasar-me. Entrei pela porta miserável e subi, mais uma vez, as escadas familiares. Lá estavam as crianças, coisinhas tão novas...

A sra. Sachs estava em estado de coma e morreu dez minutos depois. Cruzei-lhe as mãos imóveis sobre o peito, lembrando-me quando elas haviam implorado, pedido humildemente o conhecimento a que tinha direito. Cobri o pálido rosto como o lençol. Jake soluçava e passava as mãos pelos cabelos, puxando-os como doido. Sem parar, ele gemia:

– Meu Deus! Meu Deus! Meu Deus!

Fonte: Hardin, G., org. 1967. População, evolução & controle da natalidade. SP, Companhia Editora Nacional & Edusp. Texto originalmente publicado em livro em 1938.

09 junho 2012

Vem conhecer, amigo, esta locanda

Mário Pederneiras

Vem conhecer, amigo, esta locanda,
Toda aromada de jardins e horta...
Um jasmineiro em flor sobre a varanda
E cantigas de mar chorando à porta.

Tem uma vista linda...
Fica-lhe em frente
– Numa saudosa sugestão infinda –
A paisagem mais ampla e mais bizarra,
Pois que dá para a barra
E para o Sol nascente.

Quando o Verão pujante salta
E o seu temido pavilhão desfralda,
Sinto-o daqui, través do Sol que escalda
A Terra e os Céus esmalta.

Então é lindo este pedaço
De Terra simples e consoladora,
Com sua doce claridade loura
E a sua rija atmosfera de aço.

Tão límpido é o Céu que até parece
Todo feito de argila
E o Mar em brilhos trêmulos cintila
– Como se estranha mão de deusa ou fada
Houvesse
Espargido cristais pela enseada.

O Mar fica fronteiro
À nossa honesta e plácida vivenda –
Um Mar de lenda,
Apertado em eterna calmaria
Na mais linda baía
Na mais linda, talvez, do mundo inteiro.

Fonte (primeira e última estrofe): Martins, W. 1978. História da inteligência brasileira, vol. 5. SP, Cultrix & Edusp. O trecho acima integra a segunda parte de um poema mais extenso, ‘Vida simples’, publicado em livro em 1906 com a dedicatória ‘A Gonzaga Duque’.

07 junho 2012

As irmãs


Edmund Tarbell (1862-1938). The sisters. 1921.

Fonte da foto: Wikipedia.

05 junho 2012

Mundo grande


Não, meu coração não é maior que o mundo.
É muito menor.
Nele não cabem nem as minhas dores.
Por isso gosto tanto de me contar.
Por isso me dispo,
por isso me grito,
por isso freqüento os jornais, me exponho cruamente nas livrarias:
preciso de todos.

Sim, meu coração é muito pequeno.
Só agora vejo que nele não cabem os homens.
Os homens estão cá fora, estão na rua.
A rua é enorme. Maior, muito maior do que eu esperava.
Mas também a rua não cabe todos os homens.
A rua é menor que o mundo.
O mundo é grande.

Tu sabes como é grande o mundo.
Conheces os navios que levam petróleo e livros, carne e algodão.
Viste as diferentes cores dos homens,
as diferentes dores dos homens,
sabes como é difícil sofrer tudo isso, amontoar tudo isso
num só peito de um homem... sem que ele estale.

Fecha os olhos e esquece.
Escuta a água nos vidros,
tão calma. Não anuncia nada.
Entretanto escorre nas mãos,
tão calma! vai inundando tudo...
Renascerão as cidades submersas?
Os homens submersos – voltarão?
Meu coração não sabe.
Estúpido, ridículo e frágil é meu coração.
Só agora descubro
como é triste ignorar certas coisas.
(Na solidão de indivíduo
desaprendi a linguagem
com que os homens se comunicam.)

Outrora escutei os anjos,
as sonatas, os poemas, as confissões patéticas.
Nunca escutei voz de gente.
Em verdade sou muito pobre.

Outrora viajei
países imaginários, fáceis de habitar,
ilhas sem problemas, não obstante exaustivas e convocando ao suicídio.
Meus amigos foram às ilhas.
Ilhas perdem o homem.
Entretanto alguns se salvaram e
trouxeram a notícia
de que o mundo, o grande mundo está crescendo todos os dias,
entre o fogo e o amor.

Então meu coração também pode crescer.
Entre o amor e o fogo,
entre a vida e o fogo,
meu coração cresce dez metros e explode.
– Ó vida futura! nós te criaremos.

Fonte: Cereja, W. R. & Magalhães, T. C. 1995. Literatura brasileira. SP, Atual. Poema publicado em livro em 1940.

03 junho 2012

Semente e fruto


Um dia, houve.
Eu era jovem, cheia de sonhos.
Rica de imensa pobreza
que me limitava
entre oito mulheres que me governavam.
E eu parti em busca do meu destino.
Ninguém me estendeu a mão.
Ninguém me ajudou e todos me jogaram pedras.

Despojada. Apedrejada.
Sozinha e perdida nos caminhos incertos da vida.
E fui caminhando, caminhando...
E me nasceram filhos.
E foram eles, frágeis e pequeninos,
carecendo de cuidados,
crescendo devagarinho.
E foram eles a rocha onde me amparei,
anteparo à tormenta que viera sobre mim.

Foram eles, na sua fragilidade infante,
poste e alicerce, paredes e cobertura,
segurança de um lar
que o vento da insânia
ameaçava desabar.
Filhos, pequeninos e frágeis...
eu os carregava, eu os alimentava?
Não. Foram eles que me carregaram,
que me alimentaram.

Foram correntes, amarras, embasamentos.
Foram fortes demais.
Construíram a minha resistência.
Filhos, fostes pão e água no meu deserto.
Sombra na minha solidão.
Refúgio do meu nada.
Removi pedras, quebrei as arestas da vida e plantei roseiras.
Fostes, para mim, semente e fruto.
Na vossa inconsciência infantil.
Fostes unidade e agregação.

Crescestes numa escola de luta e trabalho,
depois, cada qual se foi ao seu melhor destino.
E a velha mãe sozinha
devia ainda um exemplo
de trabalho e de coragem.
Minha última dívida de gratidão
aos filhos.
Fiz a caminhada de retorno às raízes ancestrais.
Voltei às origens da minha vida,
escrevi o “Cântico da Volta”.

Assim devia ser.
Fiz um nome bonito de doceira, glória maior.
E nas pedras rudes do meu berço
gravei poemas.

Fonte: Coralina, C. 2004. Melhores poemas, 2ª edição. SP, Global. Poema publicado em livro em 1983.

01 junho 2012

Por que envelhecemos?


[Abertura]
Envelhecer é acumular idade. No caso de objetos inanimados, o envelhecimento se confunde com o desgaste provocado por fatores físico-químicos. Nos seres vivos, é diferente. Muitos animais, por exemplo, passam por um processo de deterioração (senescência) à medida que envelhecem. As evidências sugerem que não se trata de um processo universal e inevitável, causado por desgaste mecânico. Como e por que, então, um processo que resulta em deterioração e morte de seus portadores se estabeleceu no curso da evolução?

*

Envelhecimento e morte são temas relacionados, de sorte que a pergunta do título costuma vir acompanhada de outra: por que não vivemos para sempre? Alguém poderia, de modo simples, dizer: porque ‘morremos antes’. Em termos científicos, no entanto, essa resposta é bastante insatisfatória – afinal, por que ‘morremos antes’?

Morrer precocemente é algo que com frequência acomete qualquer animal, de abelhas a bem-te-vis, de camundongos a chimpanzés. Em circunstâncias naturais, a morte – entendida aqui como o desaparecimento de um corpo individual – costuma resultar da ação de inimigos naturais (‘morte entre garras e dentes’) ou do estágio final da senescência, a deterioração que acompanha o envelhecimento (‘morte por exaustão’).

Nem todos os animais, entretanto, passam pelo processo de senescência. Assim, embora a ‘morte entre garras e dentes’ seja um risco que se corre em um mundo previamente habitado, a ‘morte por exaustão’ não é tão óbvia ou fácil de explicar. Hipóteses funcionais, como a da ação destrutiva de radicais livres, a do acúmulo de moléculas defeituosas ou a do esgotamento de potenciais genéticos, tentam explicar ‘como’ o processo de deterioração se manifesta. Não é essa a questão. Estamos interessados em examinar a senescência do ponto de vista evolutivo: como e por que um processo que leva seus portadores à morte se estabeleceu no curso da evolução? Em outras palavras, por que, em tantas espécies animais, a aptidão individual (que combina viabilidade e fecundidade) declina com a idade?

Envelhecimento e senescência

O envelhecimento pode ser definido como o acúmulo de idade. Nesse sentido, trata-se de um processo inescapável e universal: todos os objetos envelhecem. No caso de objetos inanimados, o envelhecimento (acúmulo de idade) coincide com a deterioração causada por fatores físico-químicos (desgaste mecânico ou combustão, por exemplo). Os seres vivos não estão imunes a isso, mas tais fatores não são os responsáveis pela deterioração que caracteriza a senescência. A perda de vigor durante o envelhecimento humano é bem diferente, por exemplo, do desgaste mecânico que caracteriza o envelhecimento de uma barra de ferro ou uma pedra.

Podemos definir senescência como um processo de deterioração caracterizado por um declínio na aptidão (perda de viabilidade e/ou redução na fecundidade) à medida que os seres vivos acumulam idade. O envelhecimento é universal, mas a senescência não: várias espécies parecem imunes a ela, enquanto em outras a aptidão aumenta após a maturidade. Este último fenômeno (senescência negativa) parece ser comum principalmente em organismos modulares, como plantas, algas e cnidários.

Mesmo entre os seres vivos com senescência, as características do fenômeno variam muito, incluindo diferenças na longevidade, na idade em que o processo começa e na velocidade com que avança. Em cavalos, por exemplo, cuja longevidade é de algumas décadas, a fase senescente tem início tardiamente: corresponde a menos de um décimo do tempo de vida. Em pavões, que vivem menos de uma década, a fase tem início antes: corresponde a mais de um quinto do tempo de vida.

Tais diferenças são observadas não apenas em animais mantidos em cativeiro, mas também em populações naturais. O curioso é que estudos de campo mostram que, em populações de animais longevos, uma parcela significativa do total de mortes se dá nas faixas etárias mais avançadas. E mais: parte expressiva dessas mortes se deve a fatores internos (‘morte por exaustão’) e não externos (‘morte entre garras e dentes’), sugerindo que a longevidade individual já estaria próxima do limite máximo, ao menos em certos casos. A pergunta, então, é: por que indivíduos que escaparam da ‘morte entre garras e dentes’ ainda assim sucumbem à ‘morte por exaustão’? Por que não vivem para sempre? Em resumo, por que a senescência evoluiu?
[...]

Fonte: Costa, F. A. P. L. 2012. Por que envelhecemos? Ciência Hoje 293: 72-74.

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