30 junho 2016

Livre caminho médio

David Halliday, Robert Resnick & Jearl Walker

Vamos continuar o estudo do movimento das moléculas em um gás ideal. [A] trajetória de uma molécula típica no interior do gás [sofre] mudanças abruptas tanto do módulo como da orientação da velocidade ao colidir elasticamente com outras moléculas. Entre duas colisões a molécula se move em linha reta com velocidade constante. [...]

Um parâmetro útil para descrever esse movimento aleatório é o livre caminho médio λ das moléculas. Como o nome indica, λ é a distância média percorrida por uma molécula entre duas colisões. Esperamos que λ varie inversamente com N/V, o número de moléculas por unidade de volume (ou concentração de moléculas). Quanto maior o valor de N/V, maior deve ser o número de colisões e menor o livre caminho médio. Também esperamos que λ varie inversamente [com] algum parâmetro associado ao tamanho das moléculas, como o diâmetro d, por exemplo. (Se as moléculas fossem pontuais, como supusemos até agora, não sofreriam colisões e o livre caminho médio seria infinito.) Assim, quanto maiores forem as moléculas, menor deve ser o livre caminho médio. Podemos até prever que λ deve variar (inversamente) com o quadrado do diâmetro da molécula, já que é a seção de choque de uma molécula, e não o diâmetro, que determina sua área efetiva como alvo.
[...]

O livro caminho médio das moléculas de ar ao nível do mar é cerca de 0,1 μm. A uma altitude de 100 km o ar é tão rarefeito que o livre caminho médio chega a 16 cm. A 300 km o livre caminho médio é da ordem de 20 km. [...]

Fonte: Halliday, D., Resnick, R. & Walker, J. 2009. Fundamentos de física, vol. 2, 8ª edição. RJ, LTC.

28 junho 2016

A informação internacional

Newton Carlos

A comparação entre o que se fazia ontem e o que se faz hoje, em matéria de noticiário internacional, assume importância maior na medida em que encolhe o espaço aberto a informações de fora. A América Latina, por exemplo, se torna ilustre desconhecida. Diz-se que o fenômeno não é nacional, é universal. A Foreing Affairs, um dos porta-vozes do establishment diplomático dos Estados Unidos, que tratou dessa questão, confirmou a tendência à contração e citou, talvez como razões maiores, da parte de lá, o fim da Guerra Fria e o consequente desinteresse dos americanos pelo que se passa no resto do mundo. Constatação tomada como paradigma.

Mas o que nós, leitores brasileiros, temos a ver com o comportamento americano diante do fim da Guerra Fria? Claro, Estados Unidos e a ex-União Soviética pararam de trocar murros em países miseráveis do Terceiro Mundo. Era o link enunciado por Kissinger, tudo passando pelo eixo Washington-Moscou. Sem isso, sem Guerra Fria, é o raciocínio, reduz-se o appeal das notícias que colocam o universo ao nosso alcance. A varrida entre nós, que é fato, basta olhar jornais e televisão para constatá-lo, teria aí suas origens. O noticiário internacional se encolhe e adota o fait divers como forma, diz-se, de atrair leitores. “Um escândalo sexual na monarquia inglesa me interessa mais do que a matança na Colômbia”, me avisou certa vez um editor da área.

Relembrar o trabalho no Binômio dá mais vida ao contraponto, porque mostra ênfases distantes do link que procurava encaixotar-nos antes mesmo do advento de Kissinger. Os tempos eram ricos. Fim do colonialismo, nascimento de um terceiro-mundismo, erupção de neutralismos, reivindicações de comércio e não ajuda, revolução cubana, a América Latina tentando desgarrar-se da condição de parte da bancada dos Estados Unidos na ONU etc. O Brasil afinal despertava para ebulições que pressionavam a rígida alternativa ou Washington ou Moscou. No Binômio, os assuntos de fora não se apresentavam estanques. Foi dada a mim a oportunidade de colocar o Brasil num contexto mais amplo.

Coisas distantes, aparentemente insignificantes para nós, como os desdobramentos da reunião de Bandung, lá na Indonésia, no outro lado do mundo, de repente podiam ser tratadas como algo do nosso interesse direto. O Brasil virou a cara ao colonialismo português, abraçou o neutralismo, por meio de afagos, nem sempre de pulso forte, ensaiou a criação com a Argentina de um eixo continental de autonomia etc. Tudo isso, visto hoje como velharias, estava no Binômio, com enfoques próprios, além do que informavam os antigos telegramas e à margem da influência de publicações europeias, extremamente intelectualizadas. Temas nacionais eram acoplados às suas projeções externas, quase uma novidade na época. Não havia uma ‘seção internacional’.

Fico pensando como seria o Binômio atualmente, sobretudo num campo, o da informação internacional, que se submete cada vez mais aos padrões e gostos da mídia eletrônica de longo alcance. Reportagens muito bem feitas, mas sem o travo das implicações e anseios nacionais e regionais. Esse travo, essa visão ‘de dentro’, as matérias do Binômio tinham. O link imaginado por Kissinger afinal se impõe, adaptado ao pós-Guerra Fria, já sem Moscou, por meio de padrões e gostos de uma mídia imperial em seus recursos, alcances e centralização das decisões estratégicas. Se vivo, o Binômio certamente procuraria rompê-lo.

Fonte: Rabêlo, J. M. 1997. Binômio: edição histórica. BH, Armazém de Idéias & Barlavento Grupo Editorial.

26 junho 2016

Conceito de mol

Bruce H. Mahan

A unidade fundamental do pensamento químico é o átomo ou a molécula; por isso, não surpreende que seja da maior importância a habilidade para medir e expressar o número de moléculas presentes em qualquer sistema químico. O número de moléculas presentes num sistema ocupa uma posição central em todos os raciocínios químicos e virtualmente todas as equações da química teórica contém, como um fator importante, o número de moléculas. Enquanto hoje é possível determinar a presença de átomos isolados, qualquer tentativa de contar o número enorme de átomos, mesmo em sistemas químicos muito pequenos, poderia manter ocupada a população total do mundo, por muitos séculos. A solução prática para contar grande número de átomos é muito menos trabalhosa; precisamos usar somente a prática mais fundamental do laboratório, a pesagem.

Nosso estudo sobre o desenvolvimento da teoria atômica conduziu à conclusão de que números iguais de átomos estão contidos num peso atômico de cada elemento e que o mesmo número de moléculas é encontrado no peso molecular de qualquer composto. Os termos ‘peso atômico’ e ‘peso molecular’ são rústicos e tendem a encobrir o fato de que a razão pela qual são usados é a de referir-se a um número fixo (número de Avogadro 6,023 x 1023) de partículas. É mais conveniente usar o termo mol para representar a quantidade de material que contém este número de partículas. Como definição, temos:

O número de átomos de carbono contidos em exatamente 12 g de C12 é chamado o número de Avogadro, N. Um mol é a quantidade de material que contém o número de Avogadro de partículas.

Estas definições realçam o fato de que o mol se refere a um número fixo de qualquer tipo de partículas. Assim, é correto referir-se a um mol de hélio, um mol de elétrons ou um mol de Na+, significando respectivamente o número de Avogadro de átomos, elétrons ou íons. [...]

Fonte: Mahan, B. H. 1972 [1969]. Química: Um curso universitário, 2ª edição. SP, Blücher.

24 junho 2016

Tarântula

Luís Murat

Dizem que é um veneno estranho aquele
Que o aguilhão da tarântula inocula:
Entra nas veias, rápido circula,
Conspurca o sangue, deteriora a pele.

Dizem também que o espírito alucina
E faz a gente ter visões e assombros,
E uma vontade de trazer nos ombros
A algazarra do bosque e da colina.

Dança-se em tomo de árvores folhudas,
Colhem-se rosas, como Ofélia, e, rindo,
Rindo, voluptuosamente, ao Pindo
Sobe-se atrás das musas rechonchudas.

Sonha-se cor de rosa e branco... A lua
É como um nenúfar que desabrocha,
Entre cirros, no cimo de uma rocha
Enamorada, castamente nua.

O coração flameja de tal modo,
Como se fora o sol que flamejasse,
E as madeixas de fogo desmanchasse,
Serpenteando pelo corpo todo...

Tinha vontade de sentir, um dia,
Essa demência lúbrica e esquisita,
Para beijar muita mulher bonita,
Que a volúpia dos lábios desafia.

E de seguir, depois, pela existência,
Rouxinoleando, sem ter ninho certo,
Tomando a cova por um céu aberto,
Ou a velhice pela adolescência.

E ver em cada rosa a mesma rosa,
Tagarelando o idioma do perfume,
E sentir da mulher a misteriosa
Chama, que arde no amor e no ciúme!...

E entrefechar o olhar, lascivo e absorto
Na delicia de um gozo que nos prende,
E cair n’um regaço, quase morto,
Que é como um céu que um anjo nos estende...

Ai! do prazer o insólito desejo.
Que nos levanta, que nos aniquila!
Que há que se possa comparar a um beijo
D’essa divina e deliciosa argila?!...

Como é bom revolver a nuvem negra
Que encobre o templo da felicidade,
E ouvir o coração – a toutinegra
Do amor – cantar como na mocidade!

Feliz quem pode substituir os prantos
Por uma nova musica de risos,
E acumular encantos sobre encantos
E paraísos sobre paraísos.

Tu, só tu, poderias, ser corrupto,
Dar outro aspecto a esta paisagem triste:
O teu veneno é o cobiçado fruto,
Se é que o prazer só na loucura existe.

Fonte (estrofes 1, 2, 6, 10, 12, 13): Martins, W. 1977. História da inteligência brasileira, vol. 1. SP, Cultrix & Edusp. Poema publicado em livro em 1895 [1917].

22 junho 2016

I strove with none

Walter Savage Landor

I strove with none, for none was worth my strife.
Nature I loved, and, next to Nature, Art;
I warmed both hands before the fire of Life;
It sinks, and I am ready to depart.

Fonte: Carpeaux, O. M. 2011. História da literatura ocidental, vol. 3. Brasília, Senado Federal. Poema – referido às vezes pelo título ‘Dying speech of an old philosopher’ – publicado em livro em 1853.

20 junho 2016

Lágrima celeste

João de Deus

Lágrima celeste,
Pérola do mar,
Tu que me fizeste
Para me encantar!

Ah! se tu não fosses
Lágrima do céu,
Lágrimas tão doces
Não chorava eu.

Se eu nunca te visse,
Bonina do vale,
Talvez não sentisse
Nunca amor igual.

Pomba debandada,
Que é dos filhos teus?
Luz da madrugada,
Luz dos olhos meus!

Meu suspiro eterno,
Meu eterno amor,
De um olhar mais terno
Que o abrir da flor,

Quando o néctar chora
Que se lhe introduz
Ao romper da aurora
E ao raiar da luz!

Esta voz te enleve,
Este adeus lá soe,
O Senhor t’o leve,
E Deus te abençoe.

O Senhor te diga
Se te adoro ou não,
Minha doce amiga
Do meu coração!

Se de ti me esqueço
Ou já me esqueci,
Ou se mais lhe peço,
Do que ver-te a ti!

A ti, que amo tanto
Como a flor a luz,
Como a ave o canto,
E o Cordeiro a Cruz;

A campa o cipreste,
A rola o seu par,
Lágrima celeste!
Pérola do mar!

Fonte (versos 2, 10, 16 e 23): Cunha, C. 1976. Gramática do português contemporâneo, 6ª edição. BH, Editora Bernardo Álvares. Poema publicado em livro em 1868.

18 junho 2016

Casa sob castanheira


Johann Wilhelm Schirmer (1802-1866). Südtiroler Haus unter Kastanien. 1839-40.

Fonte da foto: Wikipedia.

17 junho 2016

A circunferência de círculo

Hélio Siqueira Silveira

1. DEFINIÇÃO. A circunferência de círculo é o lugar geométrico dos pontos de um plano situados a uma distância constante de um único ponto fixo do mesmo plano.

O ponto fixo e a distância constante dizem-se, respectivamente, centro e raio da circunferência de círculo.

2. EQUAÇÃO ESPONTÂNEA. Consideremos a circunferência de círculo de centro C e raio R. Se M é o ponto descrevente dessa linha, a sua equação espontânea corresponde à equação vetorial:

   | CM | = R ou

   | CM |2 – R2 = 0                  (1)

3. EQUAÇÃO CARTESIANA. Sendo C (x0, y0) e M (x, y), teremos:

   | CM | = (xx0)i + (yy0)i

Tendo em vista a equação (1), obtemos, imediamente, a equação cartesiana da circunferência:

   (x x0)2 + (yy0)2 – R2 = 0     (2)

Em particular, se o centro está na origem dos eixos, teremos x0 = y0 = 0, e a equação (2) reduz-se à forma mais simples:

   x2 + y2 – R2 = 0.

É interessante notar que a circunferência divide o plano em duas regiões distintas. Uma é o interior da linha, a outra é o seu exterior. Sem recorrer à figura, é possível verificar a situação de um ponto de coordenadas dadas, em relação à circunferência. Com efeito, a função que constitui o primeiro membro de sua equação cartesiana (2) toma um valor positivo ou negativo quando se substituem x e y pelas coordenadas do ponto considerado, conforme este seja um ponto da região exterior ou interior da circunferência.
[...]

Fonte: Silveira, H. S. 1975. Geometria analítica plana. JF, Cave Editora.

15 junho 2016

Uma mulher, uma arma carregada

Kathleen E. Gilligan

Nascida em 1830, de pais calvinistas, em Massachusetts, Emily Dickinson é reconhecida como uma das maiores poetas dos Estados Unidos. Embora seus poemas frequentemente tratem da morte, ela de fato escreveu sobre muitos assuntos. Vida, natureza, amor, ciência, céu, inferno, religião, escrita e anseio são apenas alguns dos tópicos que ela explorou. Em muitos casos, seus poemas parecem ter uma mensagem direta, detalhada de um jeito que mesmo aqueles que não estão familiarizados com poesia são capazes de perceber o seu significado.

Outras vezes, a poesia dela pode parecer confusa ou estranha, até mesmo ao leitor mais atento. Nesses casos, é necessário esquadrinhar as pistas que ela deixa em suas palavras, de modo a decifrar o significado oculto. Seu uso aparentemente aleatório de letras iniciais maiúsculas, a ausência de pontuação ou a obsessão por travessões e o uso incorreto da gramática, tudo foi feito deliberadamente, às vezes para realçar a mensagem que, de outro modo, seria ignorada. Um poema assim, de múltiplos significados, é “My Life had stood – a Loaded Gun –”. Para o leitor comum, o poema personifica uma arma; diversas pistas metafóricas, no entanto, levam a uma segunda mensagem e significado: uma mulher e suas palavras têm um poder enorme.

Em toda a sua obra, Dickinson não parece se importar com o que é aceito socialmente. Ela não foge de assuntos como religião e/ou céu e inferno, talvez os mais controversos da época e que, por isso mesmo, podem ter sido evitados por outros autores e poetas (e mulheres, em particular). Em vez de tentar ocultar sua aversão à religião organizada, ela fez o contrário, ostentando suas concepções. “Some keep the Sabbath going to church” e “I’m ceded – I’ve stopped being Theirs –” são exemplos perfeitos disso. Ainda assim, alguns de seus poemas contêm significados ocultos que não são necessariamente óbvios.

Emily Dickinson raramente publicava seus poemas, não por que tivesse receio da crítica e sim por ter ficado insatisfeita com a edição que alguns deles sofreram por parte daqueles a quem ela os enviara. Se não tinha receio da crítica, é provável que ela simplesmente gostasse de criar poemas de duplo sentido. “My Life had stood – a Loaded Gun –”, escrito em versos que alternam trímetros iâmbicos e tetrâmetros, com as estrofes rimando em abcb ou abcd, é ainda mais interessante pelos seus dois significados.

O tema e o narrador do poema

O primeiro verso inclui de pronto uma cesura, armando o cenário para o significado literal do poema em seis estrofes (1). “My life” é o tema do verso, tornando-se posteriormente o tema do poema (1). Todavia, o narrador, ou a persona do poema, é de fato a arma, conforme indicado após a falsa terminação do segundo verso: “The Owner passed – identified –/And carried Me away –” (3-4). O “Me” é a arma (4). Parafraseando, a arma permaneceu no canto até que o seu proprietário veio e a levou.

De outro modo, se examinamos mais profundamente estes versos, poderemos conectá-los a uma mulher e suas palavras. O “My Life” se torna a vida de uma mulher, enquanto o “Loaded Gun” indica o potencial de perigo e poder que há na mulher. Todas as quatro palavras iniciam com letra maiúscula e no verso, embora tenha uma sílaba a mais, “Loaded” praticamente se torna paralela ou equivalente às demais. A mulher permaneceu “In Corners” até que o seu “Owner”, ou esposo, a “identified”, ou escolheu, e a “carried” consigo (2-4). Dickinson está dizendo que as mulheres são poderosas, mas são instrumentos dos homens e frequentemente não têm outra escolha a não ser esperar pelo casamento.

A segunda estrofe diz o que a arma personificada faz. Dickinson emprega uma anáfora nos versos iniciais, salientando a mudança que ocorreu. “We” se refere à arma e seu proprietário, afirmando claramente que eles “roam in Sovreign Woods –” e “hunt the Doe –”, ou atravessam o bosque e caçam um cervo (5-6). O verso “every time I speak to Him” alude a quando a arma dá um tiro e “The Mountains straight reply –” é o som do tiro atingindo as montanhas e retornando (ecoando) até a arma e seu proprietário (7-8). Este significado é óbvio, apesar da linguagem figurativa a respeito das montanhas ecoando. Quanto ao segundo significado, sobre as palavras de uma mulher, há alguns indícios generosos nessa estrofe. “Sovreign” frequentemente indica alguém de autoridade e poder supremos e nesse caso se refere aos homens (5).

O “We roam in Sovreign Woods –” alude à presença do esposo e da esposa no mundo dos homens (5). O “We Hunt the Doe –” foi cuidadosamente formulado por Dickinson (6). “Doe” poderia facilmente ter sido substituído por “deer” ou “buck”, mas o escolhido foi a fêmea da espécie (6). Este verso dá a entender que, no mundo dos homens, as fêmeas ou o poder delas são abatidos. Os homens não podem permitir que as fêmeas se tornem poderosas demais. Quando a fêmea “speak for Him”, “The Mountains straight reply –” (7-8). Dickinson está dizendo que quando uma mulher toma uma decisão que normalmente é do homem, ou se aventura a escrever algo (aventurando-se em um território que os homens têm como deles), ela nada consegue. Poderíamos ler estes versos como se o caminho da mulher fosse bloqueado por uma parede (“Mountains”) ou como se ela fosse imediatamente recebida com críticas (“straight reply”) (8).

As duas interpretações prosseguem na terceira estrofe. O “smile” e a “light” que “Upon the Valley glow –” indicam a faísca e o clarão de quando a arma dispara (9-10). “It is as a Vesuvian face/Had let it’s pleasure through” compara a faísca e o clarão a uma explosão súbita e violenta, como o Vesúvio em erupção (11-12). O significado da estrofe muda se a persona é uma mulher. O “smile” e o “cordial light” poderiam ser a máscara educada que uma mulher deve usar no mundo dos homens, ou mesmo a aparência amável de sua poesia (9). A “Vesuvian face” deixando “its pleasure through –”, contudo, pode ser uma alusão a uma mulher explodindo por meio da escrita, deixando passar as suas palavras (11-12). Um vesuviano era também um fósforo de queima lenta usado para acender charutos e Dickinson poderia querer indicar que, uma vez liberado, o poder das palavras de uma mulher não desvanece facilmente (“vesuvian”).

A segunda metade do poema

Retornando à história da arma, a quarta estrofe conta o que a arma faz ao fim do dia. Nessa estrofe do poema, mais do que em qualquer outra, Dickinson usa aliteração, tirando partido de sons repetidos em “Day done”, “My Master’s” e “Duck’s Deep”. No primeiro verso da estrofe, ela também flerta com a linguagem e a estrutura, usando tanto “Night” como “Day” (13). “I guard my Master’s Head –/’Tis better than the Eider Duck’s/Deep Pillow – to have shared –” diz respeito à disposição da arma à noite (14-16).

A arma está acima da “Master’s Head”, talvez na parede, convencida de que este é o melhor lugar para estar, contrapondo-se ao travesseiro de “Eider Duck’s” que eles poderiam “have shared” (14-16). O significado alternativo mostra que o esposo da mulher é também o seu “Master” (14). “’Tis better than the Eider Duck’s/Deep Pillow – to have shared –” significa que a mulher está deixando a suavidade da vida feminina e até, talvez, de compartilhar o leito com seu esposo (15-16).

“To foe of His – I’m deadly foe –/None stir the second time –” é fácil de compreender, conquanto acreditemos que a arma seja o narrador (17-18). A arma protege o seu proprietário de qualquer “foe” (17). Ninguém se levanta uma “second time”, pois todos estão mortos (18). Por que eles estão mortos? Porque a arma lançou um “Yellow Eye”, que é a faísca no momento em que a arma dispara e talvez a própria bala, e “an emphatic Thumb”, ou o dedo que puxa o gatilho da arma, permitindo que ela atire (19-20). No sentido alternativo dessa estrofe, a mulher declara “To foe of His – I’m deadly foe” (17).

O travessão está no meio do verso, o que desvirtua o significado. Em vez de significar que a mulher é mortífera ao “The foe of His”, é como se ela quisesse dizer ao “The foe of His” e a todos os demais que “I’m deadly foe” (17). Ela é mortífera em razão do poder que suas palavras carregam e estas, uma vez usadas como armamento, “None stir the second time” (18). O “Yellow Eye” poderia se referir ao ‘olho ictérico’, quando algo é examinado com olhar negativo ou crítico (19). O “emphatic Thumb” poderia querer se referir a tomar uma decisão sobre algo (polegares para cima ou polegares para baixo), expressando um ponto de vista de modo convincente (20). Juntos, “Yellow Eye” e “emphatic Thumb”, ou as palavras críticas da mulher a respeito de algo, são irrefreáveis.

A estrofe final, embora em um tom diferente do restante da peça, preserva o duplo sentido. Dickinson usa de aliteração quando a arma afirma que “may longer live” e, aparentemente perturbada com a sua longevidade, insiste que “He longer must – than I”, ou que o seu proprietário deve viver mais tempo (21-22). A arma parece ansiar a morte que futuramente irá chegar ao proprietário, mas que nunca irá apanhá-la, pois não é humana. Nos dois versos finais, a arma praticamente expressa sua aversão ao seu ofício e, mais uma vez, há uma insinuação de anseio pelo que ela nunca terá: “For I have but the power to kill,/Without – the power to die –” (23-24).

Resistindo ao teste do tempo

No fim das contas, a arma era apenas um instrumento a ser usado por seu proprietário e nunca será capaz de encontrar a paz que ele terá. Nessa estrofe do poema de Dickinson, o significado relativo à mulher é um pouco diferente. O “Though I than He – may longer live/He longer must – than I” significa que ela percebe que lhe é possível viver mais tempo, porém, fisicamente, ele deverá viver mais do que ela (21-22).

A razão disso é que ela tem “the power to kill,/Without – the power to die – ”, no sentido de que suas palavras e poesia têm o poder de matar (ou brigar ou discutir) e não podem ser refreadas ou recolhidas, uma vez que ela as coloque em circulação; portanto, visto que as suas palavras serão imortais, é necessário que os homens vivam fisicamente mais do que ela, de modo que as suas palavras estarão continuamente ao redor deles (23-24).

Poesia raramente significa o que parece significar. Há, muitas vezes, um significado oculto ou duplo nas palavras aparentemente inocentes que são apresentadas ao público. O lugar perfeito para esconder qualquer coisa é à vista de todos, seja um objeto proibido ou um assunto tabu. Como dito acima, Dickinson não tinha problema de lidar com temas difíceis, como céu, inferno ou religião, e, portanto, os poemas não contêm significados ocultos por que ela tinha receio da crítica.

A rigor, isso provavelmente se deu pelo simples fato de que ela apreciava a experiência de empilhar significados, uns sobre os outros. Seus poemas podem ser comparados a escavações arqueológicas. Há uma camada superficial, cavando-se um pouco, porém, encontra-se outra camada. No caso de “My Life had stood – a Loaded Gun –”, o significado superficial é a respeito de uma arma personificada, porém, indo um pouco mais fundo no texto, as concepções de Dickinson sobre as mulheres e a poesia talvez se revelem: uma mulher e suas palavras são poderosas e, no mundo dos homens, elas resistirão ao teste do tempo.

*

Notas do tradutor

[1] Eis o poema original:

My Life had stood – a Loaded Gun

Emily Dickinson

My Life had stood – a Loaded Gun –
In Corners – till a Day
The Owner passed – Identified –
And carried Me away –

And now We roam in Sovreign Woods –
And now We hunt the Doe –
And every time I speak for Him –
The Mountains straight reply –

And do I smile, such cordial light
Upon the Valley glow –
It is as a Vesuvian face
Had let it’s pleasure through –

And when at Night – Our good Day done –
I guard My Master’s Head –
’Tis better than the Eider-Duck’s
Deep Pillow - to have shared –

To foe of His – I’m deadly foe –
None stir the second time –
On whom I lay a Yellow Eye –
Or an emphatic Thumb –

Though I than He – may longer live
He longer must – than I –
For I have but the power to kill,
Without – the power to die –

[2] Ao menos seis versões em português de “My Life had stood – a Loaded Gun –“ já foram publicadas no país, em traduções de (o asterisco indica as versões a que eu tive acesso; entre parêntesis, editora/revista e ano de publicação): Vera das Neves Pedroso (Lidador, 1965); Aila de Oliveira Gomes (T. A. Queiroz & Edusp, 1985); Ivo Bender (Mercado Aberto, 2002; L&PM, 2007); José Lira* (Iluminuras, 2006; ver aqui); Antônio Carlos Queiroz (Retrato do Brasil, 2009) e Augusto de Campos* (Cult, 2014). Um levantamento dos poemas de Emily Dickinson publicados em português (no país e alhures) pode ser consultado no sítio da Unesp (São José do Rio Preto, SP), aqui).

[3] Registro a seguir a minha proposta de tradução, a saber:

Minha Vida estancou – uma Arma Carregada

Emily Dickinson

Minha Vida estancou – uma Arma Carregada –
Pelos Cantos – até um Dia
O Proprietário passou – Reconheceu-me –
E para longe Me levou–

E agora Nós vagamos por Bosques Soberanos –
E agora Nós caçamos a Corça –
E toda vez que por Ele eu falo –
As Montanhas de pronto respondem –

E eu sorrio, tamanha luz cordial
Sobre o Vale irradia –
É como um rosto Vesuviano
Que expressa o prazer –

E quando à Noite – Nosso bom Dia feito –
Eu velo a Cabeça do Meu Mestre –
Isto é melhor que o Fundo Travesseiro de
Penas de Pato – ter de partilhar –

Ao inimigo Dele – sou inimigo mortífero –
Nenhum se ergue a segunda vez –
Sobre quem eu lanço um Olho Amarelo –
Ou um Polegar enfático –

Embora mais do que Ele – eu possa viver
Ele deve viver mais – do que eu –
Pois eu tenho apenas o poder de matar,
Sem – o poder de morrer –

Fonte: artigo original, “Emily Dickinson’s ‘My Life had stood – a Loaded Gun –’: revealing the power of a woman’s words”. publicado na revista eletrônica Student Pulse (atual Inquiries Journal), em 2011 (v. 3, n. 9). Tradução e intertítulos: F. Ponce de León.

13 junho 2016

Retrato talvez saudoso da menina insular

Natália Correia

Tinha o tamanho da praia
o corpo era de areia.
E ele próprio era o início
do mar que o continuava.
Destino de água salgada
principiado na veia.

E quando as mãos se estenderam
a todo o seu comprimento
e quando os olhos desceram
a toda a sua fundura
teve o sinal que anuncia
o sonho da criatura.

Largou o sonho nos barcos
que dos seus dedos partiam
que dos seus dedos paisagens
países antecediam.

E quando o seu corpo se ergueu
voltado para o desengano
só ficou tranquilidade
na linha daquele além.
Guardada na claridade
do olhar que a retém.

Fonte: Silva, A. C. & Bueno, A., orgs. 1999. Antologia da poesia portuguesa contemporânea. RJ, Lacerda Editores. Poema publicado em livro em 1955.

eXTReMe Tracker