28 abril 2019

O padre


O padre Pereira,
povoador dos sertões,
jogador de gamão,
fumante inveterado,
escandalizava o bispo distante.
Mas quantas vezes,
na paz da paróquia,
restava absorto, calado,
como se ouvisse no silêncio da noite
o voo dos anjos sobre as torres da igreja.

Fonte: Horta, A. B. 2003. Sob o signo da poesia. Brasília, Thesaurus. Poema publicado em livro em 1978.

27 abril 2019

Modelos matemáticos e biologia

J. B. S. Haldane

A impregnação da biologia pela matemática está apenas começando, porém, a menos que a história da ciência seja um guia inadequado, ela prosseguirá e as pesquisas aqui resumidas exemplificam o início de um novo ramo da matemática aplicada.

Fonte (tradução livre): Haldane, JBS. 1932. The causes of evolution. Londres, Harper.

25 abril 2019

A vaidade que pode mutilar

Fernando de Andrade Quintanilha Ribeiro

Desde os tempos pré-históricos, passando pelas civilizações egípcia e babilônica, asteca e maia, o pavilhão auditivo é considerado um local apropriado para o uso de adereços. Mesmo atualmente, em todas as culturas – seja a ocidental moderna, a indígena sul-americana, a aborígine australiana, as tribais africanas ou orientais –, as orelhas continuam sendo usadas para dependurar ossos, madeira, contas, ouro ou brilhantes. A maioria dos povos escolhe os lóbulos como local mais adequado. Eles podem ser perfurados, dilatados ou rasgados sem maiores problemas pois constituem-se apenas de tecido gorduroso. É observado, porém, em todas as culturas mencionadas, o hábito de preservar a porção cartilaginosa das orelhas. Ou seja, não perfuram outras partes além dos lóbulos.

Hoje, entretanto, o piercing é cada vez mais usado por jovens em todas as regiões do corpo e, comumente, na cartilagem do pavilhão auditivo. Esse hábito vem provocando, em todo o mundo, um aumento na ocorrência de condrites (infecção da cartilagem) e deformidades graves nesse órgão. [...]

Se os jovens soubessem o preço eventualmente pago por essa excentricidade, com certeza não a fariam. A condrite do pavilhão é de suma gravidade pois deforma esse órgão de modo grotesco e incorrigível, gerando a chamada “orelha em couve-flor”.

Fonte: Ribeiro, F. A. Q. 2002. A vaidade que pode mutilar. Ciência Hoje 181: 51-2.

23 abril 2019

A besta interior


Há uma besta-fera adormecida dentro de cada um de nós. A vida civilizada não a suprime, apenas a apascenta.

Quando estamos reunidos em grupo – seja em uma reunião de família ou em um aglomerado na rua –, o que ocorre é que o comportamento individual passa a ser balizado pelo que estão a fazer os outros indivíduos. É por isso que indivíduos em grupo parecem agir de modo mais ou menos ‘coordenado’, ainda que diferente do que agiriam se estivessem sozinhos – um sujeito que é valentão, por exemplo, quando está em grupo, costuma agir de modo bem diferente quando está só.

A psicologia social – área da psicologia pouco desenvolvida entre nós – trata disso.

O modo como a imprensa brasileira encara e reporta esses episódios de ‘vandalismo’ (e.g., brigas em estádios de futebol) é grosseiro e superficial. Seria ótimo se os jornalistas esportivos se informassem melhor com algum estudioso da área. Talvez isso ajudasse a melhorar a qualidade das matérias, diminuindo a quantidade de erros e mal-entendidos que é publicada. Classificar os torcedores em ‘torcedores verdadeiros’ e ‘marginais’, por exemplo, é uma cantilena que pouco ou nada explica. Serve apenas para por panos quentes na situação.

21 abril 2019

Noite de verão


Gonzalo Bilbao [Martínez] (1860-1938). Noche de verano en Sevilla. 1905.

Fonte da foto: Wikipedia.

19 abril 2019

Era da primavera

Claudio Fragata

Mamãe, como é que era?
No tempo dos dinossauros
também tinha primavera?

Não sei dizer, meu amor,
só sei de uma tiranossaura
que adorava colher flor.

Mãe, mas o que ela fazia?
Era vegetariana,
pegava as flores e comia?

Meu bem, que fantasia!
Ela enfeitava com flores
a caverna em que vivia.

Por que tanto capricho?
Nunca vi vaso de flor
na casa de nenhum bicho.

Filho, ela era especial.
Inventava a primavera,
Em plena Era Glacial!

Mãe, deixe de brincadeira!
Flor não nasce no gelo
de nenhuma maneira!

Filho, acredite em mim.
Essa tiranossaura
era dona de um jardim.

Quando o inverno chagava
usava um truque legal
que seu coração esquentava:

enrolada em mil cachecóis,
teimava em ver pela janela
um campo de girassóis!

Fonte: edição n. 238 (setembro de 2012) da revista Ciência Hoje das Crianças. Poema publicado em livro em 2005.

17 abril 2019

Dançando negro

Éle Semog

Quando eu danço
atabaques excitados,
o meu corpo se esvaindo
em desejos de espaço,
a minha pele negra
dominando o cosmo,
envolvendo o infinito, o som
criando outros êxtases...
Não sou festa para os teus olhos
de branco diante de um show!
Quando eu danço há infusão dos elementos,
sou razão.
O meu corpo não é objeto,
sou revolução.

Fonte: Pereira, E. A., org. 2010. Um tigre na floresta de signos. BH, Maza Edições. Poema publicado em 1996. Éle Semog é pseudônimo de Luiz Carlos Amaral Gomes.

15 abril 2019

O sonno, o de la queta, umida, ombrosa

Giovanni Della Casa

O sonno, o de la queta, umida, ombrosa
   Notte placido figlio; o de mortali
   Egri conforto, oblio dolce de mali
   Sì gravi ond’è la vita aspra & noiosa;

Soccorri al core homai, che langue & posa
   Non have; & queste membra stanche & frali
   Solleva: a me ten vola o sonno, & l’ali
   Tue brune sovra me distendi & posa.

Ov’è’l silenzio, che’l di fugge e’l lume?
   E i lievi sogni, che con non secure
   Vestigia di seguirti han per costume?

Lasso, che’nvan te chiamo, & queste oscure
   Et gelide ombre invan lusingo: o piume
   D’asprezza colme: o notti acerbe & dure.

Fonte (versos 2 e 14): Carpeaux, O. M. 2011. História da literatura ocidental, vol. 1. Brasília, Senado Federal. Poema publicado em livro em 1558.

13 abril 2019

Uma lei universal

Patrick Matthew

Há uma lei universal na natureza que tende a tornar cada ser reprodutivo o mais bem ajustado possível às condições a que o seu tipo, ou a matéria assim organizada, está exposto, a qual parece destinada a modelar os poderes físicos e mentais ou instintivos à mais elevada perfeição, e a prosseguir sem cessar. Esta lei sustenta o leão em sua força, a lebre em sua rapidez e a raposa em sua astúcia. Como a Natureza, em todas as suas modalidades de vida, tem o poder de prosperar muito além do que é necessário para suprir o lugar do que sucumbe à decadência do Tempo, aqueles indivíduos que não possuem a força, rapidez, audácia ou astúcia necessária sucumbirão prematuramente sem se reproduzir – ou a presa aos seus devoradores naturais ou arruinada por uma moléstia, em geral induzida pela má nutrição, o seu lugar sendo ocupado pelos mais perfeitos do seu próprio tipo, que estão a pressionar os meios de subsistência.

Fonte: Costa, F. A. P. L. 2019. O que é darwinismo. Viçosa, Edição do autor. Excerto extraído de livro originalmente publicado em 1831.

12 abril 2019

Doze anos e meio no ar

F. Ponce de León

Nesta sexta-feira, 12/4, o Poesia contra a guerra completa 12 anos e meio no ar.

Desde o balanço anterior – ‘Doze anos e cinco meses no ar’ – foram publicados aqui pela primeira vez textos dos seguintes autores: Adriana Reyneri, Carlos F. M. Menck, Dalton Trevisan, Flávio R. Kothe, Luís E. Soares Netto, Nathaniel Kleitman, Neil Gaiman e Verlande Duarte Silveira. Além de outros que já haviam sido publicados antes.

Cabe ainda registrar a publicação de imagens de obras dos seguintes pintores: Eugène Fromentin, Leopold Carl Müller e Raphael von Ambros.

10 abril 2019

Acampamento no Saara


Eugène Fromentin (1820-1876). Campement dans le Sahara, 1872.

Fonte da foto: Wikipedia.

09 abril 2019

O oceano no fim do caminho

Neil Gaiman

Ninguém foi à minha festa de aniversário de sete anos.

Havia uma mesa arrumada com gelatina e pavês, um chapéu de festa ao lado de cada prato e, no meio, um bolo com sete velas. Em cima dele, um livro desenhado com glacê. Minha mãe, que organizara a festa, contou que a moça da confeitaria confessara que eles nunca haviam colocado um livro num bolo de aniversário, e que faziam, para a maioria dos meninos, bolas de futebol ou naves espaciais. Eu fui o primeiro livro dela.

Quando ficou claro que ninguém apareceria, minha mãe acendeu as sete velas e eu as soprei. Comi uma fatia do bolo, como também o fizeram minha irmã caçula e uma de suas amigas (ambas participando da festa como observadoras, e não como convidadas) antes de baterem em retirada, rindo, para o jardim.
[...]

Fonte: Gaiman, N. 2013. O oceano no fim do caminho. RJ, Intrínseca.

04 abril 2019

O nariz sabe, mas a ciência não

Adriana Reyneri

Narizes sempre tiveram problemas. Os boxeadores os amassam. Os médicos os remodelam. As pessoas fazem piadas sobre suas pouco lisonjeiras características. Pior ainda, quando chega a hora de cheirar, ninguém realmente os entende.
[...]

“A ciência do olfato é tão empírica”, diz Robert Gesteland, um neurobiólogo da Universidade Northwestern, “que não há base de previsão para as experiências”. Diferentemente dos sentidos de visão, tato e audição, os estudos do olfato atraíram apenas uma pequena parte do interesse científico. Isso poderá mudar. Os pesquisadores esperam que a solução do mistério do olfato irá fazer progredir nossa compreensão do cérebro. A pesquisa do odor promete ajudar os médicos a diagnosticarem melhor os distúrbios de olfato e paladar que afetam dois milhões de norte-americanos. E, no futuro, tendo bastante conhecimento acerca do odor, será possível colocar em alimentos estranhos, não convidativos mas nutritivos, odores mais conhecidos, talvez desse modo ampliando os recursos mundiais de alimentação. Por enquanto, contudo, o que o nariz sabe ele não está revelando.

Fonte: Leigh, J. & Savold, D., orgs. 1991 [1988]. O dia em que o raio correu atrás da dona-de-casa... e outros mistérios da ciência. SP, Nobel.

02 abril 2019

Morte e ressurreição


Morri sexta-feira passada
Como tinha prometido
A promessa era de mais nada
O ressuscitar é-me permitido.

Não me matei nem me mataram:
Tecnicamente fui suicidado –
Os deuses contra mim voltaram
Meu aparelho de ataque frustrado.

Se ao morto for dado se mostrar
Vou aparecer
Não dando nada o ar
De quem se deixou morrer.

Apareço em carne e osso embora morto
Falo e ajo como sempre fiz
No tom de voz mais absorto
Que tanto comigo condiz.

Então, casualmente
Encontrarei quem me suicidou e, embora tente, ver-se-á:
Não posso mais ser morto embora o tente
Sua visão me ressuscitará.

Fonte: Silva, A. C. & Bueno, A., orgs. 1999. Antologia da poesia portuguesa contemporânea. RJ, Lacerda Editores. Poema publicado em livro em 1986.

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