26 fevereiro 2018

In memoriam

Egito Gonçalves

Um dia para ti confusa boca eu fui
na névoa de um comboio que afastava
a memória dos corpos. Clarões
intermitentes ofuscavam a janela
que a noite embaciava e entre carris
rasgava já uma dor que nem nascera.
Não sabíamos que afinal
na escrita
se perdia o rosto. Que buscá-lo
era lavrar o inverno, dispor
os ácidos, desalinhar o incenso. Quando
o gelo funde ainda lembro
resinas, esfarrapados nimbus,
uma pedra estriada que algum dia
fotografei para logo perder. O eco
repercute na folha de papel
que do título esperava certamente
uma elegia. Escondo-me
atrás de persianas que me escondem
as veredas onde poderia acaso
outra voz ter nascido.

Fonte: Silva, A. C. & Bueno, A., orgs. 1999. Antologia da poesia portuguesa contemporânea. RJ, Lacerda Editores. Poema publicado em livro em 1995.

24 fevereiro 2018

O malandro que queria ser rei

F. Ponce de León

Malandro é o sujeito que toma rasteira e se acha o maioral.

*

Era uma vez um malandro. Tinha ele uma prima, irmã e esposa. Perdeu as três.

Primeiro, um gringo de olhos puxados levou a prima. Depois, apareceu um sujeito de óculos escuros e camisa da seleção e levou a irmã. Por fim, um terceiro gringo veio e lhe tomou a esposa.

“E agora, o que eu digo no boteco?”

Na primeira vez, ele disse que a prima se arranjou. Na segunda, ele disse que a irmã encontrou um otário e desencalhou. Na terceira, ele riu e disse que foi ele quem se deu bem, pois se livrou da bruaca.

O malandro é o rei do pedaço. Adora futebol, mas não deixa de acompanhar o telecatch, no sábado à noite, e a corrida de baratinhas, no domingo de manhã.

Não gosta de ler. Diante da TV ligada, porém, revela uma grande frustração: gostaria de ter um diploma de juiz. Hoje, seria o rei de Alienópolis ou de Bananalândia.

21 fevereiro 2018

Once more! Our God, vouchsafe to Shine

Samuel Sewall

Once more! Our God, vouchsafe to Shine:
Tame Thou the Rigour of our Clime.
Make haste with thy Impartial Light,
And terminate this long dark Night.

Let the transplanted English Vine
Spread further still: still call in Thine:
Prune it with Skill: for yield it can
More Fruit to Thee the Husbandman.

Give the poor Indians Eyes to see
The Light of Life: and set them free;
That they Religion may profess,
Denying all Ungodliness.

From hard’ned Jews the Vail remove;
Let them their Martyr’d Jesus love;
And Homage unto Him afford,
Because He is their Rightfull Lord.

So false Religion shall decay,
And Darkness fly before bright Day:
So Men shall God in Christ adore;
And worship Idols vain, no more.

So Asia, and Africa,
Europa with America;
All Four, in Consort join’d, shall Sing
New Songs of Praise to Christ our King.

Fonte (versos 1-4, 9-10, 19-20): Gould, S. J. 1997. Dinossauro no palheiro. SP, Companhia das Letras. Poema datado de 1701.

19 fevereiro 2018

O bobo da corte


Jan [Alojzy] Matejko (1838-1893). Stańczyk. 1862.

Fonte da foto: Wikipedia.

17 fevereiro 2018

Fossilização

Josué Camargo Mendes

Entende-se por fossilização o conjunto de processos graças aos quais se conservam restos ou vestígios de animais ou plantas.

A fossilização só se realiza sob determinadas condições de ambiente. Sendo propícias as condições, até organismos delicados como as medusas podem deixar a sua forma impressa nas rochas. O soterramento rápido deve ter sido fator essencial, em quase todos os casos, devido à proteção imediata que oferece aos restos. As condições mais favoráveis à fossilização encontram-se, em geral, nos fundos dos mares ou de lagos. Muitos organismos, entretanto, são sepultados em cinzas vulcânicas, em depósitos calcários de grutas ou, ainda, em resina ou solos congelados. A presença de bactérias é sempre fator adverso, pois concorrem para a rápida decomposição dos restos orgânicos. Os animais necrófagos contribuem, também, para a pronta destruição dos restos orgânicos.
[...]

Fontes: Mendes, J. C. 1977. Paleontologia geral. RJ, LTC & Edusp.

15 fevereiro 2018

To Mrs. Unwin

William Cowper

Mary! I want a lyre with other strings,
   Such aid from Heaven as some have feign’d they drew,
   An eloquence scarce given to mortals, new
And undebased by praise of meaner things,
That, ere through age or woe I shed my wings,
   I may record thy worth with honour due,
   In verse as musical as thou art true,
And that immortalizes whom it sings.
But thou hast little need. There is a book
   By seraphs writ with beams of heavenly light,
On which the eyes of God not rarely look,
   A chronicle of actions just and bright;

There all thy deeds, my faithful Mary, shine,
And, since thou own’st that praise, I spare thee mine.

Fonte (versos 9-13): Carpeaux, O. M. 2011. História da literatura ocidental, vol. 2. Brasília, Senado Federal. Poema publicado em livro em 1803.

13 fevereiro 2018

A pérola

Clodoaldo de Alencar

Na montra azul do mar, sobre o lençol de argila,
que a tintura do lodo há milênios encarde,
– desde que nasce a aurora e morre, em sangue, a tarde,
sob a equórea pressão a pérola cintila.

A onda, espúmea e revel, que ora avança e vacila,
no evasivo correr de alva Ninfa em alarde
e em cujos ombros nus o ouro dos astros arde,
não lhe rouba, sequer, a postura tranquila.

O estojo em que ela fulge o homem-do-mar presume
e, num mergulho audaz, vai procurá-la em torno
às rosas de coral dos jardins sem perfume.

Depois, rompendo o leque a mil sargaços, boia,
trá-la, fá-la viver presa a colo alvo e morno:
– joia fina a pompear no engaste de outra joia.

Fonte: Horta, A. B. 2016. Do que é feito o poeta. Brasília, Thesaurus. Poema publicado em livro em 1961.

12 fevereiro 2018

Onze anos e quatro meses no ar

F. Ponce de León

Nesta segunda-feira, 12/2, o Poesia contra a guerra completa 11 anos e quatro meses no ar.

Desde o balanço anterior – ‘Cento e trinta e cinco meses no ar’ – foram publicados aqui pela primeira vez textos dos seguintes autores: Artur Gonçalves Ferreira, Cyro Armando Catta Preta, Humberto Werneck, Isaías Pessotti, Lino Guedes, Ransom Riggs e Samuel Wilberforce. Além de alguns outros que já haviam sido publicados em meses anteriores.

Cabe ainda registrar a publicação de imagens de obras dos seguintes pintores: Adolph von Menzel e Thomas William Roberts.

10 fevereiro 2018

Formação de uma nuvem de tempestade

Artur Gonçalves Ferreira

O aquecimento diferenciado da superfície terrestre é o principal mecanismo de desenvolvimento das tempestades. Como as áreas da superfície terrestre são aquecidas com diferentes gradientes térmicos nos baixos níveis, o fluxo do ar cria as zonas de convergência de massa (áreas onde os ventos de diferentes direções se encontram) e, portanto, movimento ascendente. É ao longo dessas zonas de convergência que as trovoadas tendem a se formar e desenvolver.

As nuvens de tempestade (cbs) crescem quando a atmosfera se encontra suficientemente instável em razão do aquecimento da superfície ou de outro mecanismo atmosférico. Na atmosfera instável, o ar aquecido em contato com a superfície sobe. A formação da nuvem de tempestade inicia-se quando esse ar aquecido se expande e começa a condensar. Eventualmente o ar é resfriado até o seu ponto de orvalho e alcança a saturação, formando nuvens cúmulos. Se a atmosfera está muito instável, os cúmulos continuarão a se desenvolver na vertical, até virarem cúmulos-nimbos. Um típico cúmulo-nimbo no estágio maduro pode alcançar, em seu topo, uma altura de 15 km (45.000 pés) ou mais. Como essa nuvem cresce muito, seu topo pode esparramar-se devido ao efeito combinado de ventos nos diversos níveis. Isso dá à nuvem um topo parecido com uma bigorna, que é uma das principais características de uma cb.

Dentro do cb, o ar circula na vertical e na horizontal. O ar quente e úmido sobe, criando fortes correntes ascendentes. Quando o ar sobe, ele é resfriando, causando a condensação e, subsequentemente, as gotas de água crescem e caem como precipitação, causando fortes correntes descendentes. Na superfície, esse ar descendente gera uma pequena área de alta pressão, conhecida como mesoalta, responsável por indicações erradas nos altímetros das aeronaves nos momentos de pouso e decolagem.
[...]

Fonte: Ferreira, A. G. 2006. Meteorologia prática. SP, Oficina de Textos.

08 fevereiro 2018

Sobre a origem das espécies: resenha crítica

Samuel Wilberforce

O sr. Darwin escreve como cristão e não duvidamos de que o seja. Não acreditamos, por um momento, que seja daqueles que retêm num canto do coração uma descrença secreta que não ousam declarar; rogamos-lhe, portanto, que considere bem as bases nas quais marcamos sua hipótese com a acusação de tal tendência. Ele, em primeiro lugar, não declara obscuramente que aplica seu esquema da ação do princípio da seleção natural ao Homem assim como aos animais que o rodeiam. Ora, devemos dizer imediatamente, e abertamente, que tal noção é inteiramente incompatível não só com expressões únicas na palavra de Deus naquele assunto da ciência natural no qual não está imediatamente interessado, mas, o que em nossa opinião é muito mais importante, com a inteira representação daquela condição moral e espiritual do homem que é seu assunto apropriado. A supremacia derivada do homem sobre a terra; o poder de fala articulada do homem; o dom da razão que o homem possui; [o livre arbítrio] e a responsabilidade do homem; a queda e a redenção do homem; a encarnação do Filho Eterno; o abrigo do Espírito Eterno – tudo isso é igual e completamente irreconciliável com a ideia degradante da origem bruta do que foi criado à imagem de Deus e redimido pelo Filho Eterno reclamando para si sua natureza. Também inconsistente – não com expressões passageiras, mas com o esquema total das relações de Deus com o homem, como foi registrado por Sua palavra – é a ideia ousada do sr. Darwin sobre o maior desenvolvimento do homem até a uma extensão desconhecida de poderes, forma e tamanho através da seleção natural agindo na longa vista das idades que ele coloca confusamente sobre a terra nos indivíduos mais favorecidos de sua espécie. Não queremos estender o assunto nestas páginas. Já fizemos o bastante com o propósito de indicar, sucintamente, seu curso. [...]

Fonte: Hardin, G., org. 1967. População,evolução & controle da natalidade. SP, Nacional & Edusp. O trecho integra um artigo publicado originalmente em 1860.

06 fevereiro 2018

Permanência da poesia

Emílio Moura

Quando a luz desaparecer de todo,
mergulharei em mim mesmo e te procurarei lá dentro.

A beleza é eterna.
A poesia é eterna.
A liberdade é eterna.
Elas subsistem, apesar de tudo.

É inútil assassinar crianças. É inútil atirar aos cães os que,
de repente, se rebelam e erguem a cabeça olímpica.
A beleza é eterna. A poesia é eterna. A liberdade é eterna.
Podem exilar a poesia: exilada, ainda será mais límpida.

As horas passam, os homens caem,
a poesia fica.

Aproxima-te e escuta.
Há uma voz na noite!

Olha:
É uma luz na noite!

Fonte (quarta estrofe): Cunha, C. 1976. Gramática do português contemporâneo, 6ª edição. BH, Editora Bernardo Álvares.

04 fevereiro 2018

Quarto com varanda


Adolph von Menzel (1815-1905). Das Balkonzimmer. 1845.

Fonte da foto: Wikipedia.

01 fevereiro 2018

Zona

Guillaume Apollinaire

Por fim estás cansado deste mundo antigo

Pastora ó torre Eiffel o rebanho das pontes bale esta manhã

Você está farto de viver na antiguidade grega e romana

Aqui até os automóveis parecem antigos
A religião sozinha continua nova a religião
Continua simples como os galpões de Porto-Aviação

Só tu na Europa não és antigo ó Cristianismo
O Europeu o mais moderno sois vós Papa Pio X
E tu que as janelas observam e vergonha te impede
De entrar numa igreja e confessar-te esta manhã
Lês os folhetos os catálogos os cartazes que cantam bem alto
Eis a poesia esta manhã e para a prosa temos os jornais
Há as entregas a 25 centavos cheias de aventuras policiais
Retratos dos grandes homens e mil títulos diversos

Vi esta manhã uma linda rua cujo nome esqueci
Nova e limpa do sol ela era o clarim
Os diretores os operários e as belas secretárias
Da segunda de manhã ao sábado à noite quatro vezes por dia nela passam
De manhã por três vezes a sirene gemia
Um sino raivoso late pelo meio-dia
As inscrições dos painéis e das muralhas
As placas os avisos gritam como papagaios
Eu amo a graça desta rua industrial
Que fica em Paris entre a rua Aumout-Thiéville e a avenida des Ternes

Eis a jovem rua e tu és ainda uma criancinha
Tua mãe só te veste de azul e branco
És muito piedoso e com o mais antigo de teus camaradas René Dalize
Vocês não amam nada tanto quanto as pompas da igreja
São nove horas a luz de gás baixou toda azul vocês saem do dormitório escondidos
Vocês rezam toda a noite na capela do colégio
Enquanto eterna e adorável profundeza ametista
Gira para sempre a resplandecente glória do Cristo
É o belo lírio que todos cultivamos
É a tocha de cabelos ruivos que não apaga o vento
É o filho pálido e dourado da dolorosa mãe
É a árvore sempre frondosa de todas as orações
É a dupla força da honra e da eternidade
É a estrela de seis pontas
É Deus que morre na sexta-feira e ressuscita no domingo
É o Cristo que sobe ao céu melhor que os aviadores
Ele detém o recorde do mundo para a altura

Pupila Cristo do olho
Vigésima pupila dos séculos ele sabe fazer
E mudado em pássaro este século como Jesus sobre no ar
Os diabos nos abismos levantam a cabeça para o olhar
Eles dizem que ele imita o Mago da Judeia Simão
Eles gritam se ele sabe voar que o chamem de ladrão
Os anjos revoam em volta do lindo voador
Ícaro Enoch Elias Apolônio de Tiano
Flutuam em volta do primeiro aeroplano
Às vezes se afastam para deixar passar aqueles que transportam a Santa Eucaristia
Estes padres que sobem eternamente levantando a hóstia
O avião pousa enfim sem fechar as asinhas
O céu se enche então de milhões de andorinhas
Velozes vêm os corvos os falcões as corujas medonhas
Da África chegam os íbis os flamengos as cegonhas
O pássaro Rocha cantando pelos poetas e cantadeiras
Paira em suas garras o crânio de Adão a cabeça primeira
A águia cai do horizonte lançando grande grito de dor
E da América vem o pequeno beija-flor
Da China vieram os pihis longos e ágeis animais
Que só têm uma asa e voam em casais
E eis a pomba espírito imaculado
Que acompanham o pássaro-lira e o pavão alado
A fênix como fogueira que a si mesmo alimente
Um instante cobre tudo de sua cinza ardente
As sirenes deixando os perigosos estreitos
Chegam cantando lindamente as três os seus feitos
E todos águia fênix e pihis da China
Fraternizam com a voadora máquina

Agora você anda em Paris sozinho na multidão
Rebanhos de ônibus mugindo perto de ti rodam
A angústia do amor te deixa calado
Como se não devesses nunca mais ser amado
Se vivesses no tempo antigo irias para o altar
Você sente vergonha quando te surpreendes a rezar
Gozas de ti mesmo e como o fogo do inferno teu riso crepita
As faíscas de teu riso douram o fundo da tua vida infinita
É um quadro pendurado num escuro museu deserto
E algumas vezes vais olhá-lo de perto

Hoje andas em Paris as mulheres estão ensanguentadas
Era e eu não queria lembrar era do declínio da beleza

Rodeada de chamas fervorosas Nossa Senhora me olhou em Chartres
O sangue de vosso Sagrado Coração me inundou em Montmartre
Estou doente de ouvir a palavra venturosa
O amor do qual eu sofro é uma doença vergonhosa
E a imagem que te possui te faz sobreviver na angústia e na insônia
É sempre perto de ti esta imagem que passa e sonha

Agora estás nas margens do Mar Mediterrâneo
Sob os limoeiros em flor todo o ano
Com teus amigos passeias de barco
Um deles é Nicento, há um Mentonasco e dois Turbiarcos
Olhamos os polvos das profundezas com terror
E entre as algas nadam peixes imagens do Salvador

Estás no jardim de uma pousada perto de Praga
Te sentes todo feliz na mesa uma rosa afaga
E observas em vez de escrever teu conto em prosa
O inseto que dorme no coração da rosa
Apavorado te vês desenhado nas ágatas de Santo Sexo
Estavas triste de morrer quando te vistes lá sem nexo
Pareces o Lázaro assustado pelo dia
As agulhas do relógio do bairro judeu andam ao contrário
E recuas também lento no teu viver diário
Subindo ao Hradchin e de noite escutando
Nas tabernas cantar canções tchecas macias

Eis-te em Marseille no meio das melancias

Eis-te em Koblenz no hotel do Gigante

Eis-te em Roma sentado sob uma nespeira do Japão

Estás em Amsterdã com uma moça que achas linda e que é feia
Ela deve casar com um estudante de Leyde
Lá se alugam quartos em latim Cubicula locanda
Eu me lembro passei lá três dias e outros tantos em Gouda

Estás em Paris frente ao juiz
Como um criminoso estás preso

Fizestes dolorosas e felizes viagens
Antes de perceber da mentira e da idade as imagens
Sofrestes do amor com vinte e trinta anos
Vivi como um louco e perdi os meus anos

Não ousas mais olhar tuas mãos e a todo momento eu queria chorar
Sobre ti sobre aquela que amo sobre tudo que te fez apavorar

Tu olhas os olhos cheios de lágrimas estas pobres crianças
Eles creem em Deus eles rezam as mulheres amamentam emigrantes
Eles enchem de seu cheiro a sala da estação Saint-Lazare
Eles têm fé em sua estrela igual aos reis magos
Eles esperam ganhar dinheiro na Argentina
E voltar ao país com a fortuna feita
Uma família carrega um edredom vermelho como vocês carregam vosso coração
Este acolchoado e nossos sonhos são irreais
Alguns desses emigrantes ficam e moram
Rua das Roseiras ou rua des Ecouffes em cortiços
Já os vi muitas vezes à noite respiram o sereno da rua
E se movem raramente como as peças do xadrez
Há principalmente judeus suas mulheres usam perucas
Elas ficam sentadas pálidas no fundo das lojas

Estás de pé frente ao balcão de um boteco mal-afamado
Tomas um café de dois centavos entre os desgraçados

És a noite num grande restaurante

Estas mulheres não são maldosas têm preocupações no entanto
Todas até a mais feia fez sofrer seu amante tanto

Ela é filha de um sargento da cidade de Jersey

Suas mãos que eu não havia visto são duras e rachadas

Tenho uma piedade imensa pelas costuras de seu ventre

Eu humilho agora uma pobre moça de riso horrível a minha boa

Estás só a manhã vai chegar
Os leiteiros fazem tinir seus vasilhames nas ruas

A noite se afasta como uma bela mulata
É Ferdine a falsa ou Léa a atenta

E bebes este álcool ardente como a tua vida
Tua vida que bebes feito aguardente

Andas para Auteuil queres ir à tua casa a pé
Dormir entre os fetiches da Oceania e da Guiné
Eles são Cristos de outra forma e outras crenças
São Cristos inferiores das obscuras esperanças

Adeus Adeus

Sol cor cortado

Fonte: Apollinaire. 2005. Álcoois e outros poemas. SP, Martin Claret. Poema publicado em livro em 1913.

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