29 dezembro 2013

Venho de longe, trago o pensamento

Paulo Bonfim

Venho de longe, trago o pensamento
Banhado em velhos sais e maresias;
Arrasto velas rotas pelo vento
E mastros carregados de agonias.

Provenho desses mares esquecidos
Nos roteiros de há muito abandonados
E trago na retina diluídos
Os misteriosos portos não tocados.

Retenho dentro da alma, preso à quilha
Todo um mar de sargaços e de vozes,
E ainda procuro no horizonte a ilha

Onde sonham morrer os albatrozes...
Venho de longe a contornar a esmo,
O cabo das tormentas de mim mesmo.

Fonte (exceto os versos 9-12): Nejar, C. 2011. História da literatura brasileira. SP, Leya. Poema publicado em livro em 1951.
Observação, em 31/1/2015: este poema já havia sido publicado no blogue (aqui).

27 dezembro 2013

Nem a morte

Afonso Henriques Neto

música das coisas suando em minha pele,
na noite humanizada da pele, o anjo cego,
o sol caolho, música, música de todos
os desesperos, de todas as azuis diabruras
e terríveis cósmicas gangrenas, o silêncio
de estrela, o branco tenso da cicatriz.

não quero enxugar o suor do morto.
não quero nunca mais sofrer a lenta
corrosão de minha tia na cama cheia
de farelos de câncer, oh jovem voz
antiga em corpo roído, pobre música
das coisas ditas sem resultado.

não quero pintar o lábio da morta.
vestir a nudez de ausência. dependurar
os brincos de lágrima. não quero o sal
amargo de crianças sangrando no fundo
palco de um teatro mais negro que a negra
composição de música navegando sem braços.

porquanto persigo a música que não sei.
pois sei pouco, três ou quatro poetas,
pedaços de sistemas filosóficos, restos de
programas televisados, poeira dos sonhos
nunca lembrados, um rádio na infância
e esta música a me esculpir no vago.

nem sei o cantor capaz de espantar
o bicho. ele me espia do corredor,
sorrio para ele, somos um, o vento
soca a porta, minha mulher ressona,
o homem é a extrema estrela desesperada,
estou calmo, não é preciso fazer nada, nem a morte.

Fonte: Hollanda, H. B., org. 2001 [1976]. 26 poetas hoje, 4ª edição. RJ, Aeroplano.

26 dezembro 2013

Ouvido absoluto

Hans Keller

O quarteto para piano K. 478 em sol menor (1785) fornece prova conclusiva, mais do que qualquer outra obra-prima individual, de que o ouvido de Mozart foi o único verdadeiramente absoluto de que temos conhecimento.

Fonte: Solman, J. 1991. Mozartiana: dois séculos de notas, citações e anedotas sobre Wolfgang Amadeus Mozart. RJ, Nova Fronteira. Comentário publicado em livro em 1969.

24 dezembro 2013

Madona com o Menino e dois anjos


Filippo Lippi (1406-1469). Madonna col Bambino e due angeli. 1465.

Fonte da foto: Wikipedia.

22 dezembro 2013

Vida e evolução

Theodosius Dobzhansky

Um homem é constituído por aproximadamente sete octilhões (7 x 1027) de átomos, agrupados em cerca de dez trilhões (1013) de células. Essa aglomeração de células e átomos tem algumas propriedades assombrosas: é viva, experimenta alegria e sofrimento, discrimina entre belo e feio, distingue o bem do mal. Há muitas outras aglomerações vivas de átomos que pertencem a pelos menos dois ou talvez quatro milhões de espécies biológicas. O mais notável é que os indivíduos de cada uma dessas espécies são construídos de tal modo que são capazes de viver e de se reproduzir em ambientes determinados. Em outras palavras, cada espécie é adaptada a um certo modo de vida. Como isso aconteceu? Como é possível que aglomerações de átomos realizem todas essas coisas?

Dois tipos de respostas têm sido propostos. Os vitalistas admitem que os corpos vivos são formados por intervenções de forças ocultas, que têm recebido variados nomes: enteléquia (Aristóteles, Driesch), vis essentialis (C. F. Wolff), psiquê ou direcionalidade inerente (Sinnott). Os mecanicistas, por outro lado, alegam que todas as estruturas e processos biológicos são configurações altamente elaboradas de fenômenos físicos e químicos. A vida pode ser compreendida sem que seja necessário admitir poderes transcendentais.

Muitas vezes, porém nem sempre, o vitalismo concorda com o criacionismo, i.e.,  com a crença de que o mundo, como um todo, e as espécies vivas em particular, foram criados há alguns milhares de anos atrás [sic] e, desde então, permanecem essencialmente inalterados. Lamarck, Darwin e outros depois deles expuseram uma concepção diferente: o mundo vivo que hoje observamos foi modelado durante bilhões de anos de história evolutiva. Os organismos que vivem hoje evoluíram gradualmente de antepassados que, em geral, eram cada vez mais diferentes de seus descendentes à medida que remontamos a um passado cada vez mais remoto. Alguns vitalistas não negam a evolução, mas querem crer que ela seja guiada na direção de fins predestinados, por forças inescrutáveis. Darwin pensou de outro modo. Ele postulou a seleção natural como um processo que impele e dirige as mudanças evolutivas. As pesquisas posteriores justificaram, no conjunto, sua opinião. A seleção natural é um fenômeno estritamente biológico, no sentido de que é uma conseqüência da vida, e existe exclusivamente no mundo vivo. [...] A seleção natural é uma configuração de eventos físicos, dependente da vida e restrita à vida. Corpos vivos que evoluíram sob o controle da seleção natural podem ser descritos como máquinas, embora máquinas de um tipo muito especial. (Para um ponto de vista contrário, veja Polanyi 1968.)
[...]

Fonte: Dobzhansky, T. 1973 [1970]. Genética do processo evolutivo. SP, Polígono & Edusp.

21 dezembro 2013

Pensando no escuro

Robert Jastrow

A existência de mamíferos primitivos revela-se-nos apenas através de uns quantos dentes fossilizados e fragmentos de ossos, mas esses restos bastam para nos contarem a sua história. Podemos adivinhar que esses animais eram pequenos e activos, que possuíam sangue quente, que eram provavelmente revestidos por pêlos e que tratavam de manter vivas as suas crias. Os seus olhos eram muito pequenos. Os focinhos eram compridos, denotando um sentido do olfacto bem desenvolvimdo, e os ossos dos seus crâncios indicam que possuíam uma audição melhor que a dos seus antecessores répteis mamileriformes.

Olhos pequenos, bom nariz e bons ouvidos – isto sugere-nos um animal que vive de noite; que fareja através do leito de folhas do solo florestal. Os primeiros mamíferos eram, provavelmente, nocturnos: faziam as suas surtidas durante a noite e mantinham-se escondidos durante o dia. Isso poderá explicar que esses animais relativamente fracos e indefezos tenham sobrevivido durante o longo reinado dos dinossauros. Os mamíferos viviam no tempo dos dinossauros, mas não às mesmas horas.
[...]

Fonte: Jastrow, R. 1987 [1981]. O tear encantado. Lisboa, Edições 70.

19 dezembro 2013

Flores inebriantes


János Thorma (1870-1937). Bódító virágözön. 1928.

Fonte da foto: Wikipedia.

17 dezembro 2013

Sem amor

Galaktion Tabidze

Sem amor,
Não resplandece o sol na abóbada celeste,
Nem se agita a floresta ou sopra o vento,
De alegria...
Sem amor, não existe beleza
E nem a imortalidade não mais existe.
Mesmo a última flor, aquele amor derradeiro,
Que o outono desflora,
E tantas vezes melhor que o primeiro.
Não invoca as tempestades
Das paixões insensatas.
Não invoca nem o jovem ardor,
Nem as vozes selvagens...
Cultivado no frio e no vento do outono,
Que sopra sobre os campos,
Em nada se parece com
As ternas flores, ou com aquelas frágeis da primavera.
Em lugar do doce Zéfiro é o vento de tempestade
Que a acaricia.
Não a paixão, mas a carícia muda
Que o enlaça e aperta.
Assim se consome, assim se dissipa o último
Amor.
Consome-se sem dor, com doçura, mas
Sem alegria.
E não existe no mundo
Imortalidade.
Mesmo a imortalidade não pode existir,
Sem amor! 

Fonte: Freire, C. 2004. Babel de poemas: uma antologia multilíngüe. Porto Alegre, L&PM. Poema publicado em 1913.

15 dezembro 2013

Amorfófala

B. Lopes 

Nenúfar venenoso, ermo e visguento,
Aberto em concha ao turbilhão iriado
Dos insetos, que voam no ar parado
De um tenebroso lago pestilento;

Flor dominando um pântano folhento
De algas, musgos e lodo fermentado;
Flor, que tem na pureza escancarado
O seio branco para o firmamento;

Cheia do pólen rescendente e ativo,
Tão à falena e ao colibri nocivo,
E que é das vespas causa de outros males...

Pois que ao lótus amargo te assemelhas,
Eu terei de morrer, como as abelhas,
Intoxicado dentro do teu cálix.

Fonte: Ricieri, F., org. 2008. Antologia da poesia simbolista edecadente brasileira. SP, Ibep. Poema publicado em livro em 1895.

13 dezembro 2013

Curvas do primeiro grau

D. Kléténic

Em coordenadas cartesianas, uma reta qualquer é definida por uma equação do primeiro grau e, reciprocamente, toda equação do primeiro grau define uma reta.

A equação da forma

Ax + By + C = 0

é chamada de equação geral da reta.

O ângulo α [...] é chamado de ângulo de inclinação da reta em relação ao eixo Ox. A tangente do ângulo de inclinação da reta em relação ao eixo Ox é chamada coeficiente angular da reta; é indicada, geralmente, pela letra k:

k = tg α.

A equação y = kx + b é chamada de equação de uma reta em função de seu coeficiente angular; k é o coeficiente angular, b a ordenada da origem da reta.

Se a reta é dada pela equação geral

Ax + By + C = 0,

seu coeficiente angular é então dado pela fórmula

k = – A / B.

A equação yy0 = k (xx0) é a equação da reta que passa pelo ponto M0 (x0, y0) e de coeficiente angular k.

Se a reta passa pelos pontos M1 (x1, y1) e M2 (x2, y2), seu coeficiente angular é dado pela fórmula

k = y2y1 / x2x1.

A equação

xx1 / x2x1 = yy1 / y2y1

é a equação da reta que passa pelos dois pontos

M1 (x1, y1) e M2 (x2, y2).
[...]

Fonte: Kléténic, D. 1970. Problemas de geometria analítica. BH, Livraria Cultura Brasileira Editora.

12 dezembro 2013

Sete anos e dois meses no ar

F. Ponce de León

Nesta quinta-feira, 12/12, o Poesia contra a guerra completa sete anos e dois meses no ar. Ao fim do expediente de ontem, o contador instalado no blogue indicava que 231.756 visitas foram registradas ao longo desse período.

Desde o balanço mensal anterior – Sete anos e um mês no ar – foram aqui publicados pela primeira vez textos dos seguintes autores: Lemony Snicket, Manuel Botelho de Oliveira, Mark Bello, Myriam Fraga, Paul J. Kramer, Pedro Dalle Nogare, Theodore T. Kozlowski e Vesna Krmpotic. Além de alguns outros que já haviam sido publicados em meses anteriores.

Cabe ainda registrar a publicação de imagens de obras dos seguintes pintores: Alfred Roll, Eugen Napoleon Nicolaus e Henri Harpignies.

10 dezembro 2013

Ponte ferroviária


Henri Harpignies (1819-1916). Pont ferroviaire sur la Briare. 1888.

Fonte da foto: Wikipedia.

08 dezembro 2013

O renascimento das ciências

Pedro Dalle Nogare

Esta consciência nova, que leva os humanistas a não considerar mais a natureza somente como espelho das perfeições divinas, mas também como um campo de experimentação e de atividade do homem, marca os albores da ciência moderna. Se o homem pode conhecer tudo, se ele é microcosmo, ele deve poder penetrar os segredos da natureza e agir sobre ela.

E não precisa para isso de qualquer autoridade, que religiosa, quer filosófica. No estudo da natureza, em lugar da autoridade, deve-se tomar como guia a experiência. É a tese do primeiro filósofo renascentista da natureza: Bernardino Telesio [1509-1588], que escreve o livro Da Natureza do Mundo segundo seus próprios Princípios. Isto é, ele quer explicar a natureza segundo suas energias e elementos constitutivos, aquém de qualquer concepção teológica ou filosófica ou cabalística.

O ideal, naturalmente, não é só saber, mas é saber para poder. O homem da Idade Média era como uma criança que olhava a máquina do mundo com admiração, mas também com um complexo de impotência diante dela. O homem da Renascença se tornou mais esperto. Quer conhecer a máquina por dentro, ver como ela funciona, para poder manobrá-la a seu bel prazer.
[...]

Fonte: Nogare, P. D. 1977. Humanismos e anti-humanismos, 4ª edição. Petrópolis, Vozes.

06 dezembro 2013

A um grande sujeito invejado e aplaudido

Manuel Botelho de Oliveira

Temerária, soberba, confiada,
Por altiva, por densa, por lustrosa,
A exalação, a névoa, a mariposa,
Sobe ao sol, cobre o dia, a luz lhe enfada.

Castigada, desfeita, malograda,
Por ousada, por débil, por briosa,
Ao raio, ao resplandor, à luz fermosa,
Cai triste, fica vã, morre abrasada.

Contra vós solicita, empenha, altera,
Vil afeto, ira cega, ação perjura,
Forte ódio, rumor falso, inveja fera.

Esta cai, morre aquele, este não dura,
Que em vós logra, em vós acha, em vós venera,
Claro sol, dia cândido, luz pura.

Fonte: Martins, W. 1977. História da inteligência brasileira, vol. 1. SP, Cultrix & Edusp. Poema publicado em livro em 1705.

04 dezembro 2013

Por que existem canhotos?

Mark Bello

Thomas Carlyle escreveu em 1871 que o guerreiro que segura o escudo com a mão esquerda e a arma com a direita melhora suas chances de sobreviver para lutar mais uma batalha. O combatente que carrega a o escudo na mão direita não pode proteger tão bem a parte esquerda do peito – onde está o coração – dos golpes do inimigo. Existente a séculos, esta simples regra de sobrevivência passou de uma geração de soldados para outra e, conforme o historiador, talvez possa explicar por que tão poucas pessoas – cerca de dez por cento da população – são hoje canhotos.

Os seres humanos são únicos em sua preferência pela mão direita. Entre outros animais estudados, alguns preferem um pé a outro, mas, em cada espécie, a preferência entre direito e esquerdo é a mesma.

Estudos antropológicos demonstram que os canhotos têm sido em número infinitamente menor desde os primórdios históricos. Em trabalhos artísticos que datam de cinco mil anos, mas de noventa por cento das pessoas que aparecem fazendo algum tipo de trabalho manual usam a mão direita. Uma pesquisa dos desenhos à mão da era Cro-Magnon, que contou o número de vezes que a mão esquerda ou direita havia sido desenhada, mostrou a mesma tendência.
[...] 

Fonte: Leigh, J. & Savold, D., orgs. 1991 [1988]. O dia em que o raio correu atrásda dona-de-casa... e outros mistérios da ciência. SP, Nobel.

02 dezembro 2013

A mão no arado

Ruy Belo

Feliz aquele que administra sabiamente
a tristeza e aprende a reparti-la pelos dias
Podem passar os meses e os anos nunca lhe faltará

Oh! como é triste envelhecer à porta
entretecer nas mãos um coração tardio
Oh! como é triste arriscar em humanos regressos
o equilíbrio azul das extremas manhãs do verão
ao longo do mar transbordante de nós
no demorado adeus da nossa condição
É triste no jardim a solidão do sol
vê-lo desde o rumor e as casas da cidade
até uma vaga promessa de rio
e a pequenina vida que se concede às unhas
Mais triste é termos de nascer e morrer
e haver árvores ao fim da rua

É triste ir pela vida como quem
regressa e entrar humildemente por engano pela morte dentro
É triste no outono concluir
que era o verão a única estação
Passou o solitário vento e não o conhecemos
e não soubemos ir até ao fundo da verdura
como rios que sabem onde encontrar o mar
e com que pontes com que ruas com que gentes com que montes conviver
através de palavras de uma água para sempre dita
Mas o mais triste é recordar os gestos de amanhã

Triste é comprar castanhas depois da tourada
entre o fumo e o domingo na tarde de novembro
e ter como futuro o asfalto e muita gente
e atrás a vida sem nenhuma infância
revendo tudo isto algum tempo depois
A tarde morre pelos dias fora
É muito triste andar por entre Deus ausente

Mas, ó poeta, administra a tristeza sabiamente.

Fonte: Silva, A. C. & Bueno, A., orgs. 1999. Antologia da poesia portuguesa contemporânea. RJ, Lacerda Editores. Poema publicado em livro em 1962.

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