31 dezembro 2010

Caminho na neve


Armand Guillaumin (1841-1927). Chemin creux, effet de neige. 1869.

Fonte da foto: Wikipedia.

29 dezembro 2010

Bruxa velha malvada

Felipe A. P. L. Costa

[...]
George [Williams] tinha um senso crítico (e autocrítico) bastante aguçado, mesmo para os padrões comumente elevados que esperamos encontrar entre os cientistas. Em 1992, por exemplo, a Quarterly Review of Biology publicou um artigo seu intitulado ‘Gaia, o culto à natureza e falácias biocêntricas’ [...]. O título inicial era ainda mais ácido e revelador: ‘A Mãe Natureza é uma bruxa velha malvada’ [‘Mother Nature is a wicked old witch’, no original]. [...]

Nesse artigo, ele critica certas noções defendidas por alguns segmentos do chamado movimento ambientalista. Um dos seus alvos foi a chamada hipótese Gaia, formulada originalmente pelo químico inglês James Lovelock (1919-), segundo a qual a biota da Terra se comportaria como um superorganismo capaz de gerar, manter e regular em escala planetária as condições propícias à manutenção da vida. Apesar de controversa, essa hipótese é defendida ainda hoje por alguns cientistas respeitáveis, como a bióloga estadunidense Lynn Margulis (1938-).

Diferentemente de outros cientistas, Williams não via a natureza como um lugar idílico e inspirador – ao menos não em termos éticos e morais. Afinal, o que vemos no mundo vivo é moldado pela seleção natural e a seleção natural é um processo impessoal, míope e oportunista, incapaz de planejar ou perdoar. Justamente por isso, nós não deveríamos tomar os produtos desse processo como exemplos ou fontes de inspiração para os princípios éticos ou morais que governam a vida humana em sociedade.

A seleção natural não irá nos conduzir ao ‘melhor dos mundos possíveis’. Esse ideal só poderá ser alcançado como fruto da inteligência e do trabalho humano. E é ainda ele quem nos adverte: se, ao longo da jornada, quisermos contrabalançar ou reverter tendências evolutivas indesejáveis, nós teremos de conhecer melhor o modo como a seleção natural opera.
[...]

Fonte: Costa, F. A. P. L. 2010. A Mãe Natureza é uma bruxa velha malvada. Simbio-Logias 5: 56-74. PDF com o artigo completo pode ser encontrado e capturado aqui.


27 dezembro 2010

A borralheira

Luís Guimarães Júnior

Meigos pés pequeninos, delicados
Como um duplo lilás, – se os beija-flores
Vos descobrissem entre as outras flores,
Que seria de vós, pés adorados!

Como dois gêmeos silfos animados,
Vi-vos ontem pairar entre os fulgores
Do baile, ariscos, brancos, tentadores...
Mas – ai de mim! – como os mais pés calçados.

“Calçados como os mais! que desacato!
Disse eu. – Vou já talhar-lhes um sapato
Leve, ideal, fantástico, secreto...”

Ei-lo. Resta saber, anjo faceiro,
Se acertou na medida o sapateiro:
Mimosos pés, calçai este soneto.

Fonte: Martins, W. 1978. História da inteligência brasileira, vol. 4. SP, Cultrix & Edusp. Poema publicado em livro em 1880.


25 dezembro 2010

Inversnaid

Gerard Manley Hopkins

Este arroio turvo, cor de cavalo baio,
Roncando a rolar seu caminho rocha abaixo
Por gargalos, gargantas, seus flocos de espuma
Se afunilam e ele tomba no lago, sua cama.

Um lufo de espuma, feito um gorro pardo,
Requebra-se, quebra-se resvala no caldo
De um poço negrobreu, carranca iracunda
Que remoinha ali O Desespero e o afunda.

Borrifos de rocio, respingos de rocio
Nas arestas dos barrancos, entre eles corre o rio;
Ásperos urzedos, gravetos de feto, e a sorva
Aljofrada de bagas, debruçada sobre o arroio.

Ah! que será do mundo se a gente o privar
Do úmido e do agreste? Deixá-los ficar,
O úmido e o agreste, oh! deixá-los em paz.
Viva a terra selvagem e o capim contumaz.

Fonte: Hopkins, G. M. 1989. Poemas. SP, Companhia das Letras. Poema publicado em livro em 1918.


23 dezembro 2010

Vidas secas

Graciliano Ramos

1.
Na planície avermelhada os juazeiros alargavam duas manchas verdes. Os infelizes tinham caminhado o dia inteiro, estavam cansados e famintos. Ordinariamente andavam pouco, mas como haviam repousado bastante na areia do rio seco, a viagem progredira bem três léguas. Fazia horas que procuravam uma sombra. A folhagem do juazeiro apareceu longe, através dos galhos pelados da caatinga rala.

Arrastaram-se para lá, devagar, sinhá Vitória com o filho mais novo escanchado no quarto e o baú de folha na cabeça, Fabiano sombrio, cambaio, o aió a tiracolo, a cuia pendurada numa correia presa ao cinturão, a espingarda de pederneira no ombro. O menino mais velho e a cachorra Baleia iam atrás.
[...]

Fonte: Ramos, G. 2000 [1938].Vidas secas. RJ, Record.


21 dezembro 2010

Verdade e demonstrabilidade

Leon Henkin

O vocábulo ‘verdade’, como sucede com inúmeros outros, ‘beleza’ e ‘justiça’, por exemplo, refere-se a conceito de tal maneira amplo e flutuante que não causa espanto saber que muitos estudiosos dedicaram suas vidas a analisá-lo. Aqui, porém, nós nos limitaremos a um conceito bem mais restrito de verdade, entendendo-a como atributo de sentenças. Mais precisamente, trataremos de investigar a seguinte questão: que é que se pretende dizer ao afirmar que uma sentença é verdadeira?

Essa questão é antiga e pode ser encontrada nos primeiros trabalhos filosóficos. Desperta, em verdade, desde os tempos clássicos, a curiosidade dos filósofos, que a têm debatido sem cessar. Aqui, no entanto, vamos investigá-la sob um ângulo matemático. A solução matemática da questão, como sucede com as descobertas científicas, tem uma história longa e é possível traçar a evolução das idéias que culminaram com a resposta. Mas conceber e formular uma teoria matemática da verdade foi obra de Alfred Tarski, há mais ou menos 30 anos passados.
[...]

Fonte: Morgenbesser, S. org. 1979. Filosofia da ciência. SP, Cultrix.


19 dezembro 2010

Fuga para o Egito


Cigoli [Lodovico Cardi] (1559-1613). Fuga in Egitto. 1608.

Fonte da foto: Web Gallery of Art. Outra obra com o mesmo título pode ser vista aqui.

17 dezembro 2010

O melro de visita

Vasco Graça Moura

o amor não é uma saga cruel:
vejo-a cuidar das plantas no jardim,
brincam as filhas com lápis e papel
e eu escrevo sossegado. é bom assim.

na relva, um melro a saltitar, vilão
pretíssimo, esfuzia à cata de algum resto,
ou da mosca azarada: passa lesto
entre duas roseiras. já é verão.

mas o melro demanda outro quintal
e do poema, sem jeito e sem disfarce,
sai de bico amarelo em diagonal

desajeitada: esvoaça sem maneiras
como um pingo de tinta a escapar-se.
de verde prateado, as oliveiras.

Fonte: Silva, A. C. & Bueno, A., orgs. 1999. Antologia da poesia portuguesa contemporânea. RJ, Lacerda Editores. Poema publicado em livro em 1994.


15 dezembro 2010

Vanitas

Olavo Bilac

Cego, em febre a cabeça, a mão nervosa e fria,
Trabalha. A alma lhe sai da pena, alucinada,
E enche-lhe, a palpitar, a estrofe iluminada
De gritos de triunfo e gritos de agonia.

Prende a idéia fugaz; doma a rima bravia,
Trabalha... E a obra, por fim, resplandece acabada:
“Mundo, que as minhas mãos arrancaram do nada!
Filha do meu trabalho! ergue-te à luz do dia!

Cheia da minha febre e da minha alma cheia,
Arranquei-te da vida ao ádito profundo,
Arranquei-te do amor à mina ampla e secreta!

Posso agora morrer, porque vives!” E o Poeta
Pensa que vai cair, exausto, ao pé de um mundo,
E cai – vaidade humana! – ao pé de um grão de areia...

Fonte: Bilac, O. 1985. Poesias. BH, Itatiaia. Poema publicado em livro em 1888.


13 dezembro 2010

Cambodia

Joan Baez

We’ve watched them leaving, seen their ragged flight
Children of the jungle, mothers of the night
A boy of ten by the roadside lies
Hears his future in whispers and cries
And clutching a tiny Buddha charm
A baby dies in his mother’s arms

Is there only sorrow in Cambodia?
Is there no tomorrow in Cambodia?

Leaving the graves of your ancestors after a thousand years
Leaving a few belongings after a thousand tears
How come you never left before through bombing, famine and flood?
Are the rivers useless now spilling over with blood?

Is there only…

I hear there are very few children from ages one to five
It takes more than jungle leaves to keep the young ones alive
I hear some of the rice got through the outside’s trying to send to you
There you sit in the ruins of war, the doctors are waiting at your door

And we will try and feed you, try and go to you
People of Kampuchea, Cambodia

A little way in from the border in the crowded camps
I’ve seen mothers giving birth, seen beautiful orphans dance
An old man turns and covers his eyes, he was never supposed to cry
With sons and daughters and home and wife
Taken from him in his autumn life

Should we try and feed you, say hello to you
Old man of Kampuchea, Kampuchea, Cambodia

Call another conference, write another song
Deliver another ton of rice and hope it gets where it belongs
And rival teams of bandits are really the only choice
Even if the people had their bellies filled, even if the people had a voice

And meanwhile, lovers are caught in the crossfire
Children are caught in the barbed wire
Military sinks in the mire
Let me show it to you

Is there only sorrow, only sorrow in Cambodia?
Is there no tomorrow, no tomorrow in Cambodia?
Still we’ll try and feed you, try and show to you
People of Kampuchea, Kampuchea, Cambodia

Fonte: album European tour (1980), de Joan Baez.


12 dezembro 2010

Cinqüenta meses no ar

F. Ponce de León

Neste domingo, 12/12, o Poesia contra a guerra completa cinqüenta meses no ar. Ao fim do expediente de ontem, o contador instalado no blogue indicava que 116.354 visitas haviam sido registradas nesse período.

Desde o balanço mensal anterior – Quatro anos e um mês no ar – foram aqui publicados textos dos seguintes autores: Adília Lopes, José Bonifácio, o Moço, Manoel Camilo dos Santos, Marina Colasanti, Martín Adán, Nicholas J. Gotelli, Pablo Casals e Willi Hennig. Além de outros autores que já haviam sido publicados antes.

Cabe ainda registrar a publicação de imagens dos seguintes pintores: Arnold Böcklin, Henri Gervex e Silvestro Lega.


10 dezembro 2010

Ilha dos mortos


Arnold Böcklin (1827-1901). Die Toteninsel. 1880.

Fonte da foto: Web Gallery of Art. O autor pintou outras quatro versões dessa obra.

09 dezembro 2010

Violoncelo

Pablo Casals

Muitas vezes tenho pensado que Mozart, que compôs para tantos instrumentos, deve ter escrito um concerto para violoncelo. Porém não há em parte alguma referência a ele... Por que julgaria Mozart que em seu tempo a técnica do violoncelo ainda não estava suficientemente desenvolvida?

Fonte: Solman, J. 1991. Mozartiana: dois séculos de notas, citações e anedotas sobre Wolfgang Amadeus Mozart. RJ, Nova Fronteira.


07 dezembro 2010

Natal

Martín Adán

Teus olhos
juntam as mãos
como as madonas
de Leonardo.

Os bosques do ocaso,
as frondes amoradas
de um Renascimento sombrio.

O rebanho do mar
bale para a gruta
do céu cheio de anjos.

Deus encarna-se
num menino que busca os brinquedos
de tuas mãos.

Teus lábios
dão o calor que negam
a vaca e o burro.

E na penumbra
tua cabeleira afofa as suas palhas
para o Deus Menino.

Fonte: Bandeira, M. 2007. Estrela da vida inteira. RJ, Nova Fronteira. Martin Adán era o pseudônimo de Rafael de la Fuente. Poema publicado originalmente em 1927.


05 dezembro 2010

Não passarão

Miguel Torga

Não desesperes, Mãe!
O último triunfo é interdito
Aos heróis que o não são.
Lembra-te do teu grito:
Não passarão!

Não passarão!
Só mesmo se parasse o coração
Que te bate no peito.
Só mesmo se pudesse haver sentido
Entre o sangue vertido
E o sonho desfeito.

Só mesmo se a raiz bebesse em lodo
De traição e de crime.
Só mesmo se não fosse o mundo todo
Que na tua tragédia se redime.

Não passarão!
Arde a seara, mas dum simples grão
Nasce o trigal de novo.
Morrem filhos e filhas da nação,
Não morre um povo!

Não passarão!
Seja qual for a fúria da agressão,
As forças que te querem jugular
Não poderão passar
Sobre a dor infinita desse não
Que a terra inteira ouviu
E repetiu:
Não passarão!

Fonte: Torga, M. 1982 [1965]. Poemas ibéricos, 2ª edição. Coimbra, Edição do Autor.


03 dezembro 2010

Sistemática biológica

Willi Hennig

Probablemente no se encuentre otra ciencia natural en la cual se observe tanto contraste y competencia entre las distintas disciplinas particulares como sucede con la biología. Esto obedece, por lo menos en parte, a que no hay otra ciencia natural en la que los problemas y los métodos sean de tan diversa índole. Esta diversidad requiere una gran concentración y especialización por parte de quienes pretendan trabajar en cualquiera de sus cuestiones y comporta un aislamiento relativamente marcado de las distintas disciplinas particulares. Las rivalidades entre estos distintos campos de especialización, si bien ya no revisten la misma acritud de tiempos todavía no tan remotos, tienen una real importancia, y se manifiestan en el afán de lograr reconocimiento y ‘status’ para los distintos campos especiales de investigación en las casas de altos estudios y los institutos científicos oficiales y a través de ello, en última instancia, de intentar mantener las bases económicas de subsistencia de los distintos grupos de trabajo.

Ahora bien, el hecho de que la sistemática biológica haya perdido terreno frente a otras disciplinas más jóvenes y a la vez más modernas, como se suele decir frecuentemente, no se debe tanto a su menor importancia práctica o científico-teórica, sino más bien a que esta disciplina no ha logrado una apropiada arquitectura doctrinal de sus problemas, tareas y métodos, acorde con la importancia real que tiene en el contexto general de las disciplinas biológicas.
[…]

Fonte: Hennig, W. 1968 [1950]. Elementos de una sistemática filogenética. Buenos Aires, Eudeba.


01 dezembro 2010

Saudades

José Bonifácio, o Moço

Deserta a casa está... Entrei chorando,
De quarto em quarto, em busca de ilusões!
Por toda a parte as pálidas visões!
Por toda a parte as lágrimas falando!

Vejo meu pai na sala, caminhando,
Da luz da tarde aos tépidos clarões,
De minha mãe escuto as orações
Na alcova, aonde ajoelhei rezando.

Brincam minhas irmãs (doce lembrança!...),
Na sala de jantar... Ai! mocidade,
És tão veloz, e o tempo não descansa!

Oh! sonhos, sonhos meus de claridade!
Como é tardia a última esperança!...
Meu Deus, como é tamanha esta saudade!...

Fonte: Martins, W. 1978. História da inteligência brasileira, vol. 4. SP, Cultrix & Edusp. Poema publicado em livro em 1848.


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