29 novembro 2017

Aspiração

Alberto de Oliveira

Ser palmeira! existir num píncaro azulado,
Vendo as nuvens mais perto e as estrelas em bando;
Dar ao sopro do mar o seio perfumado,
Ora os leques abrindo, ora os leques fechando;

Só de meu cimo, só de meu trono, os rumores
Do dia ouvir, nascendo o primeiro arrebol,
E no azul dialogar com o espírito das flores,
Que invisível ascende e vai falar ao sol;

Sentir romper do vale e a meus pés, rumorosa,
Dilatar-se e cantar a alma sonora e quente
Das árvores, que em flor abre a manhã cheirosa,
Dos rios, onde luz todo o esplendor do Oriente;

E juntando a essa voz o glorioso murmúrio
De minha fronde e abrindo ao largo espaço os véus,
Ir com ela através do horizonte purpúreo
E penetrar nos céus;

Ser palmeira, depois de homem ter sido! est’alma
Que vibra em mim, sentir que novamente vibra,
E eu a espalmo a tremer nas folhas, palma a palma,
E a distendo, a subir num caule, fibra a fibra;

E à noite, enquanto o luar sobre os meus leques treme,
e estranho sentimento, ou pena ou mágoa ou dó,
Tudo tem e, na sombra, ora ou soluça ou geme,
E, como um pavilhão, velo lá em cima eu só,

Que bom dizer então bem alto ao firmamento
O que outrora jamais – homem – dizer não pude,
Da menor sensação ao máximo tormento
Quanto passa através minha existência rude!

E, esfolhando-me ao vento, indômita e selvagem,
Quando aos arrancos vem bufando o temporal,
– Poeta – bramir então à noturna bafagem
Meu canto triunfal!

E isto que aqui não digo então dizer: – que te amo,
Mãe natureza! mas de modo tal que o entendas,
Como entendes a voz do pássaro no ramo
E o eco que têm no oceano as borrascas tremendas;

E pedir que, ou no sol, a cuja luz referves,
Ou no verme do chão ou na flor que sorri,
Mais tarde, em qualquer tempo, a minh’alma conserves,
Para que eternamente eu me lembre de ti!

Fonte (estrofes 1, 9 e 10): Bosi, A. 2013. História concisa da literatura brasileira, 49ª ed. SP, Cultrix. Poema publicado em livro em 1895.

27 novembro 2017

Mathusianismo, darwinismo e pessimismo

Francis Bowen

Nos dias de hoje, com nossos meios de comunicação melhorados pelo vapor e pelo telégrafo, a extrema pobreza é a única causa possível [da fome]; e até essa pobreza é devida não à absoluta falta de riqueza e sim à sua distribuição desigual. Foi o que sucedeu na fome que imperou na Irlanda de 1846 a 1847 e na Índia dois anos atrás. Quando o sofrimento estava no auge, navios carregados de [grãos] e [farinha] desviavam-se dos portos irlandeses, e de arroz, de Madras e Calcutá, somente pela falta de mercado. Nos dois casos, grande riqueza estava à mão; ela, entretanto, pertencia exclusivamente [a uns] poucos e era acessível aos muitos unicamente na dura forma de caridade. O destino dos irlandeses e dos hindus foi ainda mais terrível porque morreram de fome em meio à fartura. [...]

Fonte: Hardin, G., org. 1967. População, evolução & controle da natalidade. SP, Nacional & Edusp. O trecho integra um artigo publicado originalmente em 1879.

25 novembro 2017

Florestas densas e savanas

Richard Wettstein

É sempre uma experiência interessante tomar um trem da São Paulo Railway, para viajar de Santos a São Paulo. Poucos trechos ferroviários existem, como esse, que, em espaço e tempo tão curtos, permite ao viajante conhecedor de fitogeografia e fitoecologia colher aspectos de vegetação em tal quantidade e variedade. Logo após deixar a cidade o trem atravessa o mangue que se prolonga muito ao pé da serra. No período da maré cheia, o mangue tem aparência de uma área alagada coberta de arbustos e pequenas árvores, mostrando outro aspecto característico no período da maré vazante, quando por todos os lados aparecem o lodo denso e negro e as arqueadas raízes de escora de muitas plantas lenhosas, que servem de apoio às copas. Lentamente se eleva o trecho ferroviário, tanto mais quanto se aproxima do pé da serra, na encosta oriental do planalto sul-brasileiro. Atravessam-se rapidamente algumas plantações, especialmente bananais bastante carregados; aparecem, cada vez com maior frequência, isoladamente, árvores e palmeiras cheias de epífitas, como sinais precursores da mata tropical, até que, em Piaçaguera, a poucos quilômetros de distância de Santos, alcança-se a orla da mata. Começa, então, o trecho de estrada de ferro em plano inclinado, audaciosamente construído, que em pouco tempo vence uma diferença de nível de cerca de 800 metros, levando-nos ao cume da serra, ao planalto demarcado pela Estação de Paranapiacaba. As encostas recém-deixadas dão, ao viajante que se aproxima por mar da parte sul do território brasileiro, a impressão de uma serra que se eleva repentinamente e são, a perder de vista, cobertas de florestas pluviais tropicais. Olhando ora a base, ora o alto, por cima das copas, o viajante recebe impressões magníficas: nas proximidades imediatas desenrolam-se quadros típicos da exuberância e originalidade tropicais. Muito ao longe o olhar alcança as encostas da serra de Paranapiacaba, cobertas de matas escuras até o Vale do rio Mogi, profundamente rasgado, o qual, com pequeno volume de água, alcança o mar, visível no horizonte. Quando se deixa a Estação de Paranapiacaba, a paisagem se modifica bruscamente. A mata está cada vez mais distante, e se aproxima a formação mais característica do segundo tipo de vegetação principal do sul do Brasil, a verdejante ‘savana’, o campo. A diferença entre a mata da região costeira e a região do interior rica em savanas mostra-se, neste trecho ferroviário, com muita nitidez, porque o homem, nas cercanias da populosa capital, com a finalidade inicial de obter pastagens, destruiu matas favorecendo o desenvolvimento de ‘savanas’. [...]

Fonte: Wettstein, R. R. v. 1970 [1904]. Aspectos da vegetação do sul do Brasil. SP, Edgar Blücher & Edusp.

23 novembro 2017

Grupos sanguíneos

Nigel Ashworth Barnicot

Em 1900, Landsteiner descreveu uma experiência na qual células vermelhas [do] sangue de uma pessoa eram misturadas com o soro de outra; verificou que em algumas combinações as células vermelhas se agruparam ou aglutinaram e conseguiu, à base dessas reações, distinguir três tipos de indivíduos, os quais agora dizemos pertencerem ao grupo A, B ou O. Um quarto grupo mais raro, AB, foi reconhecido alguns anos mais tarde. Essas descobertas foram a base de transfusões de sangue seguras, e delas surgiu o campo especial da serologia de grupos de sangue que ocupa um lugar importante na genética e na antropologia. Foi só dez anos após a descoberta de Landsteiner que se demonstrou serem essas qualidades individuais de sangue herdadas e mais catorze anos se passaram até se assentar no modo de hereditariedade dos grupos ABO. Entretanto, os trabalhos de Hirszfeld, mostrando que as frequências dos fenótipos ABO diferiam em várias populações, introduziram os grupos sanguíneos na antropologia. São agora conhecidos outros dez sistemas de grupos de sangue, cada um herdado independentemente do sistema ABO e, uma vez que alguns deles incluem muitas formas variantes, que dependem de genes alélicos ou intimamente ligados, a escala de variação potencial destes caracteres serológicos é muito ampla. Com raras exceções, o grupo sanguíneo de uma pessoa não é afetado pelo seu ambiente e permanece inalterado desde os princípios da vida pós-natal até a morte. A hereditariedade das variantes dos grupos sanguíneos obedece às leis de Mendel com notável claridade, embora, como veremos, possa às vezes haver diferenças de opinião quando se trata de interpretar as conclusões em termos de genes individuais. Esta precisão em sua hereditariedade dá aos grupos sanguíneos um valor especial nos testes de paternidade e nos trabalhos de ligação genética e, juntamente com o fato de muitos tipos variantes serem comuns, recomenda-os aos estudiosos da genética da população humana.

Fonte: Harrison, G. A. et al. 1971 [1964]. Biologia humana. SP, Nacional & Edusp.

22 novembro 2017

Duomilésima quingentésima postagem

F. Ponce de León

A postagem ‘Escolhos’, de 14/11, foi a 2.500ª postagem deste blogue. Não custa lembrar: a postagem nº 1 foi ao ar em 12/10/2006; a quingentésima, em 26/12/2007; a milésima, em 8/12/2009; a milésima quingentésima, em 9/8/2012; e a duomilésima (ou bismilésima), em 17/3/2015.

20 novembro 2017

A identidade negra na literatura

Shirley Ferreira

Luiz Gonzaga Pinto da Gama nasceu em Salvador (BA), em 21/6/1830. Era filho de uma negra africana e de um fidalgo português, cujo nome ele fazia questão de omitir. Sua mãe, segundo o seu próprio relato, seria a militante política Luiza Mahin, mulher de origem nagô, livre e pagã. Quando tinha 10 anos de idade, seu pai o vendeu como escravo para saldar uma dívida. Foi levado para o Rio de Janeiro (RJ); revendido, foi depois para São Paulo (SP), onde viveria de 1840 a 1882. Aprendeu a ler tardiamente, mas logo se tornou um leitor assíduo e voraz. Frequentou a Faculdade de Direito (atual Faculdade de Direito do Largo do São Francisco), embora não tenha concluído o curso formalmente. Segundo o seu próprio testemunho, sua atuação nos tribunais resultou na libertação de mais de 500 escravos. Admirador da obra do filósofo francês Ernest Renan (1823-1892), conviveu com vários outros personagens das letras e da política brasileira, incluindo José Bonifácio, o Moço (1827-1886); Castro Alves (1847-1871); Joaquim Nabuco (1849-1910) e Rui Barbosa (1849-1923), com este último fundou uma loja maçônica. Quando faleceu, em 1882, era considerado um dos mais notáveis intelectuais brasileiros. Sua vida e obra tiveram uma forte influência na formação das novas gerações, incluindo autores como Raimundo Correia (1859-1911) e Raul Pompéia (1863-1895). [...]

Autodidata, Luiz Gama fez da literatura um veículo em defesa dos seus ideais republicanos e abolicionistas. Combinou o trabalho como jornalista e poeta com a militância política. O estilo audacioso, no entanto, teve um preço, na medida em que serviu de pretexto para que ele fosse demitido, “a bem do serviço público”. Não abriu mão de seu posicionamento político e de seus ideais, ao “promover processos em favor de pessoas livres criminalmente escravizadas”; em tais circunstâncias, visava “auxiliar licitamente, na medida de meus esforços, alforrias de escravos, porque detesto o cativeiro e todos os senhores, principalmente os Reis” (GAMA 1880, p. 3).

Trabalhou em vários jornais paulistanos, tendo sido redator-chefe do Diabo Coxo, fundado por ele em 1859 [...].

No mesmo ano em que aparecia o jornal Diabo Coxo, o poeta publicou a primeira edição do seu único livro, Primeiras trovas burlescas de Getulino. Em 1861, dado o sucesso da obra, publicou uma segunda edição, revista e ampliada. O livro se caracteriza pelo tom satírico e um peculiar senso de humor. Seus versos criticam os costumes da época. Ironiza os fidalgos que nasceram no país, mas só se viam como brancos europeus. Além disso, aponta algumas mazelas da sociedade brasileira e discorre sobre o orgulho de ser negro. Posteriormente, ele se dedicaria tão somente à imprensa, de onde saiu apenas para seguir carreira nos partidos Republicano, Abolicionista e Liberal. [...]

Fonte: Ferreira, S. 2017. Luiz Gama e a identidade negra na literatura. Juiz de Fora, Edição do autor.

18 novembro 2017

Área de vida

Armin Heymer

[esp., dominio vital; ale., Aktionsraum; ing., home range; fr., domaine vital] Espaço que um indivíduo ou grupo organizado frequenta durante o seu tempo de vida. Inclui os diversos territórios sazonais e as regiões nas quais os animais residem temporariamente, compreendendo as rotas migratórias e de deslocamento. Eibl-Eibesfeldt [...] vê a área de vida em oposição ao território, uma zona neutra, um espaço que não é defendido ativamente de modo geral. Os territórios, se existem, estão situados de todo modo dentro de áreas de vida. Por exemplo, os machos dos leões-marinhos, Zalophus wollebaecki, defendem como território uma determinada parte da costa e da água, enquanto que as zonas de pesca no mar não são defendidas, embora façam parte da área de vida.

Fonte (tradução livre): Heymer, A. 1982 [1977]. Diccionario etológico. Barcelona, Omega.

16 novembro 2017

Madalena penitente


Luca [Fapresto] Giordano (1634 -1705). Maddalena penitente. 1660-5.

Fonte da foto: Wikipedia.

14 novembro 2017

Escolhos

Márcio Catunda

Solidão nas latitudes,
que tristeza nos meus olhos!
No céu, as cores são rudes,
no coração – os escolhos!

Faz silêncio no oriente,
que abismo no mar de Deus!
Entre névoas o ocidente
escurece os sonhos meus.

Que destino estranho a mim
anoitece-me as lembranças?
Se o meu tormento tem fim,
quando terei esperanças?

E quanto mais me angustio,
mais a minha alma se agita,
mais lento segue o navio
da minha longa desdita...

Fonte: Horta, A. B. 2016. Do que é feito o poeta. Brasília, Thesaurus. Poema publicado em livro em 1991.

13 novembro 2017

Onze anos e um mês no ar

F. Ponce de León

Ontem, 12/10, o Poesia contra a guerra completou onze anos e um mês no ar.

Desde o balanço anterior – Aniversário de 11 anos – foram publicados aqui pela primeira vez textos dos seguintes autores: Ademar Ribeiro Romeiro, David C. Lay, Émile Verhaeren, João Garcia de Guilhade e Lucille Clifton. Além de alguns outros que já haviam sido publicados em meses anteriores.

Cabe ainda registrar a publicação de imagens de obras dos seguintes pintores: Adelsteen Normann, Eugen Dücker e Heinrich Vogeler.

06 novembro 2017

Josaphat

Da Costa e Silva

A trombeta fatal os meus ouvidos chumba.
Sol Poente. Eu moribundo. Entra o cortejo roxo
Da Morte. O Padre meu irmão parece um mocho...
Rezas, viático, a Cruz – passaportes da Tumba.

Choro de minha mãe – arrulhos de columba
Meus olhos a ninar... Fecho-os ao claror frouxo
Do círio bento e vejo, aos pulos, Satã Coxo,
Em roda do meu leito, à espera que eu sucumba.

Deixa o corpo a alma e desce em espirais de tênia
Aos círculos do Inferno, à maneira de um dobre
De sinos, aos giros no ar... Dante faz-me uma nênia,

Voltaire, a assobiar, traça-me o necrológio,
Rezam juntos por mim num profano Eucológio.

Fonte: Horta, A. B. 2007. Criadores de mantras. Brasília, Thesaurus. Poema publicado em livro em 1908.

04 novembro 2017

Maré vasa


Expulsos do governo da cidade,
Descalços, pela noite, vimos todos
Restituir-Te, à flor dos nossos lodos,
A dádiva suprema da verdade.

Nós, o amor, ou antes: a pureza.
Nós, a virtude, ou antes: o sorriso.
Expulsos do terreno paraíso
E com a carne, para sempre, acesa.

E não foi mais que sonho o nosso crime!
E não foi mais que sopro o nosso abraço!
Mas todos Te seguimos, passo a passo,
À espera do remorso que redime...

Expiação de quê? De que pecados,
Se demos rumo eterno a tantas vidas?

Ó capitão das tropas esquecidas
Que, assim, deixas morrer os teus soldados!

Fonte: Silva, A. C. & Bueno, A., orgs. 1999. Antologia da poesia portuguesa contemporânea. RJ, Lacerda Editores. Poema publicado em livro em 1961.

02 novembro 2017

Fiorde de Romsdal


Adelsteen Normann (1848-1918). Romsdalsfjorden. 1875.

Fonte da foto: Wikipedia.

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