31 janeiro 2012

Diversão

Paulo Netho

Acender é pôr fogo,
ascender é subir.

Insolar é ficar ao sol,
insular é isolar.

Soar é ecoar,
suar é transpirar.

Sortir é abastecer,
surtir é alcançar.

Cerrar é fechar,
serrar é cortar.

Remendar é consertar,
concertar é harmonizar.

Emergir é vir à tona,
imergir é mergulhar.

Recrear é divertir,
criar de novo, recriar.

Fonte: edição No. 229 (novembro de 2011) da revista Ciência Hoje das Crianças. Poema publicado em livro em 2007.

29 janeiro 2012

Derradeira página


Alguém está batendo
na porta do quarto,
mas sem forçá-la.

Distraído, ao lado
da janela, ouço
e vejo a chuva,

enquanto vagueio
a pena – e o corpo –
na derradeira página.

27 janeiro 2012

A ninfa Eco


Alexandre Cabanel (1823-1889). Écho [La nymphe Écho]. 1874.

Fonte da foto: Wikipedia.

25 janeiro 2012

Meu coração salta quando contemplo

William Wordsworth

Meu coração salta quando contemplo
Um arco-íris no céu:
Assim foi na aurora de minha vida;
Assim é agora que sou um homem;
Assim será quando envelhecer,
Ou deixar-me morrer!
A Criança é pai do Homem;
E eu desejaria que meus dias fossem
Unidos um a um por devoção natural.

Fonte: Gould, S. J. 1997. Dinossauro no palheiro. SP, Companhia das Letras. Poema publicado em livro em 1807.

23 janeiro 2012

Mais rápido que a velocidade da luz

João Magueijo

1.
[...]
Digo isto logo de início não para me gabar, mas porque este livro trata de uma especulação científica extraordinariamente controversa. Em ciência há muito poucas coisas tão sólidas quanto a teoria da relatividade de Einstein. E é precisamente esta teoria que a minha idéia questiona – ao ponto de fazer parecer que estou cometendo um suicídio profissional. Não é por isso surpreendente que um[a] [revista] de divulgação científica tenha dado o título Heresia a um artigo sobre o meu trabalho.

Normalmente, chama-se de especulação algo com o que não se concorda, e assim se poderia pensar que a especulação não tem nenhum papel a desempenhar na ciência. Na verdade, acontece exatamente o contrário. Em física teórica, especialmente no meu ramo, a cosmologia, passamos a maior parte do tempo tentando descobrir falhas nas teorias que já existem, bem como analisando novas teorias que por ventura permitam descrever tão bem ou melhor que as anteriores os dados experimentais. Somo pagos para duvidar de tudo o que outros propuseram antes, para propor nós mesmos alternativas ousadas e para discutir interminavelmente entre nós.
[...]

Especular é imensamente divertido, especialmente quando, ao fim de muita discussão e de termos convencido todos os que nos cercam da correção do que afirmamos, de repente nos damos conta de que há alguma falha embaraçosamente simples que invalida a nossa especulação e de que por isso estivemos induzindo todos ao erro durante uma hora – ou vice-versa: que nos deixamos levar como crianças por outra pessoa cuja especulação era igualmente inválida.
[...]

Fonte: Magueijo, J. 2003. Mais rápido que a velocidade da luz. RJ, Record.

21 janeiro 2012

A chegada da noite

Paulo Bentes

Noite úmida cai...
Grilos impertinentes
se escondem
pelos pastos molhados
brincando de telegrafia.
Um grita
outro responde.
Um grita
outro responde.
É um desafio teimoso
que não acaba mais.

Da torre da capelinha
do Padre Miguel
saem morcegos farristas
de asas moles
batendo...

O caminho do povoado
encharcado
e os moleques alegres
batem com força
os pés
pelas poças de lama.

Os muçambês bonitos
florando...

Noite úmida cai...
E os grilos brincam
de telegrafia.

Nas casinhas caiadas
dos colonos
onde a noite vai entrando
sem pedir licença,
começam a piscar
as lamparinas fumacentas.

Lá encima
no céu
uma ou outra estrelinha
azulada
piscando também...

O gado está recolhido...
E a noite,
vem caindo úmida,
umidamente triste
e pesada, embrulhando tudo...

Os moleques alegres
já não brincam
pelas poças de lama.
Já não passam mais
os caminhantes
enterrando os pés
no tijuco viscoso
do caminho...

Só os grilos impertinentes
riscam o silêncio frio
brincando de telegrafia.

Fonte (primeira estrofe): Lenko, K. & Papavero, N. 1979. Insetos no folclore. SP, Conselho Estadual de Artes e Ciências Humanas. Poema publicado em livro em 1940.

19 janeiro 2012

Março

Yao Feng

Eis mais uma primavera,
outra vez mais despi as roupas do inverno
outra vez mais abri a janela cerrada 
Os raios da primavera rebentam no meu corpo
e as flores florescem nos campos úmidos.

Todas as primaveras repetem o mesmo destino:
florir e murchar... florir e murchar...
no entanto ainda ignoro o nome de muitas flores,
tal como não sei como se chamam aquelas meninas
que por mim passam como nuvens.

Fonte: poema publicado na coletânea Um barco remenda o mar (2007, Martins Fontes), e republicado aqui com o devido consentimento do autor, a quem agradeço pela cortesia.

17 janeiro 2012

Senhora das tempestades

Manuel Alegre

Senhora das tempestades e dos mistérios originais
quando tu chegas a terra treme do lado esquerdo
trazes o terramoto a assombração as conjunções fatais
e as vozes negras da noite Senhora do meu espanto e do meu medo.

Senhora das marés vivas e das praias batidas pelo vento
há uma lua do avesso quando chegas
crepúsculos carregados de presságios e o lamento
dos que morrem nos naufrágios Senhora das vozes negras.

Senhora do vento norte com teu manto de sal e espuma
nasce uma estrela cadente de chegares
e há um poema escrito em página nenhuma
quando caminhas sobre as águas Senhora dos sete mares.

Conjugação de fogo e luz no entanto eclipse
trazes a linha magnética da minha vida Senhora da minha morte
teu nome escreve-se na areia e é uma palavra que só Deus disse
quando tu chegas começa a música Senhora do vento norte.

Escreverei para ti o poema mais triste
Senhora dos cabelos de alga onde se escondem as divindades
quando me tocas há um país que não existe
e um anjo poisa-me nos ombros Senhora das tempestades.

Senhora do sol do sul com que me cegas
a terra toda treme nos meus músculos
consonância dissonância Senhora das vozes negras
coroada de todos os crepúsculos.

Senhora da vida que passa e do sentido trágico
do rio das vogais Senhora da litúrgica
sibilação das consoantes com seu absurdo mágico
de que não fica senão a breve música.

Senhora do poema e da oculta fórmula da escrita
alquimia de sons Senhora do vento norte
que trazes a palavra nunca dita
Senhora da minha vida Senhora da minha morte.

Senhora dos pés de cabra e dos parágrafos proibidos
que te disfarças de metáfora e de soprar marítimo
Senhora que me dóis em todos os sentidos
como um ritmo só ritmo como um ritmo.

Batem as sílabas da noite na oclusão das coronárias
Senhora da circulação que mata e ressuscita
trazes o mar a chuva as procelárias
batem as sílabas da noite e és tu a voz que dita.

Batem os sons os signos os sinais
trazes a festa e a despedida Senhora dos instantes
fica o sentido trágico do rio das vogais
o mágico passar das consoantes.

Senhora nua deitada sobre o branco
com tua rosa-dos-ventos e teu cruzeiro do sul
nascem faunos com tridentes no teu flanco
Senhora de branco deitada no azul.

Senhora das águas transbordantes no cais de súbito vazio
Senhora dos navegantes com teu astrolábio e tua errância
teu rosto de sereia à proa de um navio
tudo em ti é partida tudo em ti é distância.

Senhora da hora solitária do entardecer
ninguém sabe se chegas como graça ou como estigma
onde tu moras começa o acontecer
tudo em ti é surpresa Senhora do grande enigma.

Tudo em ti é perder Senhora quantas vezes
Setembro te levou para as metrópoles excessivas
batem as sílabas do tempo no rolar dos meses
tudo em ti é retorno Senhora das marés vivas.

Senhora do vento com teu cavalo cor de acaso
tua ternura e teu chicote sobre a tristeza e a agonia
galopas no meu sangue com teu cateter chamado Pégaso
e vais de vaso em vaso Senhora da arritmia.

Tudo em ti é magia e tensão extrema
Senhora dos teoremas e dos relâmpagos marinhos
batem as sílabas da noite no coração do poema
Senhora das tempestades e dos líquidos caminhos.

Tudo em ti é milagre Senhora da energia
quando tu chegas a terra treme e dançam as divindades
batem as sílabas da noite e tudo é uma alquimia
ao som do nome que só Deus sabe Senhora das tempestades.

Fonte: Silva, A. C. & Bueno, A., orgs. 1999. Antologia da poesia portuguesa contemporânea. RJ, Lacerda Editores. Poema publicado em livro em 1998.

15 janeiro 2012

Veranistas


Maurice Prendergast (1858-1924). Summer visitors. 1896.

13 janeiro 2012

Os gatos

Regina de Alencar

É meia noite. Os gatos, no telhado
Não me deixam dormir um só instante,
Soltando pelos ares seu miado
Agudo, mentiroso, suplicante.

Dona Ursa acaricia o bem-amado,
Romão carinhos faz à sua amante.
E este prazer tão grande é proclamado
No seu grito infernal, luxuriante.

Ouvindo perto este miado agudo
Eu sinto inveja do casal ditoso...
E se pudesse dispensava tudo

Por esse instante venturoso e grato,
E gritaria a todos o meu gozo
Como faz no telhado um simples gato.

Fonte: Martins, W. 1978. História da inteligência brasileira, vol. 6. SP, Cultrix & Edusp. Poema publicado em livro em 1922. ‘Regina de Alencar’ é um pseudônimo de Eduardo de Faria.

12 janeiro 2012

Cinco anos e três meses no ar

F. Ponce de León

Nesta quinta-feira, 12/1, o Poesia contra a guerra completa cinco anos e três meses no ar. Ao fim do expediente de ontem, o contador instalado no blogue indicava que 156.937 visitas foram registradas ao longo desse período.

Desde o balanço mensal anterior – Sessenta e dois meses no ar – foram aqui publicados textos dos seguintes autores: Bernardino Vieira, David Attenborough, Henri Ghéon, Homero Icaza Sánchez, Maurício Tragtenberg, Michael Löwy, Sérgio Godinho, Silva Alvarenga, Thomas S. Kuhn e Vitezslav Nezval. Além de alguns outros que já haviam sido publicados em meses anteriores.

Cabe ainda registrar a publicação de imagens de obras dos seguintes pintores: George Bellows, Jacopo del Casentino e Robert Henri.

11 janeiro 2012

Você me ama?

Henri Ghéon

Contam-nos que Mozart, arrastado por toda a Europa aos seis anos, exibido como um cão amestrado diante de reis, coberto de elogios, presentes e bondades, muitas vezes perguntava àqueles que pareciam interessados nele a ingênua pergunta “Você me ama?”. Era sua maior necessidade. Antes mesmo que seu gênio tivesse tido tempo para amadurecer, ele havia sido descartado como um brinquedo que deixou de divertir. A cada estágio de sua vida, ele teve de ser reconstruído. Com cada prova, nova prova era exigida.

“Você me ama?” “Me ama de verdade?” Sim, Wolfgang Amadeus, o tanto quanto me é possível. Mais do que a qualquer mestre em qualquer arte. Mais do que a todo o gênio humano. Mais do que a toda perfeição humana.

Fonte: Solman, J. 1991. Mozartiana: dois séculos de notas, citações e anedotas sobre Wolfgang Amadeus Mozart. RJ, Nova Fronteira. Trecho extraído de livro originalmente publicado em 1934.

09 janeiro 2012

Em memória de Nusch Éluard

Vitezslav Nezval

As portas estão abertas de par em par
O espírito arde na Rua da Capela chamazinha
Sobre o retrato de Pablo Picasso
Ali ela desapareceu para sempre na sexta-feira de manhã
Sexta-feira de manhã
Desapareceu atrás da cortina de uma familiazinha de arlequins
Que ela conduziu amorável até à barricada
O poeta gritará mas o quadro sorri
O poeta gritará mas em vão
Aquela que lhe acompanhava os passos
A que dançava
Vestida de branco
As portas estão abertas de par em par
Não há mais agora senão um grande vazio
Um vazio depois da incrível coisa

Paul Éluard que tanto amamos.

Fonte: Bandeira, M. 2007. Estrela da vida inteira. RJ, Nova Fronteira.

07 janeiro 2012

Teoria ou profissão de fé?

Michael Löwy

A teoria da revolução permanente constitui o equivalente moderno mais próximo do que há alguns séculos [...] se chamava uma “heresia”, isto é, um conjunto de idéias (teoria ou “profissão de fé”) consideradas como desagradáveis, inoportunas, subversivas e perigosas pelos detentores do monopólio institucional do poder ideológico. Tal como os heréticos do passado – por exemplo, os albigenses no sul da França – os partidários da revolução permanente na URSS foram primeiro excomungados e em seguida submetidos a uma campanha de extermínio sistemático. Os tribunais da GPU, versão moderna dos tribunais da Inquisição, se encarregaram desta tarefa, assim como de extorquir dos acusados confissões de culpa, autocríticas e retratações. Os livros, brochuras e folhetos contendo a doutrina herética foram colocados no Index Librorum Prohibitorum e destruídos, exatamente como nos bons velhos tempos do Santo Ofício. Quanto aos dirigentes heréticos, em vez da fogueira tiveram direito a uma bala na nuca (ou um golpe de picareta, conforme o caso) – o que representa sem dúvida um progresso do ponto de vista da humanização do massacre.
[...]

Fonte: Löwy, M. 1994. A revolução permanente: teoria ou profissão de fé? In: O. Coggiola, org. Trotsky hoje. SP, Ensaio. Trecho de uma obra de Trotsky está aqui.

05 janeiro 2012

Manhã azul


George Bellows (1882-1925). Blue morning. 1909.

Fonte da foto: The Athenaeum.

03 janeiro 2012

A vida na Terra

David Attenborough

3.
Há poucos lugares no mundo mais desolados do que os arredores de um vulcão após sua erupção. Torrentes de lava negra recobrem as vertentes, como a escória de uma fornalha. A atividade vulcânica já cessou mas a lava, arrefecendo, ainda crepita estalando seixos. Vapor sulfuroso sibila por entre as frestas, delineando as crateras com enxofre amarelo. Bacias de lama espessa, cinzentas, amarelas ou azuis borbulham aquecidas pelo calor decrescente das camadas mais profundas. O resto é silêncio. Nenhum arbusto oferece abrigo contra o vento sibilante; nem mesmo uma pequena mancha verde ameniza a superfície negra e árida das planícies de cinza vulcânica.

Durante a maior parte de sua história, a Terra apresentou essa paisagem inóspita. Na fase de resfriamento da crosta terrestre, a atividade vulcânica era muito intensa, numa escala inimaginável atualmente, formando cordilheiras de lava e cinza. Durante milênios essas montanhas, expostas à ação erosiva constante do vento e da chuva, se desfizeram em argila e lama e foram levadas, partícula por partícula, para além dos limites da terra e depositadas no fundo do mar. Aí, os sedimentos acumularam-se lentamente, formando camadas compactas de arenito e xisto argiloso. Os continentes de então não eram estacionários: deslocavam-se vagarosamente sobre a superfície da Terra, movidos pelas correntes subterrâneas de convecção. Quando duas placas continentais colidiam, os depósitos sedimentários que as circundavam eram comprimidos e elevados, dando origem a novas cadeias de montanhas. Durante 3 bilhões de anos, enquanto os ciclos geológicos se repetiam e os vulcões entravam em erupção e se extinguiam, a vida nos mares se manifestou em diversas formas; mas a terra firme ainda permanecia estéril.
[...]

Fonte: Attenborough, D. 1982. A vida na Terra. SP & Brasília, Martins Fontes & Editora UnB.

01 janeiro 2012

O sol é grande, caem co’a calma as aves


O sol é grande, caem co’a calma as aves,
do tempo em tal sazão, que sói ser fria;
esta água que d’alto cai acordar-m’-ia
do sono não, mas de cuidados graves.

Ó cousas, todas vãs, todas mudaves,
qual é tal coração qu’em vós confia?
Passam os tempos vai dia trás dia,
incertos muito mais que ao vento as naves.

Eu vira já aqui sombras, vira flores,
vi tantas águas, vi tanta verdura,
as aves todas cantavam d’amores.

Tudo é seco e mudo; e, de mestura,
também mudando-m’eu fiz doutras cores:
e tudo o mais renova, isto é sem cura!

Fonte (em parte): Figueiredo, C. 2004. 100 poemas essenciais da língua portuguesa. BH, Editora Leitura. Poema publicado em livro em 1595.

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