29 novembro 2018

Mendes e o toureio redondo

Antonio Roberval Miketen

Ceder seda por seda,
milímetro a milímetro,
o tecido de pétalas
às agulhas mais finas.

Tecer, tecer, tecer.
Tecer o touro em rosa,
sem ceder o terreno
exato ao matador.

Na lisura da seda,
num corte de vislumbre,
deslizar na muleta
a pureza do lume.

Reter na sorte o touro,
dar a veia nos dedos,
trazendo o couro ao corpo
sem o corte do medo.

Na figura da agulha,
mesmo que o sangue gele,
reter a rosa escura
na pétala da pele.

No toureio redondo,
verter-se em sangue e sal,
tecendo-se na rosa
de vermelho fatal.

Milímetro a milímetro,
ceder, ceder, ceder.
Ceder até ao limite
de sentir-se morrer.

Fonte: Horta, A. B. 2003. Sob o signo da poesia. Brasília, Thesaurus. Poema publicado em livro em 1987.

27 novembro 2018

A sombra do vento

Carlos Ruiz Zafón

Ainda me lembro daquele amanhecer em que meu pai me levou pela primeira vez para visitar o Cemitério dos Livros Esquecidos. Despontavam os primeiros dias de verão de 1945 e andávamos nas ruas de uma Barcelona aprisionada sob um céu cinzento, com um sol de vapor que se derramava na Rambla de Santa Mônica como uma grinalda de cobre líquido.

– Daniel, o que você vai ver hoje não pode contar a ninguém – advertiu meu pai. – Nem ao seu amigo Tomás. A ninguém.

– Nem a mamãe? – perguntei, em voz baixa.

Meu pai deu um suspiro, amparado naquele sorriso triste que o perseguia como uma sombra pela vida.

– Claro que sim – respondeu, cabisbaixo. – Com ela não temos segredo. A ela você pode contar tudo.
[...]

Fonte: Zafón, C. R. 2007 [2001]. A sombra do vento. RJ, Objetiva.

25 novembro 2018

Estigma

Dirceu Quintanilha

Vem de longe
o fogo.

Resta o ofício:
– Forjá-lo em ferro.

Eis o poema
de ferro e fogo
de sangue e terra.

Mas o verbo
nas mãos fechadas
desfaz-se em
cinzas.

Maldita marca
posta na carne
a ferro em brasa.

Fonte: Quintanilha, D. 1981. Arquiteto do silêncio. RJ, Fontana.

23 novembro 2018

Caprichos vasculares do SNC

Roberto Lent

Como todos os órgãos do corpo, o sistema nervoso precisa de oxigênio e nutrientes, e os retira basicamente do sangue arterial. Ocorre, entretanto, que as células nervosas são acentuadamente aeróbicas e, portanto, muito dependentes do aporte de oxigênio. Para se ter uma ideia, basta considerar que o encéfalo humano absorve cerca de 20% do oxigênio disponível na circulação e, para isso, recebe cerca de 15% do fluxo sanguíneo do corpo, embora represente apenas 2% da massa corporal. Alguns segundos de interrupção do fluxo sanguíneo cerebral já produzem sintomas, e alguns minutos já podem provocar lesões neuronais irreversíveis.

Para sustentar esse delicado e exigente equilíbrio metabólico, a vasculatura do SNC [sistema nervoso central] apresenta algumas importantes características, morfológicas e fisiológicas. (1) A entrada das artérias cerebrais e medulares não se dá por um único ponto (um hilo), como é o caso do fígado e dos rins, o que propicia alternativas de aporte sanguíneo em casos de obstrução. (2) O trajeto das artérias e arteríolas não é retilíneo mas tortuoso, e isso possibilita que se dissipe a energia mecânica proveniente do batimento cardíaco, que provoca um pico de pressão a cada sístole, o qual teria um provável impacto negativo sobre os neurônios se fosse transmitido a eles. (3) O diâmetro das arteríolas – e, portanto, o fluxo sanguíneo que penetra no tecido nervoso – é fina e dinamicamente regulado pela atividade neural, permitindo que as regiões mais ativas recebam mais sangue a cada momento da vida da pessoa. (4) A rede capilar apresenta uma barreira (a famosa barreira hematencefálica) que seleciona quais substâncias podem e quais não podem transitar entre o sangue e o tecido nervoso. Esse é um recurso importante para proteger o SNC de perigos externos (toxinas, drogas tóxicas) e internos (neurotransmissores como a epinefrina, por exemplo, que são secretados em massa pela medula supra-renal em certas situações, podendo causar grande interferência na função neural se fossem ‘autorizados’ a passar do sangue diretamente ao tecido nervoso). (5) A vasculatura venosa apresenta a contribuição das meninges, que formam os chamados seios nervosos e drenam não apenas o sangue utilizado pelo tecido, mas também o líquor que circulou pelas cavidades do SNC.

Fonte: Lent, R. 2008. A estrutura do sistema nervoso. In: Lent, R., org. Neurociência da mente e do comportamento. RJ, Guanabara Koogan.

21 novembro 2018

O rapto de Europa


Noël Nicolas Coypel (1690-1734). Enlèvement d’Europe. 1727.

Fonte da foto: Wikipedia.

19 novembro 2018

O Alto Amazonas

Donald W. Lathrap

1.
No curso inferior do Ucayali, na zona oriental do Peru, existe uma cidade em rápido crescimento chamada Juancito. A maioria dos seus habitantes vive ainda à base de uma agricultura de chacras, campos agrícolas preparados pelo sistema das queimadas, e que se internam cerca de um quilômetro na selva circundante. Duas das mais importantes culturas de rendimento são o tabaco e o arroz. No que diz respeito a trajos e costumes, o povo não difere sensivelmente dos habitantes das duas grandes idades do Peru oriental, Iquitos e Pucallpa. Consideram-se representantes típicos da cultura peruana e ofender-se-iam se lhes chamássemos índios. Contudo, há uma geração, a maior parte dos habitantes de Juancito, ou os seus antepassados, eram classificados de Cocamas, descendentes da grande nação de língua tupi que dominava o curso principal do Alto Amazonas, no momento do primeiro contacto com os Europeus. Algumas mulheres de Juancito fazem ainda cerâmica segundo um estilo muito decadente, que constitui apenas um tênue reflexo da complexa tradição cerâmica dos seus antepassados; e, em caso de doença, é consultado um xamanista, que conservou os conhecimentos religiosos e médicos dos Cocalas. A despeito destes vestígios da antiga cultura, ou talvez por causa deles, os habitantes de Juancito são ainda menos tolerantes para com os seus vizinhos índios do que os cidadãos peruanos comuns.
[...]

Fonte: Lathrap, D. W. 1975 [1970]. O Alto Amazonas. Lisboa, Verbo.

17 novembro 2018

À la claire fontaine

Popular francês

À la claire fontaine
M’en allant promener
J’ai trouvé l’eau si belle
Que je m’y suis baigné

Il y a longtemps que je t’aime
Jamais je ne t’oublierai

Sous les feuilles d’un chêne
Je me suis fait sécher
Sur la plus haute branche
Un rossignol chantait

Il y a longtemps...

Chante, rossignol, chante
Toi qui as le cœur gai
Tu as le cœur à rire
Moi, je l’ai à pleurer

Il y a longtemps...

J’ai perdu mon amie
Sans l’avoir mérité
Pour un bouton de rose
Que je lui refusai...

Il y a longtemps...

Je voudrais que la rose
Fût encore au rosier
Et que ma douce amie
Fût encore à m’aimer

Il y a longtemps...

Fonte: DVD do filme The painted veil (2006), de John Curran.

15 novembro 2018

A era da ignorância

Charles Simic

Ignorância generalizada, beirando a idiotice, é a nossa nova meta nacional. Não adianta fingir o contrário e nos dizer, como Thomas Friedman o fez no Times, alguns dias atrás, que as pessoas educadas são os recursos mais valiosos da nação. Elas o são, claro, mas nós ainda as queremos? Não me parece que sim. O cidadão ideal de um estado politicamente corrupto, como o que nós temos agora, é um tolo ingênuo incapaz de diferenciar a verdade da lorota.

Uma população educada e bem-informada, o tipo que uma democracia necessita para funcionar, seria difícil de enganar e não poderia ser dominada completamente pelos diversos capitais aplicados que atacam às cegas neste país. A maioria dos lobistas e dos nossos políticos e seus assessores perderiam o emprego, assim como os tagarelas que se fazem passar por nossos formadores de opinião. Felizmente para eles, nada tão catastrófico, ainda que perfeitamente merecido e amplamente bem-vindo, tem qualquer probabilidade de ocorrer em futuro próximo. Para início de conversa, há mais dinheiro a ser tirado do ignorante do que do ilustrado e enganar os estadunidenses é uma das poucas indústrias domésticas que ainda crescem neste país. Uma população verdadeiramente educada seria ruim, tanto para os políticos como para os negócios.

Foram necessários anos de indiferença e estupidez até nos tornarmos tão ignorantes como somos atualmente. Qualquer um que tenha lecionado em uma faculdade ao longo dos últimos 40 anos, como é o meu caso, pode lhe dizer o quão menos sabem os estudantes que saem do ensino médio a cada ano. No início foi um susto; porém, não é mais nenhuma novidade para qualquer professor auxiliar que os simpáticos e ansiosos jovens matriculados em suas turmas não conseguem apreender a maior parte do material que está sendo ensinado. Ensinar literatura estadunidense, como eu tenho feito, tornou-se mais e mais difícil nos últimos anos, visto que os alunos leem pouca literatura antes de entrar na faculdade, carecendo muitas vezes da informação histórica mais básica a respeito do período em que o romance ou o poema foi escrito, incluindo as questões e as ideias mais importantes que ocuparam as mentes pensantes da época.

Mesmo a história regional tem sido tratada sumariamente. Estudantes que vêm de antigas cidades fabris da Nova Inglaterra, como eu descobri, nunca ouviram falar das famosas greves em suas comunidades, durante as quais trabalhadores foram mortos a sangue frio e os autores escaparam impunes. Não me surpreendi que as escolas de ensino médio evitassem o assunto; mas me admira que pais e avós, e qualquer outro com quem eles tenham tido contato durante a infância, nunca mencionassem esses grandes exemplos de injustiça. Ou as famílias nunca falavam a respeito do passado ou, quando o faziam, os filhos não estavam prestando atenção. O que quer que tenha acontecido, a gente está diante do problema de como remediar a vasta ignorância deles a respeito de coisas com as quais já deveriam estar familiarizados, como as gerações anteriores de estudantes estavam.

Ainda que essa falta de conhecimento seja o resultado de anos de apatetamento do currículo do ensino médio e de famílias que não falam com as suas crianças a respeito do passado, há outro tipo de ignorância, ainda mais pernicioso, com o qual nos defrontamos hoje em dia. É o produto de anos de polarização ideológica e política e de esforços deliberados, nesse conflito para produzir mais ignorância, por parte dos partidos mais fanáticos e intolerantes, mentindo a respeito de muitos aspectos de nossa história e mesmo do nosso passado recente. Lembro de ter ficado estupefato, alguns anos atrás, ao ler que, em uma pesquisa de opinião, a maioria dos estadunidenses afirmou que Saddam Hussein estava por trás dos ataques terroristas de 11 de setembro. Isso me bateu como uma proeza da propaganda, algo sem paralelo nos piores regimes autoritários do passado — muitos dos quais tiveram de recorrer a campos de trabalho e pelotões de fuzilamento para obrigar o povo a acreditar em uma inverdade, sem o mesmo sucesso.

Sem dúvida, a internet e a TV a cabo permitem que diferentes interesses políticos e corporativos espalhem a desinformação em uma escala que não era possível antes, mas acreditar nisso exige uma população mal-educada, desacostumada a verificar as coisas que estão sendo ditas. Onde mais na Terra um presidente que salvou os grandes bancos da falência, com dinheiro dos contribuintes, deixando que o resto de nós perdesse 12 trilhões de dólares em investimentos, aposentadoria e valores imobiliários, seria chamado de socialista?

No passado, se alguém não sabia nada e falava besteira, ninguém prestava atenção a ele. Agora não. Agora essa gente é cortejada e exaltada por políticos e ideólogos conservadores como sendo os ‘Verdadeiros Estadunidenses’, defendendo o seu país contra o Estado e as elites liberais educadas. A imprensa os entrevista e reporta as suas opiniões seriamente, sem apontar a imbecilidade daquilo em que eles acreditam. Os agentes de publicidade, que os manipulam a favor de poderosos interesses financeiros, sabem que eles podem ser convencidos de qualquer coisa, pois, aos ignorantes e intolerantes, as mentiras sempre soam melhor que a verdade:

   Os cristãos são perseguidos neste país.
   O Estado vem pegar as suas armas.
   Obama é muçulmano.
   O aquecimento global é uma farsa.
   O presidente está forçando a homossexualidade assumida nas Forças Armadas.
   As escolas passam uma agenda de esquerda.
   O seguro social é um direito subjetivo, igual ao bem-estar.
   Obama odeia os brancos.
   A vida na Terra tem 10 mil anos de idade, assim como o Universo.
   Os programas sociais contribuem para a pobreza.
   O Estado está pegando o seu dinheiro e dando a universitárias taradas, pagando para que elas não engravidem.

Poderíamos facilmente listar muitos outros desses delírios banais em que os estadunidenses acreditam. Eles são mantidos em circulação por centenas de políticos de direita e pela mídia religiosa, cuja função é fabricar uma realidade alternativa para os seus telespectadores e os seus ouvintes. “A estupidez às vezes é a maior das forças históricas”, disse Sidney Hook em certa ocasião. Sem dúvida. O que temos neste país é a rebelião das mentes obtusas contra o intelecto. É por isso que eles amam políticos que se zangam com professores doutrinando crianças contra os valores de seus pais e se ressentem daqueles que mostram capacidade de pensar a sério e de modo independente. A despeito de suas bravatas, esses tolos sempre podem votar contra os seus próprios interesses. E isto, no que me diz respeito, é a razão de milhões estarem sendo gastos para manter meus concidadãos ignorantes.

Nota

Charles [Dušan] Simic [Simić] (nascido em 1936). O artigo original, ‘Age of ignorance’, foi publicado no The New York Review of Books, em 20/3/2012. A tradução é de Felipe A. P. L. Costa, autor de O evolucionista voador & outros inventores da biologia moderna (2017).

12 novembro 2018

Doze anos e um mês no ar

F. Ponce de León

Nesta segunda-feira, 12/11, o Poesia contra a guerra completa 12 anos e um mês no ar.

Desde o balanço anterior – ‘Aniversário de 12 anos’ – foram publicados aqui pela primeira vez textos dos seguintes autores: Alfred de Musset, André Torres, Marcelo Carnier Dornelas e Paul Laurence Dunbar.

Cabe ainda registrar a publicação de imagens de obras dos seguintes pintores: Giovanni Segantini, Kees van Donge e Othon Friesz.

10 novembro 2018

Exílio na Ilha Grande

André Torres

Depois que exterminaram meu grupo, diminuíram as fugas armadas nos cárceres do Rio. Os jovens não são hoje tão rebeldes como éramos, falta-lhes a ousadia de organizar, de fazer, de criar. Só existe realidade na ação. Uma coisa gera outra e assim sucessivamente. É preciso ter criatividade para desenvolver um fato ou um trabalho qualquer, e tudo requer logística e forças auxiliares. Não existe mais romantismo que faça o homem perder a própria vida em troca de um gesto, de um sorriso, de uma emoção. Os jovens não dão importância aos gestos simples que nos fazem viver intensamente todos os momentos de nossa vida, de nossa alma. Nos momentos de tristeza ou de felicidade, temos [de] usufruir as emoções provocadas por tudo que surge em nossa frente. Cada um se sensibiliza conforme sua capacidade de sensibilizar-se. Não sei se é preciso fugir da Ilha Grande, ser amigo de Jessie Jane, curtir Caetano, etc., para ter sensibilidade e opinião própria na vida. Acho que vale mais curtir o que nos agrada do que ficar de conversa fiada com o grupo da esquina. Nem por isto devemos renegar o grupo, pois em cada encontro com as pessoas adquirimos novos conhecimentos e isso nos enriquece aos poucos e pode nos levar inesperadamente para caminhos que pretendíamos ou não percorrer.

Fonte: Torres, A. 1979. Exílio na Ilha Grande. Petrópolis, Vozes.

05 novembro 2018

Chegar aqui


É claro que tudo isto é uma chatice
Estávamos habituados a acreditar em qualquer coisa
Fosse A Terra Prometida O Dia de Amanhã ou A Esperança
Assim chamada para ser sabe-se lá o quê
Brasil ou África talvez Europa
Havia uma fé uma fezada uma saída
Havia aquela luz de que falou Jorge de Sena
Esperança era o seu nome
Uma pequena luz Não isto

A aventura partiu para outros lados
A retórica aumenta
A vida baixa

Não há lugar para a beleza
Não há tempo
Eis a cidade com seu rosto desolado
Degradação é o nome destes dias
Amigos que desgraça etc. António Nobre
Ou Camilo Pessanha Eu vi a luz
Em um país perdido
Mas agora nem essa É só chatice
E perdição

E navegamos tanto tempo
São Gabriel Santa Maria Frol de la Mar
Não há dúvida temos um passado

Talvez de mais
Talvez tanto que não deixa lugar para o futuro

Mas fomos pelo mar chegamos longe

E agora Portugal o que será de ti
Se não formos capazes de chegar
Aqui

Fonte: Silva, A. C. & Bueno, A., orgs. 1999. Antologia da poesia portuguesa contemporânea. RJ, Lacerda Editores. Poema publicado em livro em 1984.

03 novembro 2018

O porto de Havre


[Achille-Émile] Othon Friesz (1879-1949). Le port du Havre. 1903.

Fonte da foto: Wikipedia.

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