31 dezembro 2008

As auroras boreais do outono

Wallace Stevens

1.
Aqui vive a serpente, a incorpórea.
A cabeça é de ar. Sob sua ponta, à noite,
Em todo o céu seu olhar se fixa em nós.

Ou será isto outro sair do ovo,
Outra imagem no fim da caverna, outro
Incorpóreo para a pele descartada?

Aqui vive a serpente. Este é seu ninho,
Esses campos, serras, essas distâncias tintas,
Pinheiros acima e ao longo do mar.

A forma aspirando o informe, pele
Cintilando o desejo de sumir,
Corpo de cobra cintilando sem a pele.

Aqui emerge a altura e sua base
Talvez as luzes por fim atinjam um pólo
No meio da meia-noite, e lá achem a serpente,

Em outro ninho, senhora do labirinto
De corpo e ar e forma e imagem, implacável
Proprietária da felicidade.

Eis seu veneno: não acreditarmos
Nem nisso. Suas meditações nas samambaias,
Quando mexeu-se um pouco para confirmar o sol,

Nos confirmou também. Vimos em sua cabeça,
Negra gota na pedra, o bicho pintado,
Capim movente, o índio em sua trilha.

2.
Adeus a uma idéia... Uma cabana,
Deserta, numa praia, É branca,
Como se por costuma, ou conforme

Um tema ancestral, ou conseqüência
De um curso infinito. As flores na parede
São brancas, algo secas; elas lembram,

Tentam lembrar, um branco diferente,
Outra coisa, no ano passado, ou antes,
Não o branco de uma tarde velha, mais vivo

Ou mais desmaiado, de nuvem de inverno
Ou céu de inverno, de horizonte a horizonte.
O vento joga areia no assoalho

Aqui, ser invisível é ser branco, é ser
De um todo branco, realização
Do exercício de um extremista...

Muda a estação. Um vento esfria a praia.
As linhas longas se alongam, se esvaziam,
A escuridão aumenta mas não cai,

E o branco das paredes esmaece.
O homem pára na areia, oco.
Vê como o norte intensifica a mudança,

Com brilhos gélidos, cortinas verde-azuis,
Grandes golfadas de luz, verde polar,
Cor de gelo e fogo e solidão.

3.
Adeus a uma idéia... O rosto da mãe,
O objetivo do poema, enche a sala.
Aqui estão juntos, aqui o frio não entra,

Não há presciência de sonhos que surjam.
A casa é a tarde, semidissolvida.
Só resta a metade que nunca lhes pertence,

Ainda estrelada. É a mãe que lhes pertence,
Que a paz presente empresta transparência,
Mais suaviza o que suave pode ser.

Mas também ela se dissolve, se destrói.
Dá transparência. Porém envelheceu.
O colar é um entalhe, não beijo;

As mãos macias, movimento, e não toque.
A casa vai cair e os livros vão arder.
Estão em paz num refúgio mental

E a casa é mental, eles e o tempo,
Todos juntos. A noite boreal
Será como geada ao vir a eles

E à mãe que adormece, e eles dão boa-noite,
Boa noite. No andar de cima, as janelas,
E não os quartos, ficarão acesos.

Um vento vai espalhar sua grandeza,
Bater à porta feito coronhada. O vento
Vai ordená-los com som invencível.

4.
Adeus a uma idéia... As negações,
Cancelamentos, nunca são finais. O pai,
Nalgum espaço de árida contemplação,

Como quem é forte nas matas do olhar,
Diz não ao não e sim ao sim. Diz sim
Ao não; e, ao dizer sim, diz adeus.

Ele mede a velocidade das mudanças.
Salta de céu a céu bem mais depressa
Que anjos maus de céu a inferno em chamas.

Porém, sentado, agora, em verde dia,
Adota a rapidez do espaço e a faz voar
De nuvem a azul, de azul a limpo intenso

Em vôos de olho e ouvido, olho mais alto
E ouvido o mais rasteiro e fundo, que discerne,
A noite, as coisas que acompanham, até ouvir

Prelúdios seus e sobrenaturais,
No instante em que o olho angélico define
Seus atores que entram, com suas máscaras.

Senhor, senhor ao pé do fogo e no entanto
No espaço imóvel e no entanto origem
Do movimento, luminosa mais e mais,

Profunda, e no entanto rei e coroa,
Olha este trono presente. Que mascarados
Hão de fazê-lo coro para o vento nu?

5.
A mãe convida a humanidade a sua casa
E mesa. O pai chama contadores de contos
E músicos que calam em cismas sobre os contos;

Chamas negras para danças entre as crianças,
Dançarinas de um maduro curioso
No desenho do amadurecer da dança.

Os músicos lhes tangem tons insidiosos,
Unhando a melopéia de seus instrumentos.
As crianças riem em tempo estridente.

O pai invoca préstitos do ar,
Cenas de teatro, panoramas, praticáveis,
Cortinas ingênuas que simulam sono.

Soam os músicos o poema instintivo.
O pai chama seus rebanhos dispersos,
De língua bárbara, babada, em bífida

Arfagem, que atendem a sua trompa.
Eis Chatillon, então, ou o que quiseres.
Estamos no tumulto de um festival.

Que festival? Essa turba barulhenta?
Esses irmãos hospitaleiros e hóspedes
Animalescos? Esses músicos trôpegos

Tateando uma tragédia que consiste
Em não ter falas a dizer? Não há peça. Ou:
O espetáculo é só estar aqui.

6.
É um teatro flutuando entre as nuvens,
É nuvem, embora pedra enevoada
E morros fluidos como água, onda a onda,

Ondas de luz. É de nuvem transformada
Em nuvem retransformada, ociosa,
Como estação que muda as cores sem razão

Senão o puro prazer de transformar,
Qual luz que do amarelo gera ouro, e o ouro
Reduz a opalino e fogo alegre,

Esparramado por amor ao esplendor
E ao prazer solene do espaço esplêndido.
Ociosa, a nuvem assume formas malpensadas.

O teatro se enche de aves a voar,
Ângulos loucos, qual fumaça de vulcão,
Olhos de palma, e some, teia em corredor

Ou pórtico imenso. Um capitólio, talvez,
Está surgindo, ou acaba de cair.
É preciso adiar o desenlace...

Isso não é nada até conter-se num só homem,
Até a coisa nomeada ser sem-nome
E destruída. Ele abre a porta de sua casa

Em chamas. Sábio de uma vela só,
Vê um brilho ártico sobre a estrutura
De tudo que ele é. E sente medo.

7.
Haverá uma imaginação entronada
Tão implacável quanto é benévola,
Justa e injusta, que pare em pleno verão

Para imaginar o inverno? Quando as folhas caem,
Será que ocupa o seu lugar ao norte e dobra-se,
Caprissaltante, cristalada e luminosa,

No mais alto da noite? E esses céus a adornam
E proclamam, a branca criadora do negro,
Cravejada de extinções, talvez de planetas,

Até da terra, da visão, na neve,
Salvo o que exige a sua majestade,
No céu, coroa e cabala diamantina?

Pula através de nós, de todos nossos céus,
Extingue nossos planetas, um por um,
Salvo a coroa e mística cabala. Mas

Saltar não ousa, a esmo, em sua própria treva.
Tem de trocar destino por capricho.
Daí sua negra tragédia, sua estela

E forma e busca melancólica daquilo
Que há de, e pode, ser fim, enfim,
Talvez um comentário cínico ao luar.

8.
Sempre pode haver tempo de inocência,
Num lugar. Ou, se tempo não houver,
Nem por não ser coisa de tempo nem lugar,

Existente como idéia apenas, consciência
Que repele o desastre, é menos real.
Para filósofo o mais velho e gélido,

Há ou pode haver tempo de inocência
Puro princípio, cuja essência é seu fim,
O ser, e no entanto não ser, uma coisa

Que apela à piedade do piedoso,
Como livro ao entardecer belo mas falso,
Como livro ao despertar belo e vero.

E como coisa etérea que existe
Quase como predicado. Porém
Existe, é visível, é e é.

Assim, estas luzes não são magia da luz,
Fala de nuvem, porém inocência,
Uma inocência da terra, não signo falso

Nem símbolo de mal. Dela provamos,
Crianças, nos deitamos nessa santidade,
Como quem, acordado, jaz na paz do sono,

Como se a mãe cantasse, inocente, no escuro
Do quarto, e num acordeão baixinho
Criasse o tempo e o espaço em que nós respiramos...

9.
E no outro cada um pensava – no idioma
Do trabalho, de uma terra inocente,
Não do enigma do sonho culposo.

Como dinamarqueses na Dinamarca,
Compatriotas sãos, que bem nos conhecíamos,
Para nós o extravagante era um dia útil,

Mais estranho que domingo. Concordávamos
Em tudo: éramos irmãos, num lar
No qual o ser irmão era alimento,

Como quem come um favo decoroso. O drama
Que vivemos – Nos melávamos de sono.
A sensação de atividade do destino –

O encontro marcado, quando ela vinha só,
Por ela vir virava liberdade a dois,
Isolamento que só dois podem gozar.

Nos acharão na primavera enforcados
Nas árvores? De que desastre isto é iminência:
Galhos nus, vento cortante como sal?

Vestem as estrelas seus cintos cintilantes.
Jogam nos ombros mantos que reluzem
Como último ornamento de uma grande sombra.

Talvez venha amanhã na palavra mais simples,
Quase como parte da inocência, quase isso,
Quase parte a mais terna e verdadeira.

10.
Gente infeliz num mundo feliz –
Rabino, lê as fases dessa diferença.
Gente infeliz num mundo infeliz –

Aqui há excesso de espelhos para a dor.
Gente feliz num mundo infeliz –
Não pode ser. Aqui não há nada que deleite

A língua expressiva, o dente inquisidor.
Gente feliz num mundo feliz –
Bufão! Um baile, uma ópera, um bar.

Voltemos ao lugar de onde partimos:
Gente infeliz num mundo feliz.
Agora soleniza as sílabas solertes.

Lê para a congregação hoje e amanhã,
Esse exagero, essa maquinação
Do espectro das esferas, maquinando

O equilíbrio a fim de maquinar um todo,
Gênio vital, que nunca falha, e realiza
Suas meditações, quer grandes, quer pequenas.

Nelas medita, infeliz, um todo,
O pleno do fado e o pleno da fortuna,
Como quem vive as vidas todas, para saber,

Em mansão megera, não silente éden,
Na arenga do vento, neste céu em chamas
Qual palha de verão, no âmago do inverno.

Fonte: Stevens, W. 1987. Poemas. SP, Companhia das Letras. Poema originalmente publicado em 1950.

27 dezembro 2008

Um outro olhar sobre as guerras

Felipe A. P. L. Costa

O Oriente Médio tem se caracterizado nas últimas décadas pela instabilidade política e pelos conflitos bélicos [...]. É compreensível, portanto, que se levantem dúvidas sobre a presença humana na região: por que palestinos e israelenses vivem em conflito há tanto tempo? Transcorridos 60 anos desde a criação do estado de Israel (1948), por que ainda não há um estado da Palestina igualmente reconhecido? É viável manter populações humanas auto-sustentadas e não-belicosas na região? É factível trabalhar em prol de uma sociedade transnacional no Oriente Médio, na qual cidadãos de origens, etnias e crenças religiosas diferentes possam conviver de modo civilizado? Afinal, por que as Nações Unidas não mantêm forças de segurança na região do conflito?

A imprensa costuma oferecer ‘explicações’ para os conflitos no Oriente Médio com base em argumentos de natureza religiosa ou étnica. Argumentos desse tipo podem ser fáceis de vender para o grande público, mas não parecem ser apropriados a ponto de sustentar uma explicação consistente. Quer dizer, ainda que todo e qualquer conflito intergrupal tenha uma carga ideológica própria, a ideologia por si só não é suficiente para explicar a origem e manutenção de conflitos bélicos dessa magnitude. Deve haver algo mais substantivo por trás dos adjetivos que israelenses e palestinos vivem a lançar uns contra os outros.
[...]

Fonte: Costa, F. A. P. L. 2008. Um outro olhar sobre as guerras. La Insignia, 19/11/2008 (acesso em dezembro de 2008).

25 dezembro 2008

Madona e o Menino


Giovanni Bellini [Giambellino] (c. 1430-1516). Madonna col Bambino. 1480-90.

Fonte da foto: Web Gallery of Art.

23 dezembro 2008

Vozes d’África

Castro Alves

Deus! ó Deus! onde estás que não respondes?
Em que mundo, em qu’estrela tu t’escondes
Embuçado nos céus?
Há dois mil anos te mandei meu grito,
Que embalde desde então corre o infinito...
Onde estás, Senhor Deus?...

Qual Prometeu tu me amarraste um dia
Do deserto na rubra penedia
– Infinito: galé!...
Por abutre – me deste o sol candente,
E a terra de Suez – foi a corrente
Que me ligaste ao pé...

O cavalo estafado do Beduíno
Sob a vergasta tomba ressupino
E morre no areal.
Minha garupa sangra, a dor poreja,
Quando o chicote do simoun dardeja
O teu braço eternal.

Minhas irmãs são belas, são ditosas...
Dorme a Ásia nas sombras voluptuosas
Dos haréns do Sultão.
Ou no dorso dos brancos elefantes
Embala-se coberta de brilhantes
Nas plagas do Hindustão.

Por tenda tem os cimos do Himalaia...
Ganges amoroso beija a praia
Coberta de corais...
A brisa de Misora o céu inflama;
E ela dorme nos templos do Deus Brama,
– Pagodes colossais...

A Europa é sempre Europa, a gloriosa!...
A mulher deslumbrante e caprichosa,
Rainha e cortesã.
Artista – corta o mármor de Carrara;
Poetisa – tange os hinos de Ferrara,
No glorioso afã!...

Sempre a láurea lhe cabe no litígio...
Ora uma c’roa, ora o barrete-frígio
Enflora-lhe a cerviz.
O Universo após ela – doudo amante
Segue cativo o passo delirante
Da grande meretriz.

... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ...

Mas eu, Senhor!... Eu triste abandonada
Em meio das areias esgarrada,
Perdida marcho em vão!
Se choro... bebe o pranto a areia ardente;
Talvez... p’ra que meu pranto, ó Deus clemente!
Não descubras no chão...

E nem tenho uma sombra de floresta...
Para cobrir-me nem um templo resta
No solo abrasador...
Quando subo às Pirâmides do Egito
Embalde aos quatro céus chorando grito:
“Abriga-me, Senhor!...”

Como o profeta em cinza a fronte envolve,
Velo a cabeça no areal que volve
O siroco feroz...
Quando eu passo no Saara amortalhada...
Ai! dizem: “Lá vai África embuçada
No seu branco albornoz...”

Nem vêem que o deserto é meu sudário,
Que o silêncio campeia solitário
Por sobre o peito meu.
Lá no solo onde o cardo apenas medra
Boceja a Esfinge colossal de pedra
Fitando o morno céu.

De Tebas nas colunas derrocadas
As cegonhas espiam debruçadas
O horizonte sem fim...
Onde branqueja a caravana errante,
E o camelo monótono, arquejante
Que desce de Efraim...

... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ...

Não basta inda de dor, ó Deus terrível?!
É, pois, teu peito eterno, inexaurível
De vingança e rancor?...
E que é que fiz, Senhor? que torvo crime
Eu cometi jamais que assim me oprime
Teu gládio vingador?!

... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ...

Foi depois do dilúvio... Um viandante,
Negro, sombrio, pálido, arquejante,
– Descia do Arará...
E eu disse ao peregrino fulminado:
“Cão!... serás meu esposo bem-amado...
– Serei tua Eloá...”

Desde este dia o vento da desgraça
Por meus cabelos ululando passa
O anátema cruel.
As tribos erram do areal nas vagas,
E o Nômada faminto corta as plagas
No rápido corcel.

Vi a ciência desertar do Egito...
Vi meu povo seguir – Judeu maldito –
Trilho de perdição.
Depois vi minha prole desgraçada
Pelas garras d’Europa – arrebatada –
Amestrado falcão!...

Cristo! embalde morreste sobre um monte...
Teu sangue não lavou de minha fronte
A mancha original.
Ainda hoje são, por fado adverso,
Meus filhos – alimária do universo,
Eu – pasto universal...

Hoje em meu sangue a América se nutre
– Condor que transformara em abutre,
Ave da escravidão,
Ela juntou-se às mais... irmã traidora
Qual de José os vis irmãos, outrora,
Venderam seu irmão.

... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ...

Basta, Senhor! De teu potente braço
Role através dos astros e do espaço
Perdão p’ra os crimes meus!
Há dois mil anos... eu soluço um grito...
Escuta o brado meu lá no infinito,
Meu Deus! Senhor, meu Deus!!...

Fonte: Alves, C. 1990. Poemas, 8a edição. RJ, Agir. Poema originalmente publicado em 1883.

21 dezembro 2008

O Guesa

Sousândrade

Canto 3

As balseiras na luz resplandeciam –
Oh! que formoso dia de verão!
Dragão dos mares, – na asa lhe rugiam
Vagas, no bojo indômito vulcão!
Sombrio, no convés, o Guesa errante
De um para outro lado passeava
Mudo, inquieto, rápido, inconstante,
E em desalinho o manto que trajava.
A fronte mais que nunca aflita, branca
E pálida, os cabelos em desordem,
Qual o que sonhos alta noite espanca,
“Acordem, olhos meus, dizia, acordem!”
E de través, espavorido olhando
Com olhos chamejantes da loucura,
Propendia p’ra as bordas, se alegrando
Ante a espuma que rindo-se murmura:
Sorrindo, qual quem da onda cristalina
Pressentia surgirem louras filhas;
Fitando olhos no Sol, que já s’inclina,
E rindo, rindo ao perpassar das ilhas.
– Está ele assombrado?... Porém, certo,
Dentro lhe idéia vária tumultua:
Fala de aparições que há no deserto,
Sobre as lagoas ao clarão da lua.

Imagens do ar, suaves, flutuantes,
Ou deliradas, do alcantil sonoro,
Cria nossa alma; imagens arrogantes,
Ou qual aquela, que há de riso e choro:
Uma imagem fatal (para o ocidente,
Para os campos formosos d’áureas gemas,
O sol, cingida a fronte de diademas,
Índio e belo atravessa lentamente):
Estrela de carvão, astro apagado
Prende-se mal seguro, vivo e cego,
Na abóbada dos céus, – negro morcego
Estende as asas no ar equilibrado.
E estende, abrindo-as, asas longas, densas
(Alvar boquinha, os olhos de negrores,
Lumes de Sátan e os que são traidores,
De Lusbel morte, já sem luz, sem crenças),
Vibra, acelera a vibração de açoite
Da asa torva com que fustiga os ares;
Qual a palpitação vasta da noite,
Oscila a esfera, vanzeando os mares.

Fonte: Figueiredo, C. 2004. 100 poemas essenciais da língua portuguesa. BH, Editora Leitura. Poema – composto de 13 cantos, dos quais o trecho acima corresponde ao terceiro – originalmente publicado entre 1874 e 1877.

20 dezembro 2008

Natureza morta


Giorgio Morandi (1890-1964). Natura Morta. 1920.

Fonte da foto: Mark Harden’s Artchive.

19 dezembro 2008

Um mundo intolerável

René Dumont

12.
[...]
Quando fui convocado para o serviço militar contra a minha vontade, em 1924 – o estatuto de insubmisso por motivos de consciência não existia naquela época –, o exército me fez saber que primeiro tinha que obedecer, mesmo que tivesse de protestar depois. O que significa, às vezes, em caso de guerra, morrer sem discutir. A humanidade inteira, em estado de agressão permanente, é submetida ao mesmo diktat. Para fazer recuar as forças da morte, os demônios do mal, ela deve se libertar, unir-se para reivindicar um futuro que não seja mais ameaçado, todos os dias, pelo espectro nuclear.

Outras razões nos impelem a nos opormos ao poder dos militares ou aos militares no poder. Já os vimos o suficiente em ação, em todos os tempos, em todos os países. Contrariamente ao que pretendem, eles não estão apenas aí para engajar e ‘ganhar’ os conflitos com as nações estrangeiras; eles lutam doravante contra ‘o inimigo anterior’ [sic] junto às forças de repressão policial, em nome daquilo que os militares do Brasil chamam de segurança nacional.

Os militares de nenhum modo são democratas: podemos observá-los, não só na China, na URSS e na Etiópia, como também em Marrocos, no Chile, no Brasil e na Argentina. Neste último país superaram a si mesmos no domínio do assassinato (batizado como ‘desaparecimento’), da tortura e de todos os aspectos mais repugnantes da repressão. Na América Latina, mesmo quando tiveram que passar o poder aos civis, após demonstrarem sua total ineficácia em economia, permanecem agindo nos bastidores como o mais poderoso dos lobbies, intervindo no plano político. No Brasil, na Colômbia, nas Filipinas e em El Salvador, eles se opõem – desta vez com sucesso – a essa reforma agrária da qual sabem que poderia se tornar a pedra angular da justiça social, portanto, de uma verdadeira democracia. A luta pela democracia exige, então, o retorno dos militares à caserna, disso sabemos há muito tempo: em todo caso desde Cícero, que dizia Cedant arma togae: o militar deve ‘ceder’ diante do poder civil. Enquanto se aguarda a supressão dos exércitos – como já acontece na Costa Rica.

Fonte: Dumont, R. 1989. Um mundo intolerável. RJ, Revan.

18 dezembro 2008

Alpujarra

Adam Mickiewicz

Jaz em ruínas o torrão dos mouros;
Pesados ferros o infiel arrasta;
Inda resiste a intrépida Granada:
Mas em Granada a peste assola os povos.

Cum punhado de heróis sustenta a luta
Fero Almansor nas torres de Alpujarra;
Flutua perto a hispânica bandeira;
Há de o sol d’amanhã guiar o assalto.

Deu sinal, ao romper do dia, o bronze;
Arrasam-se trincheiras e muralhas;
No alto dos minaretes erguem-se as cruzes;
Do Castelhano a cidadela é presa.

Só, e vendo as coortes destroçadas,
O valente Almansor após a luta
Abre caminho entre as imigas lanças,
Foge e ilude os cristãos que o perseguiam.

Sobre as quentes ruínas do castelo,
Entre corpos e restos da batalha,
Dá um banquete o Castelhano, e as presas
E os despojos pelos seus reparte.

Eis que o guarda da porta fala aos chefes:
“Um cavaleiro, diz, de terra estranha
Quer falar-vos; – notícias importantes
Declara que voz traz, e urgência pede”.

Era Almansor, o emir dos Muçulmanos,
Que, fugindo ao refúgio que buscara,
Vem entregar-se às mãos do Castelhano,
A quem só pede conservar a vida.

“Castelhanos, exclama, o emir vencido
No limiar do vencedor se prostra;
Vem professar a vossa fé e culto
E crer no verbo dos profetas vossos”.

“Espalhe a fama pela terra toda
Que um árabe, que um chefe de valentes,
Irmão dos vencedores quis tornar-se,
E vassalo ficar de estranho cetro!”

Cala no ânimo nobre ao Castelhano
Um ato nobre... O chefe comovido,
Corre a abraçá-lo, e à sua vez os outros
Fazem o mesmo ao novo companheiro.

Às saudações responde o emir valente
Com saudações. Em cordial abraço
Aperta ao seio o comovido chefe,
Toma-lhe as mãos e pende-lhe dos lábios.

Súbito cai, sem forças, nos joelhos;
Arranca do turbante, e com mão trêmula
O enrola aos pés do chefe admirado,
E junto dele arrasta-se por terra.

Os olhos volve em torno e assombra a todos:
Tinha azuladas, lívidas as faces,
Torcidos lábios por feroz sorriso,
Injetados de sangue ávidos olhos.

“Desfigurado e pálido me vedes,
Ó infiéis! Sabeis o que vos trago?
Enganei-vos: eu volto de Granada,
E a peste fulminante aqui vos trouxe”.

Ria-se ainda – morto já – e ainda
Abertos tinha as pálpebras e os lábios;
Um sorriso infernal de escárnio impresso
Deixara a morte nas feições do morto.

Da medonha cidade os castelhanos
Fogem. A peste os segue. Antes que a custo
Deixado houvessem de Alpujarra a serra,
Sucumbiram os últimos soldados.

Fonte: Siewierski, H. 1990. Slowacki e Mickiewicz: palavra e ação. Revista USP 6: 65 -72. Obra originalmente publicada em 1828, como parte do poema ‘Konrad Wallenrod’.

17 dezembro 2008

A torre das caveiras

Vasko Popa

Torre da morte
Nos ossos frontais tremeluz
Uma terrível lembrança

Das órbitas ocas
Fita até o fim do mundo
Um presságio negro

Entre maxilares roídos
Cravou-se extrema
E enorme maldição

Em torno da morte
Emparedados na torre
Crânios dançam
A última dança estrelada

Torre da morte
A castelã assusta-se
De si mesma

Fonte: Jovanović, A. 1990. Iugoslávia, uma constelação cultural. Revista USP 6: 49-64.

16 dezembro 2008

A epistemologia

Gaston Bachelard

85.
[...]
Uma terceira ordem de objecções é adoptada pelos continuístas da cultura no domínio da pedagogia. Quanto mais se crê na continuidade entre o conhecimento comum e o conhecimento científico, mais esforços se fazem para a manter, torna-se obrigatório reforçá-la. Faz-se assim sair do bom senso, lentamente, suavemente, os rudimentos do saber científico. Tem-se repugnância por violentar o ‘senso comum’. E, nos métodos do ensino elementar, adiam-se de ânimo leve os tempos de iniciações viris, procura-se conservar a tradição da ciência elementar, da ciência fácil; considera-se um dever fazer com que o estudante participe da imobilidade do conhecimento inicial. É necessário, apesar disso, conseguir criticar a cultura elementar. Entra-se, então, no reino da cultura científica difícil.

E eis aqui uma descontinuidade que não será fácil de apagar invocando um simples relativismo: de fácil, a química torna-se, subitamente, difícil. Torna-se difícil não só para nós próprios, difícil não só para o filósofo, mas verdadeiramente difícil em si. Os historiadores da ciência não aceitarão certamente que se caracterize a cultura científica do nosso tempo como especificamente difícil. Objectarão que, ao longo da história, todos os progressos foram difíceis, e os filósofos repetirão que os nossos filhos aprendem hoje na escola com facilidade aquilo que exigiu um esforço extraordinário aos gênios solitários dos tempos passados. Mas este relativismo, que é real, que é evidente, não faz senão salientar melhor o carácter absoluto da dificuldade das ciências física e química contemporâneas, a partir do momento em que se sai do reino da elementaridade.
[...]

Fonte: Bachelard, G. 1984 [1971]. A epistemologia. Lisboa, Edições 70.

15 dezembro 2008

Cochilo no bosque


Arthur Hughes (1832-1915). Asleep in the woods. 1895.

Fonte da foto: Art Renewal Center.

14 dezembro 2008

Só palavras compostas

Maria Tereza de Queiroz Piacentini

1.
[...]
Substantivos compostos são aqueles formados por mais de um radical, unidos ou não por hífen (passatempo, pé-de-moleque, curto-circuito, porta-copos, vaivém, pai-nosso, abaixo-assinado). Em outras palavras, os substantivos compostos são formados pelo arranjo em uma só palavra de substantivos, adjetivos, verbos, pronomes, advérbios e preposições.

Como nesse jogo criativo lança-se mão de tantas classes de palavras, achei por bem dividir os substantivos compostos em quatro partes:

1) aqueles formados por substantivo + substantivo unidos por hífen, com o auxílio ou não de preposição;

2) composições em que entra um adjetivo;

3) composições com formas verbais;

4) substantivos formados por locuções, ou seja, cadeias de duas ou mais palavras de variadas classes que podem ser substantivadas, como por exemplo ‘o sobe-e-desce da maré’, ‘foto em preto-e-branco’ e ‘foi um salve-se-quem-puder’.

Neste manual, nosso objetivo maior é identificar e conhecer palavras compostas com hífen, deixando de lado formações já bem assimiladas e incorporadas à língua, como passatempo, aguardente e mandachuva, em que a noção de composição quase se perdeu. Insistimos no hífen, porém, porque o seu emprego comporta uma série de dificuldades e erros de ortografia, os quais queremos ensinar o leitor a evitar.

Fonte: Piacentini, M. T. Q. 2000. Só palavras compostas. São Carlos & Curitiba, Editora da UFSCar & Instituto Euclides da Cunha.

13 dezembro 2008

A poesia ou a circunstância

Fernando Guimarães

Construímos com parcimónia a cidade de amanhã:
pouco cimento, algumas pedras e o suor escasso das mãos...
Na tua mesa inclinada, o compasso e a régua
– ó engenheiro! – são barcos quase imóveis.

Onde ficará o mercado, o ágora, as fontes
ou a muralha? A volta, olhamos para a areia,
para as dunas redondas e estéreis, para essas sementes de quartzo
inabitáveis – pobre formigueiro humano!

Os operários pensam na ponte a construir
os seus alicerces, a frescura da água reflectida,
os barcos atravessando-a como ramos de uma árvore,
a simetria rigorosa dos arcos... Mas construí-la-ão?

Estamos sozinhos, cai o sono sobre as pálpebras
e acariciamos as cicatrizes inúteis dos nossos braços.
(O enxame, perseguido pelo vento súbito,
mergulha na terra e procura as suas flores ocas.)

Fonte: Silva, A. C. & Bueno, A., orgs. 1999. Antologia da poesia portuguesa contemporânea. RJ, Lacerda Editores. Poema originalmente publicado em 1978.

12 dezembro 2008

Vinte e seis meses no ar

F. Ponce de León

Nesta sexta-feira, 12/12, o Poesia contra a guerra completa vinte e seis meses no ar. Ao fim do expediente de ontem, o contador instalado no blogue indicava que 55.676 visitas haviam sido registradas.

Desde o balanço mensal anterior – Vinte e cinco meses no ar – foram ao ar textos dos seguintes autores: Ann Finkheiner, Bertrand Russell, Boris Pasternak, Charles Dickens, Edgar Allan Poe, Eugene Field, Fernando Guedes, Hilda Hilst, Homero, Keith Thomas, Orlando González-Esteva, Paul Verlaine, Paulo Bomfim, Paulo Leminski e Zécarlos Ribeiro. Além de outros que já haviam sido publicados em meses anteriores.

Cabe ainda registrar a publicação de imagens dos seguintes pintores: Anders Zorn, Frank Duveneck, Frederick Sandys, George Frederic Watts e John Twachtman.

10 dezembro 2008

Ilíada

Homero

Canto 1

A ira, Deusa, celebra do Peleio Aquiles,
o irado desvario, que aos Aqueus tantas penas
trouxe, e incontáveis almas arrojou no Hades
de valentes, de heróis, espólio para os cães,
pasto de aves rapaces: fez-se a lei de Zeus;
desde que por primeiro a discórdia apartou
o Atreide, chefe de Homens, e o divino Aquiles.
Que Deus, posto entre ambos, provocou a rixa?
O filho de Latona e Zeus. Irou-o o rei.
A peste então lavrou no exército: ruína
cai sobre o povo! A Crises ultrajara o Atreide,
ao sacerdote, o qual viera até às naus
velozes dos Aqueus remir com dons a filha,
nas mãos portanto os nastros do carteiro Apolo
presos ao cetro de ouro e a todos implorava,
mormente as dois Atreides, comandantes de homens.
“Atreides e outros mais Aques de belas cnêmides,
que a vós os outros deuses dêem, habitantes do Olimpio,
derruída a priâmea urbe, um bom retorno à casa;
mas a filha querida resgatai-se, e os dons
guardai, temendo Apolo deus flechicerteiro.”
Então, uniconcordes, os Aqueus clamaram:
“Se atenda o sarcetode e as galas do resgate
se aceitem!” Disse não, Agamêmnon, o Atreide.
Brutal, refuga o velho com palavras duras:
“Que eu nunca mais te aviste junto às naves côncavas,
agora demorando ou de volta, mais tarde.
Inúteis o teu cetro e os nastros divinos,
nunca a libertarei, até que fique velha
em Argos, no meu paço, além, longe da pátria
nos trabalhos do tear, ou servindo-me ao leito.
Foge da minha ira, vai-te, põe-te a salvo.”
Findou a fala e o ancião retrocedeu medroso,
mudo, ao longo do mar de políssonas praias.
Depois, já muito longe, ao senhorio de Apolo,
ao filho da pulcrícoma Latona orou:
“Ouve-me, Arcoargênteo, protetor de Crisa
e de Cila sagrada, Esmínteo, rei de Tênedos.
Se o templo que te ergui merece teu favor,
se coxas gordurosas te queimei de touros
e de gordas ovelhas, cumpre meu desejo:
faze os Dânaos pagar meu pranto com tuas flechas!”
Súplice assim falou. Ouviu-o Febo Apolo.
Baixou do alto do Olimpo, coração colérico,
levando aos ombros o arco e a aljava bem fechada.
À espádua ao Iracundo retiniam flechas,
enquanto se movia, ícone da noite.
Sentou longe das naus: então dispara a flecha.
Horrísono clangor irrompe do arco argênteo.
Fere os mulos; depois, rápida prata, os cães;
então mira nos homens, setas pontiagudas
lançando: e ardem sem pausa densas piras fúnebres.
Nove dias sibilam flechas pelo exercito;
no décimo o Aquileu convoca o povo à ágora,
inspiração de Hera, a deusa bracinívea,
aflita a contemplar os Dânaos que morriam.
Depois que estavam juntos, reunidos, todos,
ergueu-se e lhes falou Aquiles, pés-velozes:
“Astreide, agora – penso – o descaminho oblíquio
nos frustra e força o passo atrás , se à morte salvos:
que, simultâneas, guerra e peste ao Aqueus domam.
Vamos, sem mais, ouvir arúspice ou vidente
– oniromante – que o sonhar provém de Zeus.
Que nos explique um tal rancor em Febo Apolo:
se de omissos nos culpa, em votos, hecatombes;
se lhe apraz receber de ovelhas e de cabras
seletas o perfume e nos poupar da peste.”
Falou e então sentou-se. Calcas Testorides
ergueu-se após, ótimo áugure de pássaros,
sabedor do que é, do que foi, do futuro,
que a Ílion conduzira as naves dos Aqueus
pelo dom de prever, graça de Febo Apolo.
Disse, de boa mente, ao povo unido na ágora:
“Aquiles, caro a Zeus, ordenas que eu discorra
sobre a ira de Apolo, deus flechicerteiro.
Pois é o que farei. Mas vê se me afianças,
zeloso, com teu braço e palavras valer-me.
Temo irritar um homem, o maior de todos,
que os Argivos governa e os Aqueus obedecem.
Furioso contra um fraco um rei se excede em força:
se no momento engole a cólera e a cozinha,
perdura-lhe o rancor, até que se sacie,
concentrado no peito. Diz que me proteges.”
A ele replicou Aquiles, pés-velozes:
“Calmo de coração, profere teu óraculo.
Ninguém – mercê de Apolo, caro a Zeus, que o dom
ante os Dânaos te fez , Calcas, do vaticínio –;
ninguém, enquanto eu vivo a terra em torno aviste;
ninguém, junto às naus côncavas, as mãos pesadas
lançará sobre ti, Dânao, mesmo Agamêmnon
que deles, dos Aqueus, se blasona o melhor.”
Encorajado então, falou o áugure augusto:
“Por voto omisso não nos culpa, ou hecatombe,
mas pelo sacerdote, agravo de Agamêmnon:
não resgatou-lhe a filha, rejeitou-lhe o prêmio.
Por isso, deu-nos dor, e há de nos dar, o Arqueiro,
nem o horror do flagelo afastará dos Dânaos,
antes que ao pai retorne a moça de olhos rútilos,
sem prêmio, sem resgate, e em Crisa se perfaça
uma sacra hecatombe. Assim talvez se aplaque.’’
Falou, depois sentou-se. Ergueu-se, então, do posto
o herói amplo-reinante, o Atreide, Agamêmnon;
sombrio, a fúria escura lhe revolve a estranha,
regurgitando; os olhos chispam como fogo.
Primeiro encara a Calcas e profere torvo:
“Vate funesto, a mim nunca anunciaste o bem,
és amigo do mal, sempre que profetizas;
nunca disseste, nem cumpriste, um bom augúrio.
E entre os Dânaos, agora, arengas, agourento:
que o Deus Flechicerteiro tanta dor lhes causa
porque eu não aceitei o resgate da moça,
o penhor de Criseida. Antes a quero em casa,
prefiro-a junto a mim, rival de Clitemnestra,
que, jovem, desposei: Criseida não lhe cede
no porte ou na figura, em prendas, no talento.
Mas se é melhor assim, opto por devolvê-la;
quero meu povo salvo, antes que destruído.
Porém um novo prêmio preparei-me, súbito;
não é justo que eu só fique sem recompensa:
meu quinhão, quem não viu?, passou-se a mãos alheias.”
Então lhe respondeu Aquiles, pés-velozes:
“Ó glorioso Atreide, mais que todos ávido,
que prêmios te hão de dar os Aqueus magnânimos?
Em parte alguma sei de espólio acumulado;
o saque das cidades, nos já partilhamos.
Não é justo partir de novo o repartido.
Deixa-a de volta ao deus. Em troca nós, Argivos,
três vezes, quatro vezes te pagaremos,
quando caia, por Zeus, Tróia de belos muros.”
Agamêmnon, o rei, contestou-lhe, dizendo:
“Aquiles, mesmo bravo, símile divino,
não me atrais, nem me iludes com furtivo engenho.
Queres manter teu bem, e ordenas, quanto a mim,
que eu, despojado, aceite devolver o meu.
Caso os Aqueus um dom, magnânimos, me dêem,
grato a meu coração, por igual me compenso;
caso não dêem, meu prêmio eu pessoalmente o tomo:
o quinhão que te coube, o de Ajax, o de Ulisses,
termino por levar, deixando o dono em cólera!
Sobre isso reflitamos com vagar mais tarde;
agora ao mar salino assome a nave escura,
repleta de remeiros; nela uma hecatombe
se embarque, e vá Criseida, com seu belo rosto,
a bordo, e alguém de bom conselho, um chefe de homens
– Ajax, Idomeneu, ou o divino Ulisses,
ou tu, Peleide, herói, temível entre todos
– apaziguando o Arqueiro, cumpre o sacrifício.”
Olhou-o de través Aquiles, pés-velozes:
“Investes na impostura, ó ávido de ganhos!
Como pode um Aqueu percorrer teus caminhos,
porfiado em seguir-te, combatendo homens?
Até aqui não vim guerrear os Troianos,
lanceiros excelentes. Não me queixo deles.
A mim não em roubaram gado, nem cavalos,
nem em Ftia, nutriz de heróis, solo fecundo,
devastaram plantios. Muitos montes medeiam
sombreados entre nos, e o mar sempre-soante.
A ti, Grão Sem-Pudor, olho-de-cão, viemos
seguir, satisfazer, salvar a honra em Tróia,
e a Menelau. Não cuidas disso, não te ocorre.
No entanto ameaças despojar-me do que é meu,
prêmio de muitas lutas, dom de Aqueus, meu bem.
Não se compara ao teu o quinhão que me cabe
quando em Tróia saquemos vilas bem-povoadas.
No tumulto da luta o legado mais duro
compete a minhas mãos; quando vem a partilha,
teu prêmio é bem maior; o meu, de pouco preço,
o prezo e levo às naus, cansado da batalha.
Agora volto a Ftia. À casa, em naves curvas,
mais vale retornar, que imaginar-me aqui,
sem honra, a recolher-te espólios e tesouros.”
Agamêmnon, o rei, chefe de homens, contesta:
“Foge, se o coração te apressa, nem eu peço
que por mim te retenhas; outros, ao meu lado,
me hão de honrar, Zeus prudente sobranceiro a todos.
Dos reis que dele vêm, és quem mais eu detesto.
Tens o prazer na discórdia, em guerras, nas contendas.
O valor que apregoas é favor divino.
Regressa, pois, à casa com navios e súditos,
senhor dos Mirmidões. A mim não me dá pena,
desdenho teu rancor. Porém, ouve este aviso:
Visto que me deseja Apolo de Criseida,
eu a mando de volta em navio equipado
por meus homens; mas vou eu mesmo à tua tenda
buscar Briseida, belo rosto, recompensa
que te coube; verás assim quem pode mais;
e que outro tema ombrear-se a mim como a um igual.”
Falou. No peito hirsuto do Peleide a angústia
assoma. O coração, partido em dois, hesita.
Ou arranca do flanco a espada pontiaguda
e afastando os demais abate o Atreide no ato,
ou reprime o furor, doma a revolta no ânimo.
Tudo isso lhe rodava no íntimo, e entretanto
ia sacando da bainha o gládio enorme.
Então, do céu, Atena desce. Enviou-a Hera,
dos braços brancos, que ama os dois, por ambos vela.
Por trás segura-lhe os cabelos louros, só
visível para ele; ninguém mais a vê.
Espanta-se o Peleide; gira o corpo, e logo
dá com Palas Antena: olhos terríveis brilham!
Dirigindo-se à deusa diz palavras rápidas;
“Filha de Zeus tonante, portador do escudo,
por que vens? Assistir à audácia de Agamêmnon?
Pois declaro o que penso e hei de ver cumprido:
seu belicoso orgulho vai causar-lhe a morte.”
Brilho de olhos azuis, responde a deusa Atena:
“Descendo do alto céu, para acalmar-te a ira
(se acaso me obedeces), vim a mando de Hera,
deusa dos braços brancos, que por ambos vala.
Vamos, pára essa briga! Deixa em paz a espada!
Insulta-o com palavras, sim, o quanto queiras.
Agora vou dizer-te o que se cumprirá:
um dia hão de pagar-te o triplo em dons esplêndidos
como preço da afronta. Acalma-te e obedece.”
Recomeça a falar Aquiles, pés-velozes:
“Deusa, em respeito às duas, tenho de ceder,
ainda que raive o coração. Melhor assim.
Os deuses dão escuta a quem se curva aos deuses.”
Disse e deixou pesar no punho prateado
a mão, embainhando o gládio enorme. Atena,
vendo-se obedecida, retornou ao céu,
ao Olimpio de Zeus, porta-escudo, entre os deuses.
E o filho de Peleu, de novo, fala negra,
turvo ainda de cólera, interpela o Atreide;
“Olho de cão e coração de cervo! Bronco
de vinho! Nunca ousaste, armado, com teu povo,
enfrentar um combate, nem seguiste os bravos
na luta de emboscadas. Tens pavor á morte.
Mais fácil é no vasto campo dos Aqueus
esbulhar do seu bem a quem te contradiz.
Devora-Povo! Rei do Dânaos? Rei de nada.
Senão seria este o teu último ultraje.

Fonte: Homero. 1992. Ilíada. Revista USP 12: 147-61. Poema datado do século 8 a.C. e comumente dividido em 24 cantos, dos quais o trecho acima corresponde ao Canto 1.

09 dezembro 2008

Medéia


Frederick Sandys (1829-1904). Medea. 1866-8.

Fonte da foto: Art Renewal Center.

08 dezembro 2008

Alma

Boris Pasternak

Pêsames, alma, sentes
por meus muitos amigos!
Agora és, de inocentes
e vítimas, jazigo.

Devoto à sua memória
(e os embalsamo) o canto,
a minha lira chora
quebrada de quebranto.

Em nossa era soturna,
tens consciência, medo
e guardas-lhes, qual urna,
as cinzas em segredo.

O seu sofrer conjunto
dobrou-te por inteiro,
cheiras a pó defunto,
a morgue e a cemitério.

Alma, que viste atenta
as mais cruéis agruras,
por fim, feito moenda,
moeste essa mistura.

Moeste, remoeste
e móis tanto de insano
num miasma podre nestes
quase quarenta anos.

Fonte: Campos, H.; Schnaiderman, B. & Archer, N. 1991. “Glasnost” e poesia. Revista USP 10: 104-8. Poema originalmente publicado em 1956.

07 dezembro 2008

Os brinquedos do menino

Eugene Field

O cãozinho de madeira, coberto de poeira,
Ainda está de pé, firme e forte.
Com o azul embolorado, o coitado do soldado
Não teve a mesma sorte.
O cãozinho já foi novo, um dia,
E até mesmo o soldadinho reluzia;
Era quando o menino os beijava,
E na estante do quarto os guardava.

“Não se mexam até eu voltar;
E não quero saber de folguedos!”
E deitava na caminha de armar,
A sonhar com seus lindos brinquedos.
Mas enquanto dormia, uma música linda
Dos céus vinda, o fez despertar –
Os brinquedos, amigos, o esperam ainda;
E tudo foi tanto tempo atrás!

Fiéis ao menino, com muita esperança,
Cada qual no local em que foi posto,
Sonham com a maciez de sua mão de criança
E com o sorriso a iluminar seu rosto.
E na poeira, enquanto passam os anos,
Perguntam, de si para si,
Por onde andará o menino risonho
Desde o dia em que os guardou ali.

Fonte: Bennett, W. J., org. 1997. O livro das virtudes para crianças. RJ, Nova Fronteira. Poema originalmente publicado em 1888.

05 dezembro 2008

ABC da relatividade

Bertrand Russell

Toda a gente sabe que Einstein fez algo de surpreendente, mas poucos são os que conhecem em rigor o que ele fez. Reconhece-se geralmente que ele revolucionou a nossa concepção do mundo físico, mas a verdade é que os novos conceitos estão envolvidos no tecnicismo das matemáticas. Sem dúvida, há inúmeras explicações populares sobre a teoria da relatividade, mas o certo é que, em geral, elas deixam de ser inteligíveis justamente quando começam a apresentar o que é importante. Dificilmente se podem culpar os seus autores. Muitas das novas idéias podem ser expressas em linguagem [não-matemática], mas não é por isso que deixam de ser difíceis. O que se torna necessário é uma alteração do nosso quadro imaginativo do mundo, quadro este que nos foi legado por remotos antepassados, talvez até pré-humanos, e que todos aprendemos logo no começo da infância. Qualquer mudança na nossa imaginação é sempre difícil, especialmente quando deixamos de ser jovens. Quando Copérnico ensinou que a Terra não era estacionária e que os céus não giram à sua volta uma vez por dia, exigiu-se o mesmo tipo de alteração. Actualmente, nenhum de nós encontra a mínima dificuldade nesta idéia, porque a aprendemos antes de os nossos hábitos mentais se terem fixado. Da mesma maneira, as idéias de Einstein hão-de parecer mais fáceis às gerações que cresceram com elas; todavia, para nós, torna-se inevitável um certo esforço de reconstrução imaginativa.
[...]

Fonte: Russell, B. s/d [1925]. ABC da relatividade, 2ª edição. Lisboa, Publicações Europa-América.

04 dezembro 2008

Essa pavana é para uma defunta

Jorge de Lima

Essa pavana é para uma defunta
infanta, bem-amada, ungida e santa,
e que foi encerrada num profundo
sepulcro recoberto pelos ramos

de salgueiros silvestres para nunca
ser retirada desse leito estranho
em que repousa ouvindo essa pavana
recomeçada sempre sem descanso,

sem consolo, através dos desenganos,
dos reveses e obstáculos da vida,
das ventanias que se insurgem contra

a chama inapagada, a eterna chama
que anima esta defunta infanta ungida
e bem-amada e para sempre santa.

Fonte: Lima, J. 1997. Jorge de Lima: poesia, 5ª edição. RJ, Agir. Poema originalmente publicado em 1949.

03 dezembro 2008

Venho de longe, trago o pensamento

Paulo Bomfim

Venho de longe, trago o pensamento
Banhado em velhos sais e maresias;
Arrasto velas rotas pelo vento
E mastros carregados de agonias.

Provenho desses mares esquecidos
Nos roteiros de há muito abandonados
E trago na retina diluídos
Os misteriosos portos não tocados.

Retenho dentro da alma, preso à quilha
Todo um mar de sargaços e de vozes,
E ainda procuro no horizonte a ilha

Onde sonham morrer os albatrozes...
Venho de longe a contornar a esmo,
O cabo das tormentas de mim mesmo.

Fonte: Pinto, J. N. 2004. Os cem melhores poetas brasileiros do século, 2ª edição. SP, Geração Editorial. Poema originalmente publicado em 1951.

02 dezembro 2008

No barco a remo


Anders Zorn (1860-1920). I Werners Eka. 1917.

Fonte da foto: Art Renewal Center.

01 dezembro 2008

Lila

Robert M. Pirsig

1.
Lila não sabia que ele estava lá. Dormia profundamente, aparentemente em meio a um sonho ruim. Na escuridão, ele ouviu seus dentes ranger e sentiu seu corpo virar subitamente, enquanto lutava contra alguma ameaça que somente ela podia ver.

A luz que vinha através da escotilha aberta era tão fraca que ocultava todas as linhas traçadas pelos cosméticos ou pela idade, e naquela hora ela parecia um doce querubim, uma garotinha loura de maçãs do rosto salientes, narizinho arrebitado e um rosto infantil bem comum que, de tão familiar, despertava uma espécie de afeição espontânea. Ele tinha a sensação de que, quando a manhã viesse, ela abriria de uma só vez os olhos muito azuis e eles brilhariam de excitação ante a perspectiva de mais um dia de sol e pais sorridentes e talvez toucinho cozinhando no fogão e felicidade por todo canto.

Mas não ia ser assim. Quando Lila abrisse os olhos, num atordoamento de ressaca, veria as feições de um homem grisalho de quem nem sequer ia se lembrar – alguém que tinha encontrado num bar, na noite anterior. Náusea e dor de cabeça talvez provocassem remorso e desprezo por ela mesma, mas não muito, ele achava – ela já tinha passado por aquilo muitas vezes – e aos poucos ela pensaria num jeito de voltar para a vida que estava levando antes de encontrar aquele ali.
[...]

Fonte: Pirsig, R. M. 1993. Lila: uma investigação sobre a moral. RJ, Rocco.

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