30 agosto 2020

Delicioso é ter nos braços...


Delicioso é ter nos braços a amada
   Quando a batida do seu coração revela amar-te.
Delicioso mais ainda é sentir o palpitar do pequeno,
   Que no amado regaço nutrindo-se se move.
Já tenta os saltos da turbulenta juventude,
   Bote impaciente, busca a luz celestial.
Aguarde um pouco ainda! Nos caminhos da vida
   Severamente te guiarão as horas, como o destino predispôs.
Qualquer que seja a vida que te espera, criança que nasce,
   O amou te formou, e amor te seja dado como sorte.

Fonte: Freire, C. 2004. Babel de poemas: Uma antologia multilíngüe. Porto Alegre, L&PM.

28 agosto 2020

O campo de batalha

Maya Pines

Milhões de crianças estão sendo irreparavelmente prejudicadas por nosso malogro em estimulá-las intelectualmente durante seus anos cruciais, do berço aos seis. Milhões de outras estão sendo mantidas aquém de seu verdadeiro potencial.

Nossos mais graves problemas educacionais poderiam em grande parte ser resolvidos se começássemos bastante cedo. Não obstante, descuidadamente ignoramos um atraente e persuasivo conjunto de conhecimentos a respeito de como os seres humanos aprendem.

Esse conhecimento só agora começa a articular-se de maneira tão sólida que possa conduzir à ação. Reunido a partir de projetos experimentais espalhados pelo país, em laboratórios de pesquisa e de cientistas em várias universidades, ele chega num momento em que, pela primeira vez na história da humanidade, se torna economicamente recomendável investir maiores esforços nos primeiros anos da vida humana.

Fonte: Pines, M. 1975 [1967]. Técnicas revolucionárias de ensino pré-escolar. SP, Ibrasa.

26 agosto 2020

Carruagem de terceira classe


Honoré [Victorin] Daumier (1808-1879). Le wagon de troisième classe. 1864.

Fonte da foto: Wikipedia. (Há mais de uma versão desta obra.)

23 agosto 2020

Matadouro

Luís Miguel Nava

   Dancei num matadouro, como se o sangue de todos os animais que à minha volta pendiam degolados fosse o meu. Dancei até que em mim houvesse espaço para um poema de que todas as imagens depois fossem desertando.

   A luz que desse sangue irradiava, como se nele o sol tivesse mergulhado e os raios nele se houvessem diluído, atravessava-me os poros e fazia-me cantar o coração. Tratava-se de uma luz que nada tinha a ver com a piedade ou a esperança, mas cuja música, sem me passar pelos ouvidos, ia direita ao coração, que no dos animais acabados de abater por momentos encontrava um espelho ainda quente, tão diverso da algidez que habitualmente neles impera.

   Só num espelho assim saído há pouco das entranhas dum ser vivo se desenha a nossa verdadeira imagem, ao invés da frigorífica mentira onde é comum a vermos esboçar-se. Só esse espelho capta a espessa luz em que parecem ter-se consumido os próprios astros, essa luz que com os objectos que ilumina se confunde numa única substância capaz de arrancar-nos à treva e de dar cor à santidade.

   A luz do néon, ante aquela de que se esvazia o coração dum porco, é uma metáfora de impacto reduzido. A luz que das vísceras emana é a de deus, aquela que, por uma excessiva dose de trevas misturada, mais que qualquer outra se aproxima da de deus, que resplandece nas carcaças em costelas onde é fácil pressentir as incipientes asas de algum anjo.

   O berro do animal que qualquer faca anónima remete à condição daqueles cujo sangue se escoe ao nosso lado é o único som a que dançar merece a pena. O dia declinou-lhe nas entranhas, quantas manhãs as percorreram absorvidas pelas aberturas dos seus olhos mais não são agora do que um rastro de lume sobre a lâmina e nos baldes onde pinga, reduzidas a um furtivo clarão de dignidade de que todos de repente nos sentimos órfãos.

Fonte: Silva, A. C. & Bueno, A., orgs. 1999. Antologia da poesia portuguesa contemporânea. RJ, Lacerda Editores. Poema publicado em livro em 1989.

20 agosto 2020

O galo de Pirapora

Altino Caixeta de Castro

Com sete estrelas d’alva na garganta
Aquele galo preto ao ver a aurora
Tatala as asas, rufla-as, bate a espora,
Tenor da noite e das estrelas, canta.

A rubra crista relampeja agora
Na noite de si mesmo que o suplanta,
Aquele galo preto quando canta
Bate o bico no céu de Pirapora.

Seu canto cai nas águas rio abaixo,
É um galo conhecido, é um galo macho,
Madrugador e marcador das horas.

Ele é o relógio ali das madrugadas,
Rufa o tambor das asas assustadas,
Bate o bico de bronze nas auroras.

Fonte: Horta, A. B. 2003. Sob o signo da poesia. Brasília, Thesaurus. Poema publicado em livro em 1980.

17 agosto 2020

As taxas seguem a declinar. Mas ainda estamos a pisar em ovos

Felipe A. P. L. Costa [*].

Os números da pandemia não param de crescer. Ontem (16), por exemplo, segundo o Ministério da Saúde, foram registrados em todo o país mais 23.101 casos e 620 mortes. Teríamos chegado assim a um total de 3.340.197 casos e 107.852 mortes.

Em termos analíticos, porém, devemos observar que as taxas de crescimento diário, tanto no número de casos como no de óbitos, seguem a declinar. As médias semanais dessas taxas estão agora em 1,38% e 0,94% (10-16/8), respectivamente. São os valores mais baixos desde o início da crise.

As estatísticas das últimas duas semanas (3-9/8: 301.745 casos e 6.945 mortes; e 10-16/8: 304.775 casos e 6.803 mortes) são compatíveis com as considerações que fiz em artigo anterior (ver ‘Como e por que as estatísticas que se avizinham podem ser ainda mais assombrosas’). O que me autoriza a manter as projeções de um dos cenários ali apresentados (RÁPIDO), de acordo com o qual as médias semanais nas taxas de crescimento cairiam 0,2% por semana – ver a figura que acompanha este artigo.

*

FIGURA. A figura que acompanha este artigo mostra os valores esperados para as médias diárias no número de novos casos (eixo vertical) em cinco cenários diferentes (a taxa cai 0,05%, 0,075%, 0,1%, 0,15% ou 0,2% por semana), até 27/9. Mostra ainda os valores observados nas últimas duas semanas (Real; linha alaranjada). Observe que, no pior cenário, LENTO (linha vermelho escuro), a média seguiria aumentando até o fim de setembro – a rigor, até a primeira semana de dezembro (não mostrado), quando só então atingiria o seu máximo (111.521) e começaria a declinar. Ao que parece, no entanto, a situação atual está mais próxima da trajetória descrita pelo cenário RÁPIDO.

*

Pois bem.

De acordo com o cenário RÁPIDO, (1) As médias diárias no número de novos casos e no número de óbitos teriam alcançado seus valores máximos (45.815 e 1.074, respectivamente) na penúltima semana de julho (20-26/7); (2) As duas médias devem seguir declinando (nesta e nas próximas semanas); e (3) O país deve contabilizar 3.875.484 casos e 111.965 mortes até 30/8 e 4.391.600 casos e 114.844 mortes até 27/9.

Coda.

Embora as taxas de crescimento sigam a declinar, os patamares atuais (1,38% e 0,94%), ao lado do que já sabemos sobre a dinâmica da doença (e.g., infectados transmitem o vírus para outros indivíduos quase sempre no interior de recintos fechados), não nos autorizam a pensar na reabertura de escolas. Nem nos autorizam a pensar na volta de eventos que estimulem a formação de grandes multidões, como é o caso das partidas de futebol.

Os voos internacionais – por meios do quais o vírus entrou no país algumas dezenas de vezes, só nas primeiras semanas da pandemia (ver aqui) – também deveriam continuar suspensos.

Em resumo: Há luz no fim do túnel, mas ainda estamos a pisar em ovos.

A volta às aulas presenciais, sobretudo no caso do ensino básico (fundamental e médio), colocaria tudo a perder. O mesmo raciocínio se aplica a toda e qualquer medida que estimule a formação de aglomerações, sobretudo em recintos fechados.

O ano letivo de 2020 já foi para o espaço [1]. Mas isso não é bem o fim do mundo. Se trilharmos o caminho certo, poderemos recuperar os prejuízos nos próximos dois ou três anos. No entanto, se os pais não se mobilizarem, deixando tudo por conta dos governantes ou dos donos das escolas, há uma boa chance de que a pandemia perdure e que o ano letivo de 2021 venha a ser igualmente comprometido.

*

Notas.

[*] Para detalhes e informações sobre o livro mais recente do autor, O que é darwinismo (2019), inclusive sobre o modo de aquisição por via postal, faça contato pelo endereço meiterer@hotmail.com. Para conhecer outros livros e artigos, ver aqui.

[1] Visto que as férias escolares também já foram para o espaço, as escolas provavelmente adotarão calendários híbridos. Aulas em janeiro e fevereiro, por exemplo. Uma alternativa – demagógica e potencialmente desastrosa – seria a promulgação de um sistema de aprovação cartorial (e.g., os governantes promoveriam a aprovação automática dos alunos).

* * *

16 agosto 2020

O pescador

 

Jean-Louis Forain (1852-1931). Le pêcheur. 1884.

Fonte da foto: Wikipedia.

14 agosto 2020

História para ninar Cassul-Buanga

 Nei Lopes


Um dia, Cassul-Buanga, alguns chegaram:

A pólvora no peito, uma bússola nos olhos

E as caras inóspitas vestidas de papel.


Vieram numa nau de velas caras,

Bordadas de cifrões.

Suas mãos eram de ferro

E falavam um dialeto

De medo e ignorância.


E fomos.

Amontoados, confundidos, fundidos, estupefatos

Nossas dignidades eram dadas mar atrás

Aos peixes.


Chegamos:

Nosso suor foi o doce sumo de suas canas

– nós bagaços.

Nosso sangue eram as gotas de seu café

– nós borras pretas.

Nossas carapinhas eram nuvens de algodão,

Brancas,

Como nossas negras dignidades

Dadas aos peixes.

Nossas mãos eram sua mão de obra.


Mas vivemos, Cassul. E cantamos um blue!

E na roda um samba

De roda

Dançamos.

Nossos corpos tensos

Nossos corpos densos

Venceram quase todas as competições.

Nossos poemas formaram um grande rio.

E amamos e nos demos.

E nos demos e amamos.

E de nós fez-se um mundo.


Hoje, Cassul, nossas mulheres

– os negros ventres de veludo –

Manufaturam, de paina, de faina

Os travesseiros

Onde nossos filhos,

Meninos como você, Cassul-Buanga,

Hão de sonhar um sonho tão bonito...

Porque Zâmbi mandou. E está escrito.


Fonte: Pereira, E. A., org. 2010. Um tigre na floresta de signos. BH, Maza Edições. Poema publicado em livro em 1996.

13 agosto 2020

166 meses no ar

F. Ponce de León

Ontem, quarta-feira (12/8), o Poesia contra a guerra completou 13 anos e dez meses (= 166 meses) no ar.

Desde o balanço anterior – ‘Treze anos e nove meses no ar’ – foram publicados aqui pela primeira vez textos dos seguintes autores: Alfredo Luis Mateus, Edwin Arlington Robinson, Erwin Schrödinger, Gordon Bottomley, J. Mayone Stycos, R. Alan Wilson, Richard Blackmore, Sinclair Lewis e Suzana Smith Cavalli. Além de outros que já haviam sido publicados antes.

Cabe ainda registrar a publicação de imagens de obras dos seguintes pintores: Camille Flers, Jacques Raymond Brascassat e Louis Hersent.

11 agosto 2020

O mito do método científico

Alfredo Luis Mateus

A química, como toda ciência, não é nada mágico ou superior, reservado para mentes brilhantes. Nem tampouco existe uma receita mirabolante para se aprender ou se fazer ciência, algo como o mito do fantástico ‘método científico’ que os cientisticas seguem como uma maquininha de fazer leis e teorias... Existem tantos métodos quanto cientistas; tudo é válido para se resolver um problema e não existe necessariamente uma ordem a ser seguida. Use esta liberdade para explorar e ampliar todas as coisas que você encontrar neste livro. Tudo o que é necessário são atributos que eu tenho a certeza de que você, leitor(a), já possui: curiosidade, atenção, raciocínio e determinação, tudo em dose normal, e que são uma resposta natural ao ser colocado(a) de frente com um problema ou desafio.

Fonte: Mateus, A. L. 2001. Química na cabeça, BH, Editora UFMG.

08 agosto 2020

Thou dost the full Extent of Nature see

Richard Blackmore

   Thou dost the full Extent of Nature see,
And the wide Realms of vast Immensity;
Eternal Wisdom Thou dost comprehend,
Rise to her Heights, and to her Depths descend;
The Father’s secret Counsels Thou can’st tell,
Who in His Bosom didst for ever dwell;
Thou on the Deep’s dark Face, Immortal Dove,
Thou, with almighty Energy didst move
On the wild Waves, Incumbent didst display
Thy genial Wings, and hatch primeval Day.
Order from Thee, from Thee Distinction came,
And all the Beauties of the wondrous Frame;
Hence stampt on Nature we Perfection find,
Fair as th’Idea in th’Eternal Mind.

Fonte (v. 11-14): McGrath, A. 2016. Deus e Darwin. Viçosa, Ultimato. O trecho acima corresponde ao 3º parágrafo do Livro 1 (são sete, no total) da obra Creation (1712).

07 agosto 2020

Terceiro volume



Este terceiro volume d’A PANDEMIA E A LENTA AGONIA DE UM PAÍS DESGOVERNADO reúne cinco artigos sobre a crise que foram publicados no Jornal GGN, entre 15/7 e 5/8. Versões de dois deles foram publicadas também aqui no Poesia Contra a Guerra (PCG).

Eis os capítulos e as respectivas as datas de publicação no GGN e, quando foi o caso, no PCG: (1) ‘No ritmo atual, o país irá contabilizar ao menos 3 milhões de casos e 105 mil mortes até 30 de agosto’ (GGN, em 15/7); (2) ‘Como entramos e como iremos sair da crise. IV. Há uma luz no fim do túnel’ (PCG, 21/7; GGN, 22/7); (3) ‘A brutal diferença que há entre 1,7% e 2%’ (GGN, 27/7); (4) ‘Epidemias como um fenômeno populacional. I. Interações ecológicas, zoonoses e doenças contagiosas’ (PCG e GGN, 30/7); e (5) ‘Como e por que as estatísticas que se avizinham podem ser ainda mais assombrosas’ (GGN, 5/8).

Olhando para os 22 capítulos que compõem os três volumes, eu diria que, com exceção daqueles com um conteúdo mais conceitual (e.g., cap. 4 deste volume), as recapitulações são frequentes. Não é de estranhar, dada a natureza e o propósito do material – retratar e discutir os rumos de uma pandemia em curso. Por isso mesmo, talvez seja preferível o leitor iniciar a leitura sempre pelo capítulo mais recente.

*

Nota.

[*] Como no caso dos volumes 1 e 2, o volume 3 pode ser capturado (na íntegra) na página do autor no portal Research Gate, AQUI. Para detalhes e informações sobre o livro mais recente do autor, O QUE É DARWINISMO (2019), inclusive sobre o modo de aquisição por via postal, faça contato pelo endereço meiterer@hotmail.com.

05 agosto 2020

Leito de morte


Louis Hersent (1777-1860). Mort de Xavier Bichat. 1817 (?).

Fonte da foto: Wikipedia.

03 agosto 2020

To iron-founders and others

Gordon Bottomley

When you destroy a blade of grass
You poison England at her roots:
Remember no man’s foot can pass
Where evermore no green life shoots.

You force the birds to wing too high
Where your unnatural vapours creep:
Surely the living rocks shall die
When birds no rightful distance keep.

You have brought down the firmament
And yet no heaven is more near;
You shape huge deeds without event,
And half made men believe and fear.

Your worship is your furnaces,
Which, like old idols, lost obscenes,
Have molten bowels; your vision is
Machines for making more machines.

O, you are busied in the night,
Preparing destinies of rust;
Iron misused must turn to blight
And dwindle to a tettered crust.

The grass, forerunner of life, has gone,
But plants that spring in ruins and shards
Attend until your dream is done:
I have seen hemlock in your yards.

The generations of the worm
Know not your loads piled on their soil;
Their knotted ganglions shall wax firm
Till your strong flagstones heave and toil.

When the old hollowed earth is cracked,
And when, to grasp more power and feasts,
Its ores are emptied, wasted, lacked,
The middens of your burning beasts

Shall be raked over till they yield
Last priceless slags for fashionings high,
Ploughs to wake grass in every field,
Chisels men’s hands to magnify.

Fonte (v. 6, 15-6): Carpeaux, O. M. 2011. História da literatura ocidental, vol. 4. Brasília, Senado Federal. Poema publicado em livro em 1907.

02 agosto 2020

Deficiência de proteínas e fertilidade

J. Mayone Stycos

Outro pensamento comodista sobre o problema da população vem das teorias de Josué de Castro. Na Geografia da Fome, Castro popularizou a noção de que a deficiência de proteínas é responsável pela grande fertilidade nas classes pobres. Apesar do desprezo dado a essa teoria pelos demógrafos, ela captou a imaginação de muitos da elite educada em vários países. Tem dupla vantagem: a da simplicidade e a de evitar o debate do verdadeiro problema. Com o desenvolvimento econômico, a população alimentar-se-á melhor e, portanto, terá menor número de filhos. Não é necessário atacar diretamente o problema.

Fonte: Hardin, G., org. 1967. População, evolução & controle da natalidade. SP, Nacional & Edusp. Excerto de artigo publicado em 1963.

01 agosto 2020

Marcadores genéticos

Suzana Smith Cavalli

Marcadores genéticos são caracteres qualitativos, com herança mendeliana simples, facilmente reconhecidos e cuja expressão não é influenciada pelo ambiente, e que podem ser empregados para avaliar as diferenças genéticas entre dois ou mais indivíduos. Marcadores genéticos podem ser divididos em dois grupos básicos: morfológicos e moleculares. Os marcadores moleculares podem, por sua vez, ser divididos naqueles baseados nos produtos da expressão de genes, como proteínas e enzimas (isoenzimas e aloenzimas), e naqueles baseados na analise do fenótipo molecular oriundo de fragmentos específicos das moléculas de DNA e RNA.

Fonte: Cavalli, S. S. 2003. In: Freitas, L. B. & Bered, F., orgs. Genética & evolução vegetal. Porto Alegre, Editora da UFRGS.

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