30 março 2013

O cavalo de Samarra

Enzo Tiezzi

Na antiga Bassora, um soldado, cheio de medo, foi até seu rei e lhe disse: “– Salvai-me, soberano, ajudai-me a fugir daqui. Estava na praça do mercado e encontrei a Morte, vestida de negro, que me olhou de modo malévolo. Cedei-me vosso cavalo, para que eu possa correr até Samarra. Se permanecer aqui, temo por minha vida”. “– Daí-lhe o melhor corcel”, disse o soberano, “o filho do relâmpago, digno de um rei”.

Mais tarde, na cidade, o rei encontrou a Morte e lhe disse: “– Meu soldado estava apavorado. Disse-me que te encontrou hoje, no mercado, e que o olhavas de modo malévolo”. “– Não, não”, respondeu a Morte, “meu olhar era de surpresa, apenas, pois não sabia o que ele fazia hoje por aqui, visto que o esperava em Samarra, esta noite. De manhã, estava muito longe de lá”.
[...]

Fonte: Tiezzi, E. 1988 [1984]. Tempos históricos, tempos biológicos. SP, Nobel.

28 março 2013

A morte do sol

Sosígenes Costa

Chovem lilases. Pôr de sol. Em frente
a mata é de nanquim. Passam de lado,
no rodapé vermelho do ocidente,
carros de rum de papel pintado.

É ali que o sol vai ser decapitado
para que à noite, Salomé dolente,
baile. Não há quem tanta dor aguente,
em mar de roxos e cinzentos nado.

No poente degola-se. – Quem morre?
Ninguém responde. Unicamente escorre
a golfada de sangue do arrebol.

E de Herodes fantástico soldado
põe na salva do ocaso ensanguentado
a cabeça de São João do sol.

Fonte: Nejar, C. 2011. História da literatura brasileira. SP, Leya. Poema publicado em livro em 1959.

26 março 2013

Formas de abençoar

Alberto da Cunha Melo

Fique aqui mesmo, morra antes
de mim, mas não vá para o mundo.
Repito: não vá para o mundo,
que o mundo tem gente, meu filho.

Por mais calado que você
seja, será crucificado.
Por mais sozinho que você
seja, será crucificado.

Há uma mentira por aí
chamada infância, você tem?
Mesmo sem a ter, vai pagar
essa viagem que não fez.

Grande, muito grande é a força
desta noite que vem de longe.
Somos treva, a vida é apenas
puro lampejo do carvão.

No início, todos o perdoam,
esperando que você cresça,
esperando que você cresça
para nunca mais perdoá-lo.

Fonte: Melo, A. C. 2006. O cão de olhos amarelos & outros poemas inéditos. SP, A Girafa.

24 março 2013

O microscópio


Robert Walter Weir (1803-1889). The microscope. 1849.

Fonte da foto: The Athenaeum.

22 março 2013

Casamento


Há mulheres que dizem:
Meu marido, se quiser pescar, pesque,
mas que limpe os peixes.
Eu não. A qualquer hora da noite me levanto,
ajudo a escamar, abrir, retalhar e salgar.
É tão bom, só a gente sozinhos na cozinha,
de vez em quando os cotovelos se esbarram,
ele fala coisas como “este foi difícil”
“prateou no ar dando rabanadas”
e faz o gesto com a mão.
O silêncio de quando nos vimos a primeira vez
atravessa a cozinha como um rio profundo.
Por fim, os peixes na travessa,
vamos dormir.
Coisas prateadas espocam:
somos noivo e noiva.

Fonte: Moriconi, I., org. 2001. Os cem melhores poemas brasileiros do século. RJ, Objetiva. Poema publicado em livro em 1981.

21 março 2013

200 mil visitas

F. Ponce de León

No meio do expediente de ontem (20/3), o Poesia contra a guerra ultrapassou a marca de 200 mil visitas. Desde o balanço numérico anterior – ver ‘Cento e cinquenta mil visitas’, em 28/10/2011 –, ocorreram em média pouco mais de 96 visitas/dia. Um novo recorde positivo em um só dia foi alcançado em 27/1/2013, com 248 visitas.

19 março 2013

Como o indeterminado nos determina

William Bronk

Assim, somos tão pouco discerníveis
em tanto nada que resulta que a nossa particularidade,
por vezes, nos assombra: o mundo é nosso;
é tão só nosso; outros que se movem aí,
ou parecem mover-se, estão noutro sítio, estão noutro mundo,
no seu mundo; vemos somente de vez em quando
– fragmentados, como se fôssemos nada, ou
instáveis – algumas vezes vemos o que eles vêem,
nenhum mundo que conhecemos. O deles. Estranho. Como se
por uma mutação momentânea de pequenas partículas
de cargas, o cobre se tornasse carbono e senti-se o peso
e valências do carbono num mundo alterado
de inércias e reacções, e se retornasse cobre
num mundo cuproso. Resta-nos maravilhar e
ponderar a nossa particularidade e ponderar o seguinte:
somos duas incógnitas numa só equação, nós
e o nosso mundo, funções um do outro. A visão
é interior e vê-se a si mesma, a audição, o tacto,
são interiores. O que conhecemos do mundo exterior?

Fonte: Santos, A. M. D. S. N. 1988. Até que ponto uma ciência poética? In: Leite, M. C. et al. Pensar a ciência. Lisboa, Gradiva. Poema publicado em livro em 1964.

18 março 2013

Perda de calor

Arthur C. Guyton & John E. Hall

Grande parte do calor produzido pelo corpo é gerada nos órgãos profundos, especialmente no fígado, cérebro e coração, e nos músculos esqueléticos durante o exercício. A seguir, este calor é transferido dos órgãos e tecidos profundos para a pele, onde ele é perdido para o meio ambiente. Portanto, a velocidade de perda de calor é determinada quase completamente por dois fatores: (1) a velocidade de condução do calor de onde ele é produzido no centro do corpo até a pele e (2) a velocidade de transferência do calor entre a pele e o meio ambiente.
[...]

O fluxo sangüíneo do centro do corpo para a pele é responsável pela transferência de calor

Vasos sangüíneos estão profundamente distribuídos por debaixo da pele. Especialmente importante é um plexo venoso contínuo que é suprido pelo influxo de sangue dos capilares da pele [...]. Nas mais expostas do corpo – mãos, pés e orelhas – o sangue também é suprido por anastomoses arteriovenosas.

A velocidade do fluxo sangüíneo no plexo venoso da pele pode variar tremendamente – de valores próximos a zero até cerca de 30% do débito cardíaco. Uma alta velocidade de fluxo na pele faz com que o calor seja conduzido do centro do corpo para a pele com grande eficiência, enquanto a redução na velocidade do fluxo para a pele pode diminuir a condução do calor do centro do corpo para valores bastante baixos.
[...]

Portanto, a pele constitui-se num sistema controlado de “radiador de calor” eficiente e o fluxo de sangue para a pele é o mecanismo mais eficaz para a transferência de calor do centro do corpo para a pele.
[...]

Controle da condução do calor para a pele pelo sistema nervoso simpático. A condução de calor para a pele pelo sangue é controlada pelo grau de vasoconstrição das artérias e das anastomoses arteriovenosas que supre sangue para os plexos venosos da pele. Esta vasoconstrição é controlada quase exclusivamente pelo sistema nervoso simpático em resposta às alterações na temperatura central do corpo e alterações na temperatura ambiente. [...]

Fonte: Guyton, A. C. & Hall. J. E. 2006. Tratado de fisiologia médica, 11ª edição. RJ, Elsevier.

15 março 2013

Sonhos de lareira


J. [Julian] Alden Weir (1852-1919). Fireside dreams. 1887.

Fonte da foto: The Athenaeum.

13 março 2013

Sonhando


Hier, la nuit d’été, qui nous prêtait ses voiles,
Etait digne de toi, tant elle avait d’étoiles!
Victor Hugo

Na praia deserta que a lua branqueia,
Que mimo! que rosa! que filha de Deus!
Tão pálida – ao vê-la meu ser devaneia,
Sufoco nos lábios os hálitos meus!
Não corras na areia,
Não corras assim!
Donzela, onde vais?
Tem pena de mim!

A praia é tão longa! e a onda bravia
As roupas de gaza te molha de escuma;
De noite – aos serenos – a areia é tão fria,
Tão úmido o vento que os ares perfuma!
És tão doentia!
Não corras assim!
Donzela, onde vais?
Tem pena de mim!

A brisa teus negros cabelos soltou,
O orvalho da face te esfria o suor;
Teus seios palpitam – a brisa os roçou,
Beijou-os, suspira, desmaia de amor!
Teu pé tropeçou...
Não corras assim!
Donzela, onde vais?
Tem pena de mim!

E o pálido mimo da minha paixão
Num longo soluço tremeu e parou;
Sentou-se na praia; sozinha no chão,
A mão regelada no colo pousou!
Que tens, coração,
Que tremes assim?
Cansaste, donzela?
Tem pena de mim!

Deitou-se na areia que a vaga molhou.
Imóvel e branca na praia dormia;
Mas nem os seus olhos o sono fechou
E nem o seu colo de neve tremia.
O seio gelou?...
Não durmas assim!
Ó pálida fria,
Tem pena de mim!

Dormia – na fronte que níveo suar!
Que mão regelada no lânguido peito!
Não era mais alvo seu leito do mar,
Não era mais frio seu gélido leito!
Nem um ressonar!...
Não durmas assim!
Ó pálida fria,
Tem pena de mim!

Aqui no meu peito vem antes sonhar
Nos longos suspiros do meu coração:
Eu quero em meus lábios teu seio aquentar,
Teu colo, essas faces, e a gélida mão!
Não durmas no mar!
Não durmas assim.
Estátua sem vida,
Tem pena de mim!

E a vaga crescia seu corpo banhando,
As cândidas formas movendo de leve!
E eu vi-a suave nas águas boiando
Com soltos cabelos nas roupas de neve!
Nas vagas sonhando
Não durmas assim;
Donzela, onde vais?
Tem pena de mim!

E a imagem da virgem nas águas do mar
Brilhava tão branca no límpido véu!
Nem mais transparente luzia o luar
No ambiente sem nuvens da noite do céu!
Nas águas do mar
Não durmas assim!
Não morras, donzela,
Espera por mim!

Fonte: Azevedo, A. 2006. Lira dos vinte anos. SP, Martin Claret. Poema publicado em livro em 1853.

12 março 2013

Seis anos e cinco meses no ar

F. Ponce de León

Nesta terça-feira, 12/3, o Poesia contra a guerra completa seis anos e cinco meses no ar. Ao fim do expediente de ontem, o contador instalado no blogue indicava que 199.007 visitas foram registradas ao longo desse período.

Desde o balanço mensal anterior – Seis anos e quatro meses no ar – foram aqui publicados pela primeira vez textos dos seguintes autores: A. César de Freitas, Chairil Anwar, Emiliano Perneta, Eric E. Conn, Lila Ripoll, Paul K. Stumpf, D. Pedro de Alcântara, Richard J. Chorley, Roger G. Barry e Samantha Rugen. Além de alguns outros que já haviam sido publicados em meses anteriores.

Cabe ainda registrar a publicação de imagens de obras dos seguintes pintores: Bartholomeus Spranger e Bartholomeus van der Helst.

11 março 2013

O que é um ácido?

Eric E. Conn & Paul K. Stumpf

Entre as definições de ácidos e bases, a de maior utilidade em bioquímica é aquela proposta por [Johannes Nicolaus] Brønsted. Ele definiu um ácido como qualquer substância que pode doar prótons, e uma base como uma substância que pode aceitar prótons. Embora outras definições de ácidos, em especial aquela proposta por G. N. Lewis, sejam muito mais gerais, o conceito de Brønsted deve ser detalhadamente compreendido por estudantes de bioquímica.

As seguintes substâncias indicadas à esquerda da equação são exemplos de ácidos de Brønsted:

HCl → H+ + Cl,
CH3COOH → H+ + CH3COO,
NH4+ → NH3 + H+.

E a expressão generalizada seria

HA → H+ + A.

As bases correspondentes são

H+ + ClHCl,
H+ + CH3COOCH3COOH,
NH3 + H+NH4+.

A base correspondente para o ácido fraco genérico HA é

A + H+HA.

É costume referir o par ácido-base como segue: HA é o ácido de Brønsted porque ele fornece um próton; o ânion A é chamado de base conjugada porque pode aceitar o próton para formar o ácido HA.

Fonte: Conn, E. E. & Stumpf, P. K. 1975 [1972]. Introdução à bioquímica. SP, Edgar Blücher.

09 março 2013

Terra do Brasil

D. Pedro de Alcântara

Espavorida agita-se a criança,
De noturnos fantasmas com receio,
Mas, se abrigo lhe dá materno seio,
Fecha os doridos olhos e descansa.

Perdida é para mim toda a esperança
De volver ao Brasil; de lá me veio
Um pugilo de terra; e nesta creio,
Brando será meu sono sem tardança...

Qual o infante a dormir em peito amigo
Tristes sombras varrendo da memória,
Ó doce Pátria, sonharei contigo!

E, entre visões de paz, de luz, de glória,
Sereno aguardarei no meu jazigo
A justiça de Deus na voz da História!

Fonte: Martins, W. 1978. História da inteligência brasileira, vol. 5. SP, Cultrix & Edusp. A autoria deste soneto, publicado em livro em 1898, é controversa.

07 março 2013

Menstruação sem problemas

Samantha Rugen

A simples menção à palavra ‘menstruação’ pode fazer muitas garotas se derreterem de medo. Mesmo quando ela é mencionada em código, como ‘chico’, ‘aqueles dias’, ‘lua’, ‘paquete’, não há como escapar do embaraço. Contudo, não existe razão para tanto. Falar a respeito desse ‘milagre da natureza’ não deveria ser tabu, já que cerca de 50% da população passa por isso. Quando você realmente pensar no que está acontecendo ‘lá embaixo’ a cada quatro semanas (aproximadamente), vai querer contar vantagem e deixar o outro sexo com inveja. O corpo dos meninos não lhes permite produzir outro ser humano! (Se eles pudessem fazê-lo, tenha certeza de que a menstruação seria o único assunto sobre o qual conversariam!)

No século 19, a idade média para uma garota começar a menstruar era 17 anos. Hoje, devido a uma alimentação melhor, a média é de 12 anos. Durante toda a sua vida, você irá menstruar entre 300 e 500 vezes, cada uma das menstruações durando entre 2 e 10 dias, separadas por períodos de 20 a 40 dias.
[...]

Fonte: Rugen, S. 2005 [1994] Coisas que toda garota deve saber. SP, Melhoramentos.

05 março 2013

Língua portuguesa


Última flor do Lácio, inculta e bela,
És, a um tempo, esplendor e sepultura:
Ouro nativo, que na ganga impura
A bruta mina entre os cascalhos vela...

Amo-te assim, desconhecida e obscura.
Tuba de alto clangor, lira singela,
Que tens o trom e o silvo da procela,
E o arrolo da saudade e da ternura!

Amo o teu viço agreste e o teu aroma
De virgens selvas e de oceano largo!
Amo-te, ó rude e doloroso idioma,

Em que da voz materna ouvi: “meu filho!”,
E em que Camões chorou, no exílio amargo,
O gênio sem ventura e o amor sem brilho!

Fonte: Bilac, O. 1985. Poesias. BH, Itatiaia. Poema publicado em livro em 1888.

03 março 2013

Relicário 74


ah vida ingrata
chovem gatos sapatos lagos
há dias
impedem minha ida à praia
remate de males
o verão desaba lerdo
dezembro natal frio como teus lábios
foi-se a namorada
fugiu com um polonês de butique
pra Petrópolis
é vislumbrar a felicidade e
levar a porrada
longo caminho da testa à terra
semana passada atolei no inferno
solidão me esganou
sem mais cartilagem todo morto
telefono pra mamãe combinamos
esquiar na Europa até março
ir a muitas boates
esquecer-te pelo menos lá tenho
Dominique Sanda que me ama

Fonte: Hollanda, H. B., org. 2001 [1976]. 26 poetas hoje, 4ª edição. RJ, Aeroplano.

01 março 2013

Vênus e Adonis


Bartholomeus Spranger (1546-1611). Venus en Adonis. 1597.

Fonte da foto: Web Gallery of Art.

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