30 junho 2007

Anotação na margem

Simon Singh

Enquanto estudava o Livro II da Aritmética, Fermat encontrou toda uma série de observações, problemas e soluções relacionados com o teorema de Pitágoras e os trios pitagóricos. Fermat ficou impressionado com a variedade e a quantidade de trios pitagóricos. Ele estava ciente de que, séculos atrás, Euclides tinha feito uma demonstração [...] provando que, de fato, existe um número infinito de trios pitagóricos. Fermat deve ter olhado para a exposição detalhada que Diofante fazia dos trios pitagóricos e pensado no que poderia acrescentar àquele assunto. Enquanto olhava para a página, ele começou a brincar com a equação de Pitágoras, tentando descobrir alguma coisa que escapara à atenção dos gregos.

Subitamente, num instante de genialidade, que imortalizaria o Príncipe dos Amadores, ele criou uma equação que, embora fosse muito semelhante à de Pitágoras, não tinha solução. Foi esta equação que Andrew Wiles, aos dez anos de idade, viu na biblioteca da rua Milton.

No lugar de considerar a equação

x
2
+ y2 = z2,

Fermat contemplava uma variante da criação de Pitágoras:

x
3
+ y3 = z3.

Conforme foi mencionado no capítulo anterior [capítulo 1], Fermat tinha apenas mudado a potência de 2 para 3, do quadrado para o cubo, mas sua nova equação aparentemente não tinha solução para qualquer número inteiro. O método de tentativa e erro logo mostra a dificuldade de encontrar dois números elevados ao cubo que, ao serem somados, produzam outro número elevado ao cubo. Poderia acontecer desta pequena modificação transformar a equação de Pitágoras, com um infinito número de soluções, em uma equação insolúvel?

[...] De acordo com Fermat parecia não existir um trio de números que se encaixasse perfeitamente na equação

xn
+ yn = zn, onde n representa 3, 4, 5...

Na margem de sua Aritmética, ao lado do Problema 8, Fermat escreveu uma nota de sua observação:

[...]
É impossível para um cubo ser escrito como a soma de dois cubos ou uma quarta potência ser escrita como uma soma de dois números elevados a quatro, ou, em geral, para qualquer número que seja elevado a uma potência maior do que dois ser escrito como a soma de duas potências semelhantes.

[...] Depois da primeira nota na margem, esboçando sua teoria, o gênio travesso colocou um comentário adicional que iria assombrar gerações de matemáticos:

[...]
Eu tenho uma demonstração realmente maravilhosa para esta proposição mas esta margem é muito estreita para contê-la.
[...]

Fonte: Singh, S. 1998. O último teorema de Fermat. RJ, Record.

29 junho 2007

Dos olhos do não

Afonso Henriques Neto

se lhes derem Kennedy ou Kruschev ou De Gaulle
não acreditem nesta única realidade
neste implacável colar de conchas de ar

se lhes derem os códigos os gestos as modas
não acreditem nesta enlatada realidade
nesta implacável aranha de invisíveis fios

se lhes derem a esperança o progresso a palavra
não acreditem na imposta realidade
na implacável engrenagem das hélices de vácuo

aprendam a olhar atrás do espelho
onde a história jamais penetra
a profunda história do não registrado
aprendam a procurar debaixo da pedra
a história do sangue evaporado
a história do anônimo desastre
aprendam a perguntar
por quem construiu a cidade
por quem cunhou o dinheiro
por quem mastigou a pólvora do canhão
para que as sílabas das leis fosses cuspidas
sobre as cabeças desses condenados ao silêncio

Fonte: Hollanda, H. B., org. 2001 [1976]. 26 poetas hoje, 4a edição. RJ, Aeroplano.

28 junho 2007

Epifania

Thereza Christina Rocque da Motta

O mar, póstumo e ferido,
que, antigo e breve,
molda meus desígnios, traz-me
essa nova terra, viva, sob os pés,
meu dizer futuro sem palavra conhecida.

Ressurjo,
um nascer esguio,
sem voz ou alento para o gracejo,
mas a escusa de outro amor negado.

Célebres, o que fazeis de vós?
Vós que servis, atentos,
a memória das águas,
o que jaz submerso e, mesmo assim,
fala?

Cinza, o pó das eras,
argamassa, fronte, terra,
coroa de louros sobre a tez
alvíssima.

Despe, pecado e culpa,
nada te retém, à míngua.

Eis o ósculo de Judas,
o peregrino, o cravo das mãos,
a hóstia e mirra.
Séculos não te explicarão.

Ergue, na floresta oscura,
as mãos sem o cálice,
bendita urdidura.

Terão a passagem, olivais ao largo,
olhos e ouvidos do rei.

Mão e espada,
uma só ferramenta.
Sobre o cenho, espinho,
sob o manto, a lavra.

Terão os homens assistido
aos dias que se passaram
desde tua epifania.
Escolherão um deles para
salvar-te e ainda
louvar-te.

Serão eles os herdeiros
de tudo, os filhos pródigos
do mundo,
hoje nesta terra arguta,
esse bólido centáurico,
nave, ave,
fulminado desterro.

Hoje o dia é ontem.
E nunca baixaremos
ao mar, desceremos
às profundezas dos rios,
à procura dos peixes
e de teu arado.

Serão todos os seres
o infinitesimal, o nada,
espalhados por toda a parte,
à espera.

Fonte: poema gentilmente enviado pela autora, a quem agradeço pela cortesia.

27 junho 2007

Pintura


Francis Bacon (1909-1992). Painting. 1946.

Fonte da foto: WebMuseum.

26 junho 2007

Desolation Row

Bob Dylan

They’re selling postcards of the hanging

They’re painting the passports brown

The beauty parlor is filled with sailors

The circus is in town

Here comes the blind commissioner

They’ve got him in a trance

One hand is tied to the tight-rope walker

The other is in his pants

And the riot squad they’re restless

They need somewhere to go

As Lady and I look out tonight

From Desolation Row


Cinderella, she seems so easy

“It takes one to know one,” she smiles

And puts her hands in her back pockets

Bette Davis style

And in comes Romeo, he’s moaning

“You Belong to Me I Believe”

And someone says, “You’re in the wrong place, my friend

You better leave”

And the only sound that’s left

After the ambulances go

Is Cinderella sweeping up

On Desolation Row


Now the moon is almost hidden

The stars are beginning to hide

The fortunetelling lady

Has even taken all her things inside

All except for Cain and Abel

And the hunchback of Notre Dame

Everybody is making love

Or else expecting rain

And the Good Samaritan, he’s dressing

He’s getting ready for the show

He’s going to the carnival tonight

On Desolation Row


Now Ophelia, she’s ’neath the window

For her I feel so afraid

On her twenty-second birthday

She already is an old maid

To her, death is quite romantic

She wears an iron vest

Her profession’s her religion

Her sin is her lifelessness

And though her eyes are fixed upon

Noah’s great rainbow

She spends her time peeking

Into Desolation Row


Einstein, disguised as Robin Hood

With his memories in a trunk

Passed this way an hour ago

With his friend, a jealous monk

He looked so immaculately frightful

As he bummed a cigarette

Then he went off sniffing drainpipes

And reciting the alphabet

Now you would not think to look at him

But he was famous long ago

For playing the electric violin

On Desolation Row


Dr. Filth, he keeps his world

Inside of a leather cup

But all his sexless patients

They’re trying to blow it up

Now his nurse, some local loser

She’s in charge of the cyanide hole

And she also keeps the cards that read

“Have Mercy on His Soul”

They all play on penny whistles

You can hear them blow

If you lean your head out far enough

From Desolation Row


Across the street they’ve nailed the curtains

They’re getting ready for the feast

The Phantom of the Opera

A perfect image of a priest

They’re spoonfeeding Casanova

To get him to feel more assured

Then they’ll kill him with self-confidence

After poisoning him with words

And the Phantom’s shouting to skinny girls

“Get Outa Here If You Don’t Know

Casanova is just being punished for going

To Desolation Row”


Now at midnight all the agents

And the superhuman crew

Come out and round up everyone

That knows more than they do

Then they bring them to the factory

Where the heart-attack machine

Is strapped across their shoulders

And then the kerosene

Is brought down from the castles

By insurance men who go

Check to see that nobody is escaping

To Desolation Row


Praise be to Nero’s Neptune

The Titanic sails at dawn

And everybody’s shouting

“Which Side Are You On?”

And Ezra Pound and T. S. Eliot

Fighting in the captain’s tower

While calypso singers laugh at them

And fishermen hold flowers

Between the windows of the sea

Where lovely mermaids flow

And nobody has to think too much

About Desolation Row


Yes, I received your letter yesterday

(About the time the door knob broke)

When you asked how I was doing

Was that some kind of joke?

All these people that you mention

Yes, I know them, they’re quite lame

I had to rearrange their faces

And give them all another name

Right now I can’t read too good

Don’t send me no more letters no

Not unless you mail them

From Desolation Row

Fontes: álbum Highway 61 revisited (1965), de Bob Dylan, e o livro A estrada revisitada (1992, Iglu Editora), de Isabel Bing.

25 junho 2007

A partida

René Goscinny

Hoje eu vou viajar para a colônia de férias e estou muito contente. A única coisa chata é que o papai e a mamãe parecem um pouco tristes: mas com certeza é porque eles não estão acostumados a ficar sozinhos nas férias.

A mamãe me ajudou a fazer a mala com as camisetas, os shorts, as alpargatas, os carrinhos, o maiô, as toalhas, a locomotiva do trenzinho elétrico, os ovos cozidos, as bananas, os sanduíches de salame e de queijo, a rede para os camarões, o pulôver de manga comprida, as meias e as bolinhas. A gente teve que fazer alguns embrulhos, é claro, porque a mala não era grande, mas deu tudo certo.

Eu estava com medo de perder o trem e depois do almoço perguntei para o papai se não era melhor a gente ir agora mesmo para a estação. Mas o papai disse que ainda era um pouco cedo, que o trem saía às 6 horas da tarde e que parecia que eu estava morrendo de vontade de deixar eles, e a mamãe foi para a cozinha com o lenço, dizendo que tinha entrado alguma coisa no olho dela.

Não sei o que é que o papai e a mamãe têm, eles parecem muito chateados. Estão tão chateados que eu nem tenho coragem de dizer que cada vez que eu penso que vou ficar quase um mês sem ver eles me dá uma bolona na garganta. Se eu dissesse isso, tenho certeza de que eles iam rir de mim e me dar uma bronca.
[...]

Fonte: Sempé & Goscinny. 1996 [1960]. As férias do pequeno Nicolau. SP, Martins Fontes.

24 junho 2007

Morri pela Beleza

Emily Dickinson

Morri pela Beleza – e em minha Cova
Eu não me sentia a gosto
Quando Alguém que morreu pela Verdade
A Cova ao lado chegou –

Ele indagou gentil por que eu viera –
E eu disse – “Pela Beleza” –
“Eu vim pela Verdade – a Mesma Coisa –
Somos irmãos” – respondeu –

E quais Parentes juntos numa Noite
Conversamos nos Jazigos –
Até que o Musgo nos chegou aos lábios
E nossos nomes cobriu –

Fonte: Dickinson, E. 2006. Alguns poemas. SP, Iluminuras. Versão deste poema foi originalmente publicada em 1890.

23 junho 2007

Elegia em forma de epístola

Albano Martins

A circunstância de sermos homem e mulher
presos por uma aliança tácita
e secreta
do sangue
é que nos prende à vida, meu amor, e nos salva.

Nascemos sem passaporte,
entre fronteiras guardadas
por sentinelas de sal e de silêncio.

O rio da história corre, estrangulado, entre as pedras,
e o cascalho, e os detritos humanos,
e a alegria suicida das coisas limpas e puras
abandonadas e soltas à vertigem da morte.

Construímos
para nossa defesa
um muro de ironia e de sarcasmo
– imponderável cortina
de humana ternura envergonhada
ou, como tu dizes, perseguida.

O silêncio é a corda
que nos prende aos mastros,
a antena vegetal por onde
a vida se insinua,
universal e atenta.

Marinheiros duma pátria
ancorada no tempo,
bebemos o sal dos minutos que passam
e adormecemos, hirtos, de costas para o mar.

Fonte: Silva, A. C. & Bueno, A., orgs. 1999. Antologia da poesia portuguesa contemporânea. RJ, Lacerda Editores. Poema originalmente publicado em 1967. Após o título, ostenta a inscrição "Para a Kay".

22 junho 2007

A morte de Acteão


Ticiano [Tiziano Vecellio] (1488?-1576). La morte di Actaeon.1562.


Fonte da foto: Wikipedia.

21 junho 2007

As águas da região amazônica

Wolfgang J. Junk

A água é um fator preponderante na paisagem amazônica. Isso pode-se dizer tanto para os majestosos rios, os quais obviamente chamam a atenção dos visitantes, quanto para os inúmeros pequenos rios e igarapés, que contribuem para a formação dos rios gigantes. A rede de igarapés na Amazônia é tão densa como em quase nenhuma região do mundo. Porém, olhando-se de perto, verifica-se que os corpos de água não são uniformes. Encontram-se diferenças consideráveis tanto em relação à morfologia de seus leitos quanto às suas características químicas e biológicas.

Os lagos que acompanham os grandes rios e que são típicos para áreas alagáveis (várzeas e igapós) faltam nas áreas não-inundáveis (terra firme), onde igarapés e pequenos rios caracterizam a paisagem.

Rios com água barrenta ocorrem tanto quanto rios com água preta ou cristalina. Enquanto alguns rios quase não têm correnteza, outros passam por corredeiras e cachoeiras. Rios ricos em nutrientes, plantas, peixes e [aves] aquáticas são tão comuns como rios pobres, onde raramente uma garça agita a tranqüilidade e monotonia da paisagem.

Para entender esta diversidade é necessário não somente descrever os aspectos biológicos das águas amazônicas mas também discutir as condições geográficas, geológicas, hidrológicas e hidroquímicas da região inteira, porque a água e a terra adjacente se influenciam mutuamente e somente em conjunto formam a paisagem amazônica tão característica.
[...]

O turista que faz um passeio de barco para ver o encontro das águas dos rios Solimões e Negro, imediatamente percebe a diferença de cor das águas de ambos os rios. O rio Negro tem sua água transparente e escura, enquanto que a água do Solimões é branca e barrenta.

Nas áreas do encontro das águas, ambos se misturam de uma maneira similar como café e leite. Por causa da coloração, as águas escuras são chamadas águas pretas, enquanto que as águas barrentas são chamadas águas brancas. Na boca do rio Tapajós encontra-se uma área de mistura semelhante, porém a água do Tapajós é transparente e esverdeada. Como [explicar] essas diferenças nítidas na coloração da água?

Água branca
Vários rios da região amazônica, como o próprio Amazonas, Purus, Madeira e Juruá, nascem na região andina e pré-andina. Os processos de erosão nos Andes são muito intensivos e a carga de sedimentos é muito alta, provocando a cor branca das águas. Em áreas de baixa correnteza, os sedimentos são depositados e a transparência da água aumenta, enquanto que em outras áreas a correnteza invade os barrancos recebendo novos materiais para carregar.
[...]

Água preta
Ao contrário dos rios de água branca, o rio Negro e outros rios de água preta (rio Urubu) não transportam material em suspensão em grandes quantidades. Rios de água preta nascem nos escudos arqueados das Guianas e do Brasil Central ou nos sedimentos terciários da bacia amazônica, que tem um relevo suave e pouco movimentado, onde os processos de erosão são pouco intensos e reduzidos ainda pela densa [floresta] pluvial. Conseqüentemente, a carga de sedimentos é baixa e os rios são transparentes.

[E]ncontram-se na sua área de captação enormes florestas inundáveis (igapós) e o material orgânico produzido pelas florestas, tais como folhas, galhos etc., cai na água e decompõe-se. Vários produtos da decomposição são solúveis e de coloração marrom ou avermelhada (ácidos húmicos e fúlvicos), provocando a cor escura da água preta.
[...]

Água clara
Os rios de água clara são transparentes e com cor esverdeada, transportando somente poucos materiais em suspensão. A análise química mostra uma heterogeneidade relativamente grande destes rios e principalmente dos igarapés com relação ao pH e à condutividade elétrica.
[...]

Em resumo, podemos constatar que se pode distinguir na grande variedade de águas amazônicas dois tipos nitidamente diferentes e com caracteres bem específicos: água branca, que é turva, rica em sais minerais dissolvidos, com alta percentagem de cálcio e magnésio, e neutra ou pouco ácida, e água preta, que é transparente, escura, pobre em sais minerais dissolvidos, com alta porcentagem de sódio e potássio e muito ácido. Além disso, existe um grande número de águas transparentes, pouco coloridas, com caráter químico variável, que necessitam de estudos adicionais para sua classificação definitiva.

Junk, W. J. 1983. As águas da região amazônica. In: Salati, E.; Shubart, H. O. R.; Junk, W. & Oliveira, A. E., orgs. Amazônia: desenvolvimento, integração e ecologia. SP & Brasília, Brasiliense & CNPq.

20 junho 2007

Vontade de dormir

Mário de Sá-Carneiro

Fios de oiro puxam por mim

A soerguer-me na poeira –

Cada um para seu fim,

Cada um para seu norte...

... ... ... ... ... ... ... ... ...

– Ai que saudades da morte...

... ... ... ... ... ... ... ... ...

Quero dormir... ancorar...

... ... ... ... ... ... ... ... ...

Arranquem-me esta grandeza!

– P’ra que me sonha a beleza

Se a não posso transmigrar?...


Fonte: Sá-Carneiro, M. 1983. Poesias. SP, Difel. Poema originalmente publicado em 1913.

19 junho 2007

Mais de nove mil visitas

F. Ponce de León

No meio do expediente de ontem, segunda-feira, o Poesia contra a guerra superou a marca das nove mil visitas. Do balanço anterior, “Oito mil visitas”, em 4/6, até o fim do expediente de domingo (17/6) ocorreram em média cerca de 68,6 visitas/dia. Ontem, coincidentemente, alcançamos também um novo recorde positivo de visitantes únicos em um só dia: 113.

18 junho 2007

Lo único que tengo

Victor Jara

Quién me iba a decir a mi,

como me iba a imaginar

si yo no tengo un lugar

en la tierra.


Y mis manos son lo único que tengo

y mis manos son mi amor y mi sustento.


No hay casa donde llegar,

mi paire y mi maire están

más lejos de este barrial

que una estrella.


Y mis manos...


Quién me iba a decir a mi

que yo me iba a enamorar

cuando no tengo un lugar

en la tierra.


Y mis manos...


Fonte: álbum Lo único que tengo (1977), do grupo Tarancón.

17 junho 2007

Rhyme and reason

Daniell Rezende

Eu não nasci pra ser poeta. Não que eu não goste de poesia. Gosto muito de Mario Quintana, por exemplo. Mas eu não nasci pra ser Mario Quintana.

É uma pena, eu sei. Não é que eu não tenha tentado. Na verdade, desde que vi “Sociedade dos poetas mortos”, na minha adolescência, eu venho tentando ser poeta.

Só não consigo.

Primeiro, porque tenho dificuldades para rima. Cresci ouvindo rimas como “Daniell cara de pastell” ou “Daniell cara de papell” (normalmente faziam assim mesmo, respeitando os dois éles). E então, traumatizei-me com rimas.

Claro que rimar, com todos esses movimentos de poesia que inventaram por aí, não é essencial.

Eu podia virar, por exemplo, um poeta beatnik. Eu seria um sujeito bastante, como se diz, cool. Mas pra isso eu ia ter que usar uma boina. E eu também tenho trauma de boina, desde quando fui um boina vermelha e vi as coisas mais horríveis do mundo na Guerra da Coréia – como a versão coreana de “A praça é nossa”.

Tentei a poesia concreta. Só fiz uma:

Poesia concreta
Poesia concre

Poesia com

Poesia

Poe

Po

Pô, aí


Não fez muito sucesso. Ninguém entendeu, esse bando de insensíveis. Nem a referência a Edgard Allan Poe, no meio, eles pescaram. Um dia talvez eu tente musicar essa poesia e aí a coisa pode dar certo – quem sabe no próximo Carnaval de Salvador.

Acho que poesia é um dom. Isso, de enxergar poesia nas pequenas coisas da vida não é pra mim. Sou míope e já quase não enxergo as pequenas coisas, que dirá a poesia nelas.

Quando eu vejo uma pedra portuguesa solta no calçadão, por exemplo, eu não vejo um espírito livre, desgarrado, solto da multidão ou coisa assim. Eu só vejo alguém tropeçando nela e se estatelando no chão. Em geral, eu mesmo. Já falei que sou míope?

Fonte: texto publicado no blogue Vida mais ou menos e republicado aqui com o devido consentimento do autor, a quem agradeço pela cortesia.

16 junho 2007

Eu e a aldeia


Marc Chagall [Moishe Zakharovich Shagalov] (1887-1985). Moi et le
village. 1911.

Fonte da foto: Malek’ Home Page.

15 junho 2007

Eu não sou, minha Nise, pegureiro

Tomás Antônio Gonzaga

Eu não sou, minha Nise, pegureiro,
que viva de guardar alheio gado;
nem sou pastor grosseiro,
dos frios gelos e do sol queimado,
que veste as pardas lãs do seu cordeiro.
Graças, ó Nise bela,
graças à minha estrela!

A Cresso não igualo no tesouro;
mas deu-me a sorte com que honrado viva.
Não cinjo coroa d’ouro;
mas povos mando, e na testa altiva
verdeja a coroa do sagrado louro.
Graças, ó Nise bela,
graças à minha estrela!

Maldito seja aquele, que só trata
de contar, escondido, a vil riqueza,
que, cego, se arrebata
em buscar nos avós a vã nobreza,
com que aos mais homens, seus iguais, abata.
Graças, ó Nise bela,
graças à minha estrela!

As fortunas, que em torno de mim vejo,
por falsos bens, que enganam, não reputo;
mas antes mais desejo:
não para me voltar soberbo em bruto,
por ver-me grande, quando a mão te beijo.
Graças, ó Nise bela,
graças à minha estrela!

Pela ninfa, que jaz vertida em louro,
o grande deus Apolo não delira?
Jove, mudado em touro
e já mudado em velha não suspira?
Seguir aos deuses nunca foi desdouro.
Graças, ó Nise bela,
graças à minha estrela!

Pretendam Anibais honrar a História,
e cinjam com a mão, de sangue cheia,
os louros da vitória;
eu revolvo os teus dons na minha idéia:
só dons que vêm do céu são minha glória.
Graças, ó Nise bela,
graças à minha estrela!

Fonte: Gonzaga, T. A. 2000. Tomás Antônio Gonzaga, 4a edição RJ, Agir. Poema originalmente publicado em 1812.

14 junho 2007

Açaí

Djavan

Solidão

De manhã

Poeira tomando assento

Rajada de vento

Som de assombração

Coração

Sangrando toda palavra sã


A paixão

Puro afã

Místico clã de sereia

Castelo de areia

Ira de tubarão

Ilusão

O Sol brilha por si


Açaí

Guardiã

Zum de besouro

Um imã

Branca é a tez da manhã


Fonte: encarte que acompanha o LP do álbum Fantasia (1981), de Gal Costa.

13 junho 2007

Pais e filhos

Christopher Lasch

A erosão da autoridade paterna e a delegação da disciplina a outras agências criaram um fosso ainda maior entre a disciplina e a afeição na família norte-americana – um resultado semelhante àquele deliberadamente criado pelo kibbutz israelense e por outras experiências de vida comunal. No kibbutz, segundo seus admiradores, a criança só vê os pais em cenários “afetivos”, ao passo que o treinamento higiênico e outras formas de disciplina são atribuídos a agências socializadas de educação infantil. Este arranjo supostamente poupa à família os conflitos que emergem quando as mesmas pessoas exercitam o amor e a disciplina. [...]

Estudos recentes sobre a juventude norte-americana mostram o quanto a prática se conforma estritamente a este ideal, ao menos superficialmente. Repetidamente, os jovens asseguram aos entrevistadores que as relações com seus pais são desprovidas de tensões, que suas famílias são “anormalmente normais” e que mesmo o frio distanciamento de seus pais não lhes provoca qualquer ressentimento. Entretanto, o aumento do suicídio entre os estudantes, da dependência de drogas e da impotência imediatamente coloca sob suspeita este quadro agradável. [...]

Na superfície, a juventude americana não parece experimentar uma grande fixação sexual por qualquer um dos pais; seus sonhos e fantasias, porém, trazem à luz sentimentos de raiva ou desejo que podem ser remetidos às primeiras fases da infância. [...]

A cultura popular manifesta a mesma cisão, tão pronunciada nas entrevistas psiquiátricas, entre imagens conflitantes da paternidade, entre a tranqüila superfície emocional da vida familiar e a raiva subjacente a ela. Filmes, quadrinhos e romances populares – particularmente os muitos romances de revolta adolescente que seguem o padrão de Catcher in the rye (O apanhador no campo de centeio), de J. D. Salinger – ridicularizam o pai “manifesto”, e a autoridade em geral, ao mesmo tempo que descrevem figuras paternas “latentes” com traços sinistros, agressivos, e caracterizadas como absolutamente inescrupulosas na perseguição que movem ao herói ou heroína. [...]

[...] Mas as coisas afinal de contas não são tão simples – mesmo em fantasias populares que não se destacam por sua complexidade emocional e profundidade moral. O mundo noturno do melodrama, do mistério, do crime e da intriga – que se alterna com a comédia de situação familiar como cenário da maior parte das obras de “entretenimento” popular – projeta na tira de quadrinhos ou na tela da televisão um mundo imaginário sombrio, onde as emoções mais profundas assomam à superfície. O melodrama policial traz à semiconsciência uma imagem paterna sinistra, enterrada mas não esquecida, sob o disfarce de um criminoso, de um “senhor do submundo” ou de um oficial de polícia que comete crimes em nome da justiça. Em The Godfather (O poderoso chefão), a identificação do pai ao chefão torna-se inconfundível; mas, de forma atenuada, ela sempre foi responsável pela excitação de que depende o thriller popular para seduzir um público de massa.
[...]

Fonte: Lasch, C. 1991 [1977]. Refúgio num mundo sem coração. RJ, Paz & Terra.

12 junho 2007

Oito meses

F. Ponce de León

Nesta terça-feira, o Poesia contra a guerra completou oito meses no ar. Ao final do expediente de ontem (11/6), o contador instalado no blogue indicava que 8.521 visitas já haviam sido registradas.

Desde o balanço mensal anterior, “Sete meses depois...”, foram cerca de 65,6 visitas/dia. Nesse período, um novo recorde positivo de visitação foi alcançado: 104 visitantes únicos, em 30/5.

Ao longo do último mês, foram publicados aqui pela primeira vez textos dos seguintes autores: Alexandre O’Neill, Chet Powers, Francisco Marques, George Gamow, H. F. Peters, Harold Bloom, Lynn Margulis, Nelson Ângelo e Paulo Mendes Campos. Além de outros que já haviam sido publicados em meses anteriores.

Cabe ainda registrar a publicação de imagens de obras dos seguintes pintores: Giorgio de Chirico, Hieronymus Bosch, Kazimir Malevich, Lucian Freud, Peter Paul Rubens e Piet Mondrian.

11 junho 2007

A flauta-vértebra

Vladímir Maiakóvski

[Prólogo]
A todas vós
que já fostes ou que sois amadas
como um ícone guardado
na gruta da alma
qual uma copa de vinho
à mesa de um banquete
ergo meu crânio repleto de versos.

Freqüentemente me indago:
talvez fosse melhor
dar à minha vida
o ponto final de um balaço.
Todavia
hoje
dou meu concerto de despedida.

Memória!
Junta na sala do cérebro as fileiras
das inumeráveis bem-amadas.
Derrama o riso em todos os olhos!
Que de passadas núpcias
a noite se paramente!
Derrama alegria em todos os corpos!
Que ninguém possa esquecer esta noite.
Hoje tocarei a flauta
de minha própria coluna vertebral.

1.
Meu passo esmaga ruas e verstas.
Que fazer, com o inferno no peito?
Que Hoffmann celestial
te pôde inventar, maldita?
Alegria tempestuosa invade as ruas.
A festa transborda de gente feliz.

Eu medito.
Os pensamentos, coágulos de sangue,
enfermos, ardendo,
porejam de meu crânio.
Eu,
criador de tudo que é festa,
não tenho com quem ir à festa.
Agora mesmo irei atirar-me
de cabeça
no empedrado da avenida Nevski.
Eis aí. Acabo de blasfemar.
Por toda a parte
andei dizendo que Deus não existe
e Deus, de tórridas profundezas,
fê-la sair,
aquela diante de quem
a montanha se perturba e treme,
e me ordenou: Ama-a!

Deus ficou contente.
No fundo do abismo
que há sob o céu
um homem atormentado
como um selvagem definha.
Deus esfrega as mãos.
A si mesmo diz:
Hás de ver, Vladímir!
E ainda, ainda lhe ocorre,
para que ninguém possa adivinhar quem és,
a invenção de te dar um verdadeiro marido
e de pôr sobre o piano música humana.
Se, de repente,
assomasse à porta de teu quarto,
faria o sinal-da-cruz sobre as cobertas –
eu sei
sentir-se-ia um cheiro de lã chamuscada,
fumaça sulfurosa da carne do diabo.

Em vez disso me vou
horrorizado
de que te tenham levado para te amar.
Entro pela madrugada
talhando gritos em versos
ourives já quase louco.
Ou então: a jogar cartas!
De vinho
encher a goela do coração resseco
de gemer.
Não me fazes falta!
Não quero!
Dá tudo no mesmo.
Sei
que me despedaço.

Se é verdade que tu existes,
Senhor,
Senhor Deus,
se és tu que teces o manto das estrelas,
se este sofrimento
cada dia maior,
se este martírio
por ti me foi enviado,
Senhor,
põe-me então as cadeias de condenado.
Aguarda minha visita.
Serei pontual.
Não me atrasarei nem um só dia.
Escuta,
Supremo Inquisidor.

Lábios cerrados,
nem um grito soltará minha boca
mordida até sangrar.
Amarra-me a um cometa,
como à cauda de um cavalo
e chicoteia!
Que meu corpo se estraçalhe
nos dentes das estrelas.
Ou então: quando minh’alma migratória
franzindo o cenho carrancudo
estiver diante de teu tribunal,
atira a Via-Láctea,
faz dela uma forca
e dependura-me se quiseres,
qual um criminoso.
Faze o que quiseres.
Preferes me esquartejar?
Eu mesmo te lavarei as mãos,
a ti que és justo.
Mas – ouves? –
afasta de mim aquela maldita,
aquela que tu fizeste minha amada!

Meu passo esmaga ruas e verstas.
Que fazer, com o inferno no peito?
Que Hoffmann celestial
te pôde inventar, maldita!

Fonte: Maiakóvski. 2006. Vida e poesia. SP, Martin Claret. O poema consta de um Prólogo e três partes e foi originalmente publicado em 1915; o trecho acima corresponde ao Prólogo mais a Parte I. Após o título, ostenta a indicação “Dedicado a Lila Brik”.

10 junho 2007

Suprematismo


Kazimir Malevich (1878-1935). Suprematism (Supremus #58). 1916.

Fonte da foto: Olga’s Gallery.

09 junho 2007

O talho

F. Ponce de León

Pesada e sonolenta
lâmina de aço
cai afiada
sobre o dedo
menor da mão esquerda.

É quando cicatriz quase-
esquecida rompe-se
por inteiro
fazendo o sangue
vivo jorrar em profusão.

Levanto, levando comigo
o talho. Vou atrás
de água fria
e toalhas limpas
que possam abraçar a dor.

08 junho 2007

For no one

Paul McCartney

Your day breaks, your mind aches

You find that all the words of kindness linger on

When she no longer needs you


She wakes up, she makes up

She takes her time and doesn’t feel she has to hurry

She no longer needs you


And in her eyes you see nothing

No sign of love behind the tears

Cried for no one

A love that should have lasted years!


You want her, you need her

And yet you don’t believe her when she said her love is dead

You think she needs you


And in her eyes…


You stay home, she goes out

She says that long ago she knew someone but now he’s gone

She doesn’t need him


Your day breaks, your mind aches

There will be time when all the things she said will fil your head

You won’t forget her


And in her eyes…


Fonte: álbum Revolver (1966), dos Beatles.

07 junho 2007

Lou

H. F. Peters

Em 1937 morreu na cidade universitária alemã de Göttingen uma mulher notável. Tinha 76 anos e era viúva do professor Andreas, sendo porém muito mais conhecida pelo nome de solteira: Lou Salomé. A casa onde morreu está precariamente empoleirada nas íngremes encostas do Hainberg, a cavaleiro da cidade. Da sacada de seu gabinete de trabalho, Lou tinha uma vista magnífica do amplo vale do rio Leine, lá [embaixo], e dos montes cobertos de bosques que se estendiam pelos horizontes ocidental e meridional. Por mais de 30 anos, ela compartilhara essa casa – mas não o leito conjugal – com o marido, e por mais de 30 anos olhou lá de cima para Göttingen – “famosa pela sua universidade e suas salsichas” – com cordial indiferença. Ressentidos com a distância em que ela se mantinha, e sem saber o que pensar de uma esposa de professor que não participava da vida social da cidade ou da universidade, os bons burgueses de Göttingen espalharam todos os tipos de boatos a respeito dela. Suas mulheres, sabendo que quando mais jovem Lou freqüentemente viajava em companhia de outros homens que não seu marido, chamaram-na “a Feiticeira de Hainberg”.

Não se incomodaram muito, e provavelmente também não se surpreenderam muito, quando, poucos dias após a morte de Lou, um caminhão da polícia, supervisionado por um oficial da Gestapo, subiu ruidosamente a Hersberger Landstrasse, parou em frente à casa recentemente desocupada e carregou toda a biblioteca de Lou, jogando-a no porão da Prefeitura. A feiticeira estava morta, mas a caça às feiticeiras havia começado.
[...]

Lou foi escritora. Seus livros sobre Nietzsche e Ibsen, seus romances, contos e ensaios deram-lhe fama. Na década de 1890, seu nome surgia ao lado de escritoras alemães bem-conhecidas, como Ricarda Huch e Marie von Ebner-Eschenbach. Mas nunca considerou a literatura como seu modo principal de expressão. Queria “descobrir a força íntima que domina o universo e dirige seu curso”, queria conhecê-la, experimentá-la, vivê-la.

Gostava da companhia de homens brilhantes e tinha um instinto infalível para descobri-los. Conheceu Wagner e Tolstoi, Buber e Hauptmann, Strindberg e Wederkind, Rilke e Freud. Seus detratores dizam que colecionava homens famosos como outros colecionavam quadros, para pendurá-los numa galeria particular. Mas como esses detratores eram, em sua maioria, mulheres que a temiam como rival, a crítica talvez fosse injusta. A maior parte das amizades de Lou teve como base a atração mútua, pois, além de ser uma mulher muito inteligente, era muito bela também. [...] Como disse um de seus admiradores: “Quando Lou se apaixona por um homem, nove meses depois ele dá à luz um livro”.
[...]

Fonte: Peters, H. F. 1986 [1962]. Lou: minha irmã, minha esposa. RJ, Jorge Zahar.

06 junho 2007

Olhar

Ferreira Gullar

o que eu vejo
me atravessa
como ao ar
a ave

o que eu vejo passa
através de mim
quase fica
atrás de mim

o que eu vejo
– a montanha por exemplo
banhada de sol –
me ocupa
e sou então apenas
essa rude pedra iluminada
ou quase
se não fora
saber que a vejo.

Fonte: Gullar, F. 1991 [1980]. Toda poesia, 5a edição. RJ, José Olympio.

05 junho 2007

Natureza morta com pote de gengibre


Piet Mondrian [Pieter Cornelis Mondriaan] (1872-1944). Still life with ginger pot I. 1911.

Fonte da foto: Guggenheim Museum.

04 junho 2007

Oito mil visitas

F. Ponce de León

Na manhã desta segunda-feira, 4/6, o Poesia contra a guerra superou a marca das oito mil visitas. Do balanço anterior, “Mais de sete mil visitas”, em 21/5, até o fim do expediente de ontem (3/6) ocorreram em média cerca de 70,5 visitas/dia. Temos agora também um novo recorde positivo de visitantes únicos em um só dia: 104, registrado em 30/5.

03 junho 2007

O avião e a borboleta

Francisco Marques

– O meu vôo
é simples direção.
Ao decolar
já sei de cor
onde pousar.
Abraco a terra
e beijo o ar.

– O meu vôo
é simples voar.
Só sei de cor
borboletar.
Beijo a terra
e abraço o ar.

Fonte: edição No. 172 (setembro de 2006) da revista Ciência Hoje das Crianças.

02 junho 2007

Os domingos de Lisboa

Alexandre O’Neill

Os domingos de Lisboa são domingos
Terríveis de passar – e eu que o diga!
De manhã vais à missa a S. Domingos
E à tarde apanhamos alguns pingos
De chuva ou coçamos a barriga.

As palavras cruzadas, o cinema ou a apa,
E o dia fecha-se com um último arroto.
Mais uma hora ou duas e a noite está
Passada, e agarrada a mim como uma lapa,
Tu levas-me p’ra a cama, onde chego já morto.

E então começam as tuas exigências, as piores!
Quer’s por força que eu siga os teus caprichos!
Que diabo! Nem de nós mesmos seremos já senhores?
Estaremos como o ouro nas casas de penhores
Ou no Jardim Zoológico, irracionais, os bichos?
... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ...
... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ...
Mas serás tu a minha “querida esposa”,
Aquela que se me ofereceu menina?
Oh! Guarda os teus beijos de aranha venenosa!
Fecha-me esse olho branco que me goza
E deixa-me sonhar como um prédio em ruína!...

Fonte: Silva, A. C. & Bueno, A., orgs. 1999. Antologia da poesia portuguesa contemporânea. RJ, Lacerda Editores. Poema originalmente publicado em 1958.

01 junho 2007

Fábula de um arquiteto

João Cabral de Melo Neto

A arquitetura como construir portas,
de abrir; ou como construir o aberto;
construir, não como ilhar e prender,
nem construir como fechar secretos;
construir portas abertas, em portas;
casas exclusivamente portas e teto.

O arquiteto: o que abre para o homem
(tudo se sanearia desde casas abertas)
portas por-onde, jamais portas-contra;
por onde, livres: ar luz razão certa.

2.
Até que, tantos livres o amedrontando,
renegou dar a viver no claro e aberto.
Onde vãos de abrir, ele foi amurando
opacos de fechar; onde vidro, concreto;
até refechar o homem: na capela útero,
com confortos de matriz, outra vez feto.

Fonte: Melo Neto, J. C. 1994. Obra completa: volume único. RJ, Nova Aguilar. Poema originalmente publicado em 1966.

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