28 fevereiro 2012

A patologia do tédio

Woodburn Heron

Se agitarmos a superfície em que repousa um caracol, ele recuará para dentro da concha. Mas se agitarmos repetidamente, o caracol, dentro em pouco, pára de reagir. Da mesma forma, uma anêmona-do-mar, que se perturba por uma gota que cai na superfície da água onde ela está, já não se perturba se as gotas continuam a cair; [uma ave] pára de se afastar de um movimento que o assusta se o movimento se repete constantemente. A maioria dos organismos pára de responder a estímulos repetidos muitas vezes (a menos que a resposta seja reforçada por recompensa ou por evitar a punição). De fato, os organismo superiores evitam, de modo ativo, um ambiente completamente monótono. Um rato, num labirinto que ofereça diferentes caminhos para chegar à comida, variará sua escolha ao invés de usar os mesmos caminhos todas as vezes. Ele apresentará uma tendência a evitar as áreas em que esteve muito tempo e a explorar as menos familiares.

A monotonia é um problema humano importante e permanente. Pessoas que são forçadas a trabalhar por longos períodos em tarefas repetidas lamentam-se freqüentemente de [estar] aborrecidas e descontentes com seus empregos e, não raro, seu desempenho declina. [...]

Fonte: Heron, W. 1977. A patologia do tédio. In: Scientific American, Psicobiologia: as bases biológicas do comportamento. RJ, LTC. Artigo originalmente publicado em 1953.

26 fevereiro 2012

Jesus sertanejo

Janduhy Finizola

Jesus
Meu Jesus sertanejo
Presença maior, minha crença
Nestas terras sem ninguém

Silêncio
Na serra, nos campos
Ai desencanto que a gente tem
E o vento que sopra, ressoa
Ai sequidão que traz desolação

Ô Jesus razão
Tão sertanejo
Que entende até de precisão

De sol vou sofrer ou morrer
E as pedras resplandecem
A dureza, a pobreza desse chão
João, um menino, um destino
Ai nordestino, de arribação
Cenário de dor e de calvário
Ai muda a face desta povoação

Do céu há de vir solução
Na terra, a semente agoniza
Preconiza solidão
E a terra que arde, acompanha
Ai tanta sanha de maldição
Aqui vou ficar, vou rezar
Ai vou amar a minha geração

Ô Jesus razão
[...]

Fonte: álbum Missa do vaqueiro (1976), do Quinteto Violado.

24 fevereiro 2012

A morte, o espaço, a eternidade


De morte natural nunca ninguém morreu.
Não foi para morrer que nós nascemos,
não foi só para a morte que dos tempos
chega até nós esse murmúrio cavo,
inconsolado, uivante, estertorado,
desde que anfíbios viemos a uma praia
e quadrumanos nos erguemos. Não.
Não foi para morrermos que falámos,
que descobrimos a ternura e o fogo,
e a pintura, a escrita, a doce música.
Não foi para morrer que nós sonhámos
ser imortais, ter alma, reviver,
ou que sonhámos deuses que por nós
fossem mais imortais que sonharíamos.
Não foi. Quando aceitamos como natural,
dentro da ordem das coisas ou dos anjos,
o inominável fim da nossa carne; quando
ante ele nos curvamos como se ele fora
inescapável fome de infinito; quando
vontade o imaginamos de outros deuses
que são rostos de um só; quando que a dor
é um erro humano a que na dor nos damos
porque de nós se perde algo nos outros, vamos
traindo esta ascensão, esta vitória, isto
que é ser-se humano, passo a passo, mais.

A morte é natural na natureza. Mas
nós somos o que nega a natureza. Somos
esse negar da espécie, esse negar do que
nos liga ainda ao Sol, à terra, às águas.
Para emergir nascemos. Contra tudo e além
de quanto seja o ser-se sempre o mesmo
que nasce e morre, nasce e morre, acaba
como uma espécie extinta de outras eras.
Para emergirmos livres foi que a morte
nos deu um medo que é nosso destino.
Tudo se fez para escapar-lhe, tudo
se imaginou para iludi-la, tudo
até coragem, desapego, amor,
tudo para que a morte fosse natural.

Não é. Como, se o fôra, há tantos milhões de anos
a conhecemos, a sofremos, a vivemos,
e mesmo assassinando a não queremos?
Como nunca ninguém a recebeu
senão cansado de viver? Como a ninguém
sequer é concebível para quem lhe seja
um ente amado, um ser diverso, um corpo
que mais amamos que a nós próprios? Como
será que os animais, junto de nós,
a mostram na amargura de um olhar
que lânguido esmorece rebelado?

E desde sempre se morreu. Que prova?
Morrem os astros, porque acabam. Morre
tudo o que acaba, diz-se. Mas que prova?
Só prova que se morre de universo pouco,
do pouco de universo conquistado.

Não há limites para a Vida. Não
aquela que de um salto se formou
lá onde um dia alguns cristais comeram;
nem bem aquela que, animal e planta,
foi sendo pelo mundo este morrer constante
de vidas que outras vidas alimentam
para que novas vidas surjam que
como primárias células se absorvam.
A Vida Humana, sim, a respirada,
suada, segregada, circulada,
a que é excremento e sangue, a que é semente
e é gozo e é dor e pele que palpita
ligeiramente fria sob ardentes dedos.
Não há limites para ela. É uma injustiça
que sempre se morresse, quando agora
de tanto que matava se não morre.
É o pouco de universo a que se agarram,
para morrer, os que possuem tudo.
O pouco que não basta e que nos mata,
quando como ele a Vida não se amplia,
e é como a pel’ do onagro, que se encolhe,
retráctil e submissa, conformada.
É uma injustiça a morte. É cobardia
que alguém a aceite resignadamente.
O estado natural é complacência eterna,
é uma traição ao medo por que somos,
áquilo que nos cabe: ser o espírito
sempre mais vasto do Universo infindo.

O Sol, a Via Láctea, as Nebulosas,
teremos e veremos, até que
a Vida seja de imortais que somos
no instante em que da morte nos soltamos.
A Morte é deste mundo em que o pecado,
a queda, a falta originária, o mal
é aceitar seja o que for, rendidos.

E Deus não quer que nós, nenhum de nós,
nenhum aceite nada. Ele espera,
como um juiz na meta da corrida,
torcendo as mãos de desespero e angústia,
porque nada pode fazer nada e vê
que os corredores desistem, se acomodam,
ou vão tombar exaustos no caminho.
De nós se acresce ele mesmo que será
o espírito que formos, o saber e a força.
Não é nos braços dele que repousamos,
mas ele se encontrará nos nossos braços
quando chegarmos mais além do que ele.
Não nos aguarda – a mim, a ti, a quem amaste,
a quem te amou, a quem te deu o ser –
não nos aguarda, não. Por cada morte
a que nos entregamos el’ se vê roubado,
roído pelos ratos do demónio,
o homem natural que aceita a morte,
a natureza que de morte é feita.

Quando a hora chegar em que já tudo
na terra foi humano – carne e sangue –,
não haverá quem sopre nas trombetas
clamando o globo a um corpo só, informe,
um só desejo, um só amor, um sexo.
Fechados sobre a terra, ela nos sendo
e sendo ela nós todos, a ressurreição
é morte desse Deus que nos espera
para espírito seu e carne do Universo.
Para emergir nascemos. O pavor nos traça,
este destino claramente visto:
podem os mundos acabar, que a Vida,
voando nos espaços, outros mundos,
há-de encontrar em que se continue.
E, quando o infinito não mais fosse,
e o encontro houvesse de um limite dele,
a Vida com seus punhos levá-lo-á na frente,
para que em Espaço caiba a Eternidade.

Fonte: Silva, A. C. & Bueno, A., orgs. 1999. Antologia da poesia portuguesa contemporânea. RJ, Lacerda Editores. Poema publicado em livro em 1963.

22 fevereiro 2012

Fazendo a barba

Luiz Vilela

O barbeiro acabou de ajeitar a toalha ao redor do pescoço. Encostou a mão:

– Ele está quente ainda...

– Que hora que foi? – perguntou o rapazinho.

O barbeiro não respondeu. Na camisa semi-aberta do morto alguns pêlos grisalhos apareciam. O rapazinho observava atentamente. Então o barbeiro olhou para ele.

– Que hora que ele morreu? – o rapazinho tornou a perguntar.

– De madrugada – disse o barbeiro –; ele morreu de madrugada.

Estendeu a mão:

– O pincel e o creme.

O rapazinho pegou rápido o pincel e o creme na valise de couro sobre a mezinha. Depois pegou a jarra de água que havia trazido ao entrarem no quarto: derramou um pouco na vasilhinha do creme e mexeu até fazer espuma. Era sempre rápido no serviço, mas àquela hora sua rapidez parecia acompanhada de algum nervosismo – o pincel acabou escapulindo de sua mão e foi bater na perna do barbeiro, que estava sentado junto à cama. Ele pediu desculpas, muito sem-graça e mais descontrolado ainda.

– Não foi nada – disse o barbeiro, limpando a mancha de espuma na calça –; isso acontece...

O rapaz, depois de catar o pincel, mexeu mais um pouco e então entregou ao barbeiro, que ainda deu uma mexida. Antes de começar o serviço olhou para o rapaz:

– Você acharia melhor esperar lá fora? – perguntou, de um modo educado.

– Não, senhor.

– A morte não é um espetáculo agradável para os jovens. Aliás, para ninguém.

Começou a pincelar o rosto do morto. A barba, de uns quatro dias, estava cerrada.

Através da porta fechada vinha o murmúrio abafado de vozes rezando um terço. Lá fora o céu ia acabando de clarear; um ar fresco entrava pela janela aberta do quarto.

O barbeiro devolveu o pincel e a vasilhinha; o rapaz já estava com a navalha na mão e o afiador. Pôs a vasilhinha com o pincel na mesa.

O barbeiro afiava a navalha. No salão era conhecido seu estilo de afiar, acompanhando trechos alegres da música clássica que ele ia assobiando. Ali no quarto, ao lado de um morto, afiava num ritmo diferente, mais espaçado e lento; alguém poderia quase deduzir que em sua cabeça o barbeiro assobiava uma marcha fúnebre.

– É tão esquisito – disse o rapazinho.

– Esquisito? – o barbeiro parou de afiar.

– A gente fazer a barba dele...

O barbeiro olhou para o morto:

– Que que não é esquisito? – disse. – Ele, nós, a morte, a vida; que que não é esquisito?

Começou a barbear. Firmava a cabeça do morto com a mão esquerda e com a direita ia raspando.

– Deus me ajude a morrer com a barba feita – disse o rapazinho, que já tinha alguma barba. – Assim eles não têm de fazer ela depois de eu morto. É tão esquisito...

O barbeiro se interrompeu, afastou a cabeça e olhou de novo para o rosto do morto: mas não tinha nada a ver com a observação do rapaz, estava apenas olhando como ia seu trabalho.

– Será que ele está vendo a gente de algum lugar? – perguntou o rapazinho.

Olhou para o alto – o teto ainda de luz acesa – como se a alma do morto estivesse por ali observando-os; não viu nada, mas sentia como se ela estivesse por ali.

A navalha ia agora limpando debaixo do queixo. O rapazinho observava o rosto do morto, seus olhos fechados, a boca, a cor pálida: sem a barba, ele agora parecia mais morto.

– Por que a gente morre? – perguntou. – Por que a gente tem que morrer?

O barbeiro não disse nada. Tinha acabado de barbear. Limpou a navalha e fechou-a, deixando na beirada da cama.

– Me dá a outra toalha – pediu –; e molhe o paninho.

O rapaz molhou o paninho na jarra; apertou para escorrer. Entregou ao barbeiro, junto com a toalha.

O barbeiro foi limpando e enxugando cuidadosamente o rosto do morto. Com a ponta do pano tirou um pouco de espuma que tinha entrado no ouvido.

– Por que será que a gente não acostuma com a morte? – perguntou o rapazinho. – A gente não tem que morrer um dia? Todo mundo não morre? Então por que a gente não acostuma?

O barbeiro fixou-o um segundo:

– É – disse, e se voltou para o morto; começou a fazer o bigode.

– Não é esquisito? – perguntou o rapazinho. – Eu não entendo.

– Há muita coisa que a gente não entende – disse o barbeiro.

Estendeu a mão:

– A tesourinha.

Na casa o movimento e o barulho de vozes pareciam aumentar; de vez em quando um choro. O rapazinho pensou alegre que já estavam quase acabando e que dentro de mais alguns minutos ele estaria lá fora, na rua, caminhando no ar fresco da manhã.

– O pente – disse o barbeiro –; pode ir guardando as coisas.

Quando acabou de pentear, o barbeiro se ergueu da cadeira e contemplou o rosto do morto.

– A tesourinha de novo – pediu.

O rapaz tornou a abrir a valise e a pegar a tesourinha. O barbeiro se curvou e cortou a pontinha de um fio de cabelo do bigode.

Os dois ficaram olhando.

– A morte é uma coisa muito estranha – disse o barbeiro.

Lá fora o sol já iluminava a cidade, que ia se movimentando para mais um dia de trabalho: lojas abrindo, estudantes andando para a escola, carros passando.

Os dois caminharam um bom tempo em silêncio; até que, à porta de um boteco, o barbeiro parou:

– Vamos tomar uma pinguinha?

O rapaz olhou meio sem jeito para ele; só bebia escondido, não sabia o que responder.

– Uma pinguinha é bom para retemperar os nervos – disse o barbeiro, olhando-o com um sorriso bondoso.

– Bem... – disse o rapaz.

O barbeiro pôs a mão em seu ombro e os dois entraram no boteco.

Fonte: Mello, M. A., org. 2003. Nossas palavras. RJ, José Olympio. Conto publicado em livro em 1973.

20 fevereiro 2012

Amor caridoso


Walter Gay (1856-1937). Charity. 1889.

Fonte da foto: Wikipedia.

18 fevereiro 2012

Renúncia

Patricia Morgan

Me mantive branca,
Me mantive estática;
No entanto uma chama
De paixão estranha
Ardeu dentro de mim.
Mas ele não soube,
Nem saberá nunca,
Tudo que senti...

Vi mundos nublados,
Me aromei de nardos,
Me tremia o peito...
E em meu porte erguido,
Me mantive estática,
Minha emoção foi pálida...
Já passou o momento,
Foi-se a tempestade.

Não saberá ele
Que senti seus lábios
Beijar minha carne;
Que ao fitar nos seus,
Meus olhos profundos,
Entreguei minh’alma;
Que tremi de anelos,
Juntando nas minhas
As suas mãos cálidas.

Mas passou o momento
Como tudo passa,
E entre labaredas
Desse fogo imenso
Me mantive estática,
Me mantive branca.

Tu sábio e grandioso
Senhor do Universo,
Tu sim, é que o sabes;
Te entrego este grave
Instante que redime
Meus pecados todos;
Guarda o meu segredo,
Que ele nunca saiba
Isto que tu sabes.

Fonte: Bandeira, M. 2007. Estrela da vida inteira. RJ, Nova Fronteira.

16 fevereiro 2012

A blusa amarela

Vladimir Maiakóvski

Do veludo de minha voz
Umas calças pretas mandarei fazer.
Farei uma blusa amarela
De três metros de entardecer.
E numa Nevski mundial com passo pachola
Todo dia irei flanar qual D. Juan frajola.

Deixai a terra gritar amolengada de sono:
“Vais violar as primaveras verdejantes!”
Rio-me, petulante, e desafio o sol!
“Gosto de me pavonear pelo asfalto brilhante!”

Talvez seja porque o céu está tão celestial!
E a terra engalanada tornou-me minha amante
Que lhes ofereço versos alegres como um carnaval
Agudos e necessários como um estilete pros dentes.

Mulheres que amais minha carcaça gigante
E tu, que fraternalmente me olhas, donzela.
Atirai vossos sorrisos ao poeta
Que, como flores, eu os coserei
À minha blusa amarela!

Fonte: Maiakóvski. 2006. Vida e poesia. SP, Martin Claret. Poema publicado em 1913.

12 fevereiro 2012

Cinco anos e quatro meses no ar

F. Ponce de León

Neste domingo, 12/2, o Poesia contra a guerra completa cinco anos e quatro meses no ar. Ao fim do expediente de ontem, o contador instalado no blogue indicava que 158.871 visitas foram registradas ao longo desse período.

Desde o balanço mensal anterior – Cinco anos e três meses no ar – foram aqui publicados textos dos seguintes autores: B. Lopes, James F. Crow, João Magueijo, John Todd, Paulo Bentes, Paulo Netho, Regina de Alencar, William Wordsworth e Yao Feng. Além de alguns outros que já haviam sido publicados em meses anteriores.

Cabe ainda registrar a publicação de imagens de obras dos seguintes pintores: Alexandre Cabanel, Maurice Prendergast e Thomas Pollock Anshutz.

10 fevereiro 2012

Lida diária


Thomas Pollock Anshutz (1851-1912). The way they live. 1879.

08 fevereiro 2012

Retirada, esconsa e morta

B. Lopes

Retirada, esconsa e morta
a casa de minha prima;
floresce de baixo a cima
o jasmineiro da porta.

Mas os canários exorta
o viço de um pé de lima,
que, de pesado, se arrima
aos moirões secos da horta.

De tarde cose à janela
para, às horas do costume,
ver-me apontar na cancela...

Guarda-me figos, ameixas;
e, trescalando a perfume,
o bogari das madeixas.

Fonte: Martins, W. 1978. História da inteligência brasileira, vol. 4. SP, Cultrix & Edusp. Poema publicado em livro em 1881. ‘B. Lopes’ é assinatura literária de Bernardino Lopes.

06 fevereiro 2012

Caracteres importantes ou triviais

James F. Crow

Alguns genes afetam caracteres mínimos. Existem genes em Drosophila que afetam levemente a forma de algumas cerdas ou modificam o número de pêlos na asa. No outro extremo existem genes que causam patologias graves como o nanismo, debilidade mental e pele escamosa. Em plantas, a falha de determinados genes em agir apropriadamente pode interromper todo o processo fotossintético, a reação básica da qual depende toda a vida. Existem determinados genes que são essenciais à vida. Quando genes desse tipo estão faltando ou são substituídos por um mutante, o animal ou planta é incapaz de sobreviver. Mutantes desse tipo formam a grande classe dos genes letais. Entre esses extremos está toda a gama de genes que os geneticistas estudam; genes que afetam a cor dos cabelos, cor da pele, inteligência, produção agrícola, fertilidade e crescimento em animais domésticos. Antes que um gene possa ser estudado efetivamente por um geneticista (1) o gene deve existir em duas ou mais formas, (2) seu efeito de algum modo deve ser observável.
[...]

Fonte: Crow, J. F. 1978. Fundamentos de genética. RJ, LTC.

04 fevereiro 2012

Passou o outono


Passou o outono já, já torna o frio...
– Outono de seu riso magoado.
Álgido inverno! Oblíquo o sol, gelado...
– O sol, e as águas límpidas do rio.

Águas claras do rio! Águas do rio,
Fugindo sob o meu olhar cansado,
Para onde me levais meu vão cuidado?
Aonde vais, meu coração vazio?

Ficai, cabelos dela, flutuando,
E, debaixo das águas fugidias,
Os seus olhos abertos e cismando...

Onde ides a correr, melancolias?
– E, refractadas, longamente ondeando,
As suas mãos translúcidas e frias...

Fonte: Figueiredo, C. 2004. 100 poemas essenciais da língua portuguesa. BH, Editora Leitura. Poema publicado em livro em 1920, com a dedicatória “A Abel Aníbal de Azevedo”.

02 fevereiro 2012

Uma categoria econômica baseada na ecologia

John Todd

Estive com E. F. Schumacher pouco antes de sua morte, num oportuno congresso de tecnologia na ilha indonésia de Bali. Embora conhecesse Fritz havia vários anos, a mais carinhosa recordação que tenho dele é de uma viagem juntos pelo interior de Bali. Estávamos então visitando um projeto internacional de desenvolvimento que incluía uma moderna instalação de cultura de peixes. Ao contrário das outras culturas de alimentos da ilha, esta piscicultura experimental parecia alienígena, com suas cercas, seus lagos retangulares e sua separação das áreas de agricultura e das aldeias. À semelhança de uma prisão, do tipo que conhecemos, ficava separada da malha comum da cultura balinesa.

Mais tarde, naquele mesmo dia, fomos visitar um templo. A água, as árvores, a arquitetura e os jardins expressavam uma profunda harmonia e uma sensação que me parece como uma fusão entre a mente, a natureza e tudo o que é sagrado. Enquanto o sol se punha, Fritz falou sobre como as árvores eram os mais poderosos dos instrumentos de transformação e que plantá-las e cuidar delas era um ato fundamental. Em sua opinião, as árvores eram o ponto de partida para se criar igualdade social e biológica entre os povos e as regiões da Terra.
[...]

Fonte: Todd, J. 2000 [1987]. Uma categoria econômica baseada na ecologia. In: W. I. Thompson, org. Gaia: uma teoria do conhecimento, 2ª edição. SP, Gaia.

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