29 abril 2010

Elogio do desenho

Diogo Alcoforado

1.
Apenas o mover-se desafia
outro impulso, – a mobilidade
dos músculos contrácteis onde há-de
abrir-se a imagem que devia

ao tempo cada corpo: doação
ou gesto que em si se silencia.
Que medo ou que dor, – ou só: que via
desdobra a passagem dessa mão

por sobre a folha lisa? Turbação
tornando-se rigor? ou alegria,
ou forma de serena gravidade

no centro desmedido de tal chão?
E um rasto imenso já se guia:
transparente, na luz que o invade.

2.
Deslumbra-se a parte que merece
o deslumbramento: a mão correndo
entre folhas suspensas quase sendo
presente que o corpo estremece

no selo de seu termo. Evidência:
de súbito silêncio, de frágil
equilíbrio instante sobre ágil
caudal. Que intervalo, ou cadência,

de um fulgor sereno se desprende?
indizível, sucede-se mais lento
o trânsito: imagem do sossego

ou passo paralelo que o fende.
Espanto é então outro alento:
o modo (deslumbrado) do apego.

Fonte: Silva, A. C. & Bueno, A., orgs. 1999. Antologia da poesia portuguesa contemporânea. RJ, Lacerda Editores. Poema originalmente publicado em 1988.

27 abril 2010

A produção mundial de alimentos

Edward J. Kormondy & Daniel E. Brown

A taxa atual de crescimento da produção agrícola em muitos países desenvolvidos é de cerca de 2% ao ano; para atender às necessidades das populações com taxas de crescimento moderadas de aproximadamente 2% ao ano, a produção agrícola deve crescer de 3 a 4,5% (Wortman, 1980). É óbvio que a produção agrícola deve crescer consideravelmente mais para aquelas populações com taxas de crescimento maiores. De acordo com Crosson e Rosenberg (1989), a produção mundial de alimentos está crescendo mais rápido que a população, uma descoberta que faria com que Malthus se chacoalhasse em sua cova. Na década de 1960, a produção de cereais cresceu anualmente 3,7%, enquanto a população crescia 2%; na década de 1970, os crescimentos respectivos foram 2,5% e 1,8%; na década de 1980, 2,1% e 1,6%. Se a disponibilidade de comida crescer sob a última taxa, haverá alimento suficiente para uma população mundial estável de 10 bilhões em 100 anos.


Fonte: Kormondy, E. J. & Brown, D. E. 2002 [1999]. Ecologia humana. SP, Atheneu.

25 abril 2010

Canções do jardineiro

Eugenio Florit

1.
Tu, jardineiro, tens
Com tua terra, teu Céu.

Empresta-me teu Céu
Com tua terra um momento, jardineiro.

2.
Que se não vá. Entre as mãos
A conservas, segura;
E está junto de ti,
E voando no ar, segura.

3.
Longe, dói-nos dentro da alma
Pelo sangue que em rios bebe.
Mas aqui, quando bebe a água,
Que tímida nos parece.

4.
Ninguém contigo. Mas tudo
Na terra contigo, jardineiro.

5.
E se nus nos pariu, que muito
É que nus nos receba?
A essa mãe não lhe doemos,
Nem ela a nós nos dói, viva.

6.
Com ela este som do silêncio
Se percebe tão claro...
E como dela sai o vôo
Rumoroso da árvore.

7.
Na perfeita soledade,
Que carícias nos dá a terra
Quando a vamos semear.

8.
A ferida, pelo sangue;
Pelo fulgor, a estrela;
Pela lágrima, o luto;
E pela flor, a terra.

9.
Quando lhe queremos dá
Seu amor apaixonado
E põe a alma com sua flor
Na carícia que lhe damos.

10.
Filho, já vês como a terra
Cada pranto que recebe
O devolve na flor nova.

Fonte: Bandeira, M. 2007. Estrela da vida inteira. RJ, Nova Fronteira.

23 abril 2010

Vaso de rosas


Henri Fantin-Latour (1836-1904). Vase de roses. 1875.

Fonte da foto: Wikipedia.

21 abril 2010

Introito

Neide Archanjo

Neste mezzo del camin
carrego comigo obras e cânticos
alguns alheios outros próprios
coisas que escolhi.
Entre vogais e vocábulos
componho a biografia
construção sonora de rostos
reflexos sentimentos
tão grandes tão grandes
uns rindo como gralhas
outros mansos
todos não perdidos
pressentida romã entreaberta
assim esta memória existe.
Vou como o discípulo
de um velho pintor chinês
que curvado sob o peso de pincéis
potes de laca
rolos de seda e de papel arroz
sonhava carregar montanhas rios
falcões reais
e se assim sonhava
certamente assim o fazia.

Fonte: Félix, M., org. 1998. 41 poetas do Rio. RJ, Funarte. Poema publicado em livro em 1994.

19 abril 2010

De profundis

Georg Trakl

Há um restolhal, em que cai chuva negra.
Há uma árvore castanha, que ali se ergue solitária.
Há um vento sibilante, que rodeia cabanas vazias –
Que triste este anoitecer.

Passando pela aldeola
A órfã suave colhe ainda espigas escassas.
Seus olhos pascem redondos e áureos no crepúsculo
E o seu ceio espera o noivo celestial.

Ao regressar a casa
Acharam os pastores o doce corpo
Apodrecido no espinheiro.

Sou uma sombra longe de aldeias escuras.
A mudez de Deus
Bebi-a eu no poço do bosque.

Na minha testa calca metal frio.
Aranhas buscam o meu coração.
Há uma luz, que se apaga na minha boca.

De noite encontrei-me numa charneca,
Repleta de imundície e de pó das estrelas.
Na avelaneira
Soavam de novo anjos de cristal.

Fonte: Quintela, P. 1998. Obras completas, vol. 3. Lisboa, Calouste Gulbenkian. Poema publicado em livro em 1913.

17 abril 2010

A ponte de Brooklyn

Vladimir Maiakóvski

Solta,
Coolidge,
um grito alegre.
Para o que é bom
não mesquinharei palavras.
Com os elogios
podes ficar rubro
como a bandeira de nosso continente,
embora não sejas senão
United States of America.
Como à igreja vai
o fervoroso crente,
como, simples e severo,
entra o monge na cela,
assim eu,
entre as sombras cinzentas do crepúsculo,
humildemente entro
na ponte de Brooklyn.
Como numa cidade,
entre nuvens de pó,
penetra o vencedor,
atrás de seus canhões
compridos como girafas –
assim eu, cheio de orgulho,
famélico de vida,
subo orgulhoso
pela ponte de Brooklyn.
Como o embevecido pintor
crava a vista,
enamorada e aguda,
na Madona do museu,
assim eu,
debaixo do céu
semeado de estrelas,
contemplo Nova York
através da ponte de Brooklyn.
Nova York,
calorenta e pesada
ao cair da noite,
esqueceu seus pesares
e seus muitos andares
e somente
as almas das casas
aparecem
na clara transparência das janelas.
Até aqui
mal chega
o zumbido dos elevadores,
apenas um doce rumor
revela
os trens que se arrastam, tinindo,
como se
se arrumasse o vasilhame da copa.
Quando lá embaixo,
no rio,
se repartem gigantescos caixões,
dir-se-ia que são,
como torrões de açúcar
e sob a ponte
os mastros passam
do tamanho de cabeças de alfinetes.
Sinto-me orgulhoso
deste quilômetro de aço,
eis aqui vivos
os meus velhos sonhos –
luta das construções
contra os estilos,
cálculo exato
dos parafusos,
do aço.
Se viesse
o fim do mundo,
se o caos
pusesse este planeta
de pernas pro ar,
e só ficasse
esta ponte,
empinada por cima das cinzas finais,
então –
assim como de pequenos ossos
mais finos que agulhas,
renascem
os imensos sáurios
dos museus –
a partir desta ponte,
o geólogos dos séculos,
saberia
reconstruir
os dias presentes.
Dirá:
– Esta pata de aço
unia prados e mares,
daqui
a Europa
se lançava para o Oeste,
perdendo ao vento
as plumas indígenas.
Aquele lado ali
lembra uma máquina –
reflitamos –
braços bastantes
para,
com um pé de aço
pousado em Manhattan,
atrair para si
os lábios de Brooklyn?
Pelos fios
da rede elétrica
sei –
era a época
que se seguiu ao vapor –
aqui
as gentes
já gritavam pelo rádio
aqui,
as gentes
já voavam em avião.
Aqui,
a vida
para uns
era folgança,
e para outros
imenso queixume de fome.
Daqui,
os desempregados
se ativaram de cabeça
no Hudson.
E assim minha tela
se distende,
sem detença,
ao longo da cordoalha sonora
até o pé das estrelas!
Vejo –
aqui,
de pé, esteve Maiakóvski,
de pé,
tecendo poemas,
palavra por palavra.
Contemplo a ponte de Brooklyn
como, pela primeira vez,
um esquimó olha um trem,
grudo-me a ela
como um carrapato à orelha.
Oh! a ponte de Brooklyn
há poucas que a igualem.
Sim...
Isso vale!

Fonte: Maiakóvski. 2006. Vida e poesia. SP, Martin Claret. Poema publicado em livro em 1925.

15 abril 2010

Poema absurdo

João Carlos Pádua

Fechou o jornal:
A brasa do cigarro
Ficou intensamente rubra
Junto à janela
O olho do cinzeiro se
Fixou em seus pensamentos
A mão desceu até um pouco mais baixo
A noite começava a se debruçar
Sobre os edifícios

Voltou ao jornal:
Algo sobre uma dançarina de cabaré
Um crime talvez
Um marinheiro bêbado:
Caminha caía ensangüentada

O telefone tocou!
– alô!
– donde falam?
– com quem deseja falar?
A voz rouca cuspiu alguns palavrões:
Alexandrino de merda!

Fonte: Hollanda, H. B., org. 2001 [1976]. 26 poetas hoje, 4ª edição. RJ, Aeroplano.

12 abril 2010

Quarenta e dois meses no ar

F. Ponce de León

Nesta segunda-feira, 12/4, o Poesia contra a guerra completou quarenta e dois meses no ar. Ao fim do expediente de ontem, o contador instalado no blogue indicava que 90.634 visitas haviam sido registradas nesse período.

Desde o balanço mensal anterior – Quarenta e um meses no ar – foram aqui publicados textos dos seguintes autores: Caetano Veloso, Claudia Roquette-Pinto, Markus Zusak, Mozart, Nick Hornby e Richard Brennan. Além de outros autores que já haviam sido publicados antes.

Cabe ainda registrar a publicação de imagens dos seguintes pintores: Ivan Albright, Max Beckmann e Tivadar Kosztka Csontváry.

10 abril 2010

Slam

Nick Hornby

3.
Passei as semanas seguintes na escola sonhando acordado. Na verdade, passei as semanas seguintes da minha vida sonhando acordado. Tudo se resumia a esperar. Lembro que na primeira semana fiquei esperando um ônibus, o 19, que me levaria de casa até a rua dela. De repente, percebi que esperar um ônibus era muito mais fácil do que qualquer outra coisa, porque tudo era apenas uma espera. Quando estava esperando um ônibus, não precisava fazer nada além disso. Mas todas as outras esperas eram difíceis. Tomar o café-da-manhã era esperar, e eu não comia muito. Dormir era esperar, e eu não conseguia dormir muito, embora quisesse, porque dormir era uma boa maneira de passar oito horas ou algo assim. A escola era uma espera, e eu não entendia o que as pessoas estavam falando, durante as aulas ou os intervalos. Ver TV era esperar, e eu não conseguia acompanhar os programas. Até o skate era uma espera, porque eu só andava de skate quando Alicia fazia alguma outra coisa.

Mas geralmente Alicia não estava fazendo outra coisa. Isso era incrível. Ela queria ficar comigo tanto quanto eu queria ficar com ela, pelo que eu percebia.
[...]

Fonte: Hornby, N. 2008. Slam. RJ, Rocco.

07 abril 2010

Cedro solitário


Tivadar Kosztka Csontváry (1853-1919). Magányos cédrus. 1907.

Fonte: Wikipedia.

05 abril 2010

Noventa mil visitas

F. Ponce de León

No meio do expediente desta segunda-feira, o Poesia contra a guerra ultrapassou a marca das 90 mil visitas. Do balanço numérico anterior – ver ‘Oitenta mil visitas’, em 12/11 – até ontem (4/4) ocorreram em média pouco mais de 69 visitas/dia. O recorde positivo de visitantes únicos em um só dia permanece em 185, alcançado em 4/6/2008.

04 abril 2010

A regra de ouro

Mozart

A regra de ouro, a verdade, não é mais reconhecida ou tida em apreço. Para conquistar aplausos é preciso escrever coisas tão simples que um cocheiro as possa cantar, ou tão incompreensíveis que agradem apenas por não poder serem compreendidas por qualquer indivíduo sensato.

Fonte: Solman, J. 1991. Mozartiana: dois séculos de notas, citações e anedotas sobre Wolfgang Amadeus Mozart. RJ, Nova Fronteira. Em carta a seu pai, 1782.

02 abril 2010

Escrita

Claudia Roquette-Pinto

Escrita,
é sempre você quem me resgata
do limiar do iminente nada
que borbulha
em camadas de pensamentos perigosos
e palavras,
cepas resistentes à droga da vida.
E no peito, que quase não respira,
(sobre o qual de bom grado recebo
o anel que aperta)
ouvir florescer
o buquê de promessas.
Assim, rainha
– tão descalça quanto um rei de carnaval –
sob os pés os paetês de brilho fácil
se extinguem ao passo
que a cabeça-balão-de-parada
a cada meneio exibe
o sorriso do enforcado.

Fonte: Moriconi, I., org. 2001. Os cem melhores poemas brasileiros do século. RJ, Objetiva. Poema publicado em livro em 2000.

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