20 novembro 2024

Guarda-te dos avarentos

Rei Salomão

[10] Meu filho, se os pecadores te atraírem com os seus afagos, não condescendas com eles. [11] Se te disserem: Vem conosco, façamos emboscadas para derramar sangue, armemos laços ocultos ao inocente, que nos não fez mal algum; [12] devoremo-lo vivo como o sepulcro (devora os cadáveres), e inteiro como aquele que desce à cova; [13] nisto acharemos toda a sorte de bens preciosos, encheremos as nossas casas de despojos; [14] une a tua sorte à nossa, seja uma só a bolsa de nós todos: [15] meu filho, não vás com eles, guarda-te de andares pelas suas veredas; [16] porque os seus pés correm para o mal, e apressam-se a derramar sangue. [17] Mas debalde se lança a rede diante dos olhos dos que têm asas. [18] Eles mesmos (com isto) armam traições contra o seu próprio sangue, e tramam enganos contra as suas almas. [19] Tais são os caminhos de todos os avarentos; (estes caminhos) perdem as almas daqueles que os seguem.

Fonte: excerto extraído do Livro dos Provérbios (1: 10-19) – Bíblia sagrada (Paulinas, 1965), em tradução de Matos Soares –, cuja redação é atribuída a Salomão, filho de Davi e Betsabéia (ou Betsabá) e rei de Israel (966-926 aC) (ver, e.g., o poema Prole augusta de Davi, de José Elói Ottoni).

18 novembro 2024

As mães

Eugénio de Andrade

Quando voltar ao Alentejo as cigarras já terão morrido. Passaram o verão todo a transformar a luz em canto – não sei de destino mais glorioso. Quem lá encontraremos, pela certa, são aquelas mulheres envolvidas na sombra dos seus lutos, como se a terra lhes tivesse morrido e para todo o sempre se quedassem órfãs. Não as veremos apenas em Barrancos ou em Castro Laboreiro, elas estão em toda a parte onde nasça o sol: em Cória ou Catânia, em Mistras ou Santa Clara del Cobre, em Varchats ou Beni Mellal, porque elas são as Mães. O olhar esperto ou sonolento, o corpo feito um espeto ou mal podendo com as carnes, elas são as Mães. A tua; a minha, se não tivera morrido tão cedo, sem tempo para que o rosto viesse a ser lavrado pelo vento. Provavelmente estão aí desde a primeira estrela. E o que elas duram! Feitas de urze ressequida, parecem imortais. Se o não forem, são pelo menos incorruptíveis, como se participassem da natureza do fogo. Com mãos friáveis teceram a rede dos nossos sonhos, alimentaram-nos com a luz coada pela obscuridade dos seus lenços. Às vezes encostam-se à cal dos muros a ver passar os dias, roendo uma côdea ou fazendo uns carapins para o último dos netos, as entranhas abertas nas palavras que vão trocando entre si; outras vezes caminham por quelhas e quelhas de pedra solta, batem a um postigo, pedem lume, umas pedrinhas de sal, agradecem pelas almas de quem lá têm, voltam ao calor animal da casa, aquecem um migalho de café, regam as sardinheiras, depois de varrerem o terreiro. Elas são as Mães, essas mulheres que Goethe pensa estarem fora do tempo e do espaço, anteriores ao Céu e ao Inferno, assim velhas, assim terrosas, os olhos perdidos e vazios, ou vivos como brasas assopradas. Solitárias ou inumeráveis, aí as tens na tua frente, graves, caladas, quase solenes na sua imobilidade, esquecidas de que foram o primeiro orvalho do homem, a primeira luz. Mas também as podes ver seguindo por lentas veredas de sombra, as pernas pouco ajudando a vontade, atrás de uma ou duas cabras, com restos de garbo na cabeça levantada, apesar das tetas mirradas. Como encontrarão descanso nos caminhos do mundo? Não há ninguém que as não tenha visto com umas contas nas mãos engelhadas rezando pelos seus defuntos, rogando pragas a uma vizinha que plantou à roda do curral mais três pés de couve do que ela, regressando da fonte amaldiçoando os anos que já não podem com o cântaro, ou debaixo de uma oliveira roubando alguma azeitona para retalhar. E cheiram a migas de alho, a ranço, a aguardente, mas também a poejos colhidos nas represas, a manjerico quando é pelo S. João. E aos domingos lavam a cara, e mudam de roupa, e vão buscar à arca um lenço de seda preta, que também põem nos enterros. E vede como, ao abrir, a arca cheira a alfazema! Algumas ainda cuidam das sécias que levam aos cemitérios ou vendem pelas termas, juntamente com um punhado de maçãs amadurecidas no aroma dos fenos. E conheço uma que passa as horas vigiando as traquinices de um garoto que tem na testa uma estrelinha de cabrito montês – e que só ela vê, só ela vê.

Elas são as Mães, ignorantes da morte mas certas da sua ressurreição.

Fonte: Silva, A. C. & Bueno, A., orgs. 1999. Antologia da poesia portuguesa contemporânea. RJ, Lacerda Editores. Poema publicado em livro em 1987.

16 novembro 2024

Mulher com uma pérola


Charles [François] Sellier (1830-1882). Femme à la perle. 1875.

Fonte da foto: Wikipedia.

14 novembro 2024

The world

Henry Vaughan

1

I saw Eternity the other night,
Like a great ring of pure and endless light,
    All calm, as it was bright;
And round beneath it, Time in hours, days, years,
    Driven by the spheres
Like a vast shadow moved, in which the world
    And all her train were hurled.
The doting lover in his quaintest strain
    Did there complain;
Near him, his lute, his fancy, and his flights,
    Wit’s sour delights,
With gloves, and knots, the silly snares of pleasure,
    Yet his dear treasure,
All scattered lay, while he his eyes did pour
    Upon a flower.

2

The darksome statesman, hung with weights and woe,
Like a thick midnight-fog, moved there so slow,
    He did not stay, nor go;
Condemning thoughts, like sad eclipses, scowl
    Upon his soul,
And clouds of crying witnesses without
    Pursued him with one shout.
Yet digged the mole, and, lest his ways be found,
    Worked under ground,
Where he did clutch his prey. But one did see
    That policy:
Churches and altars fed him; perjuries
    Were gnats and flies;
It rained about him blood and tears; but he
    Drank them as free.

3

The fearful miser on a heap of rust
Sat pining all his life there, did scarce trust
    His own hands with the dust,
Yet would not place one piece above, but lives
    In fear of thieves.
Thousands there were as frantic as himself,
    And hugged each one his pelf;
The downright epicure placed Heaven in sense,
    And scorned pretence;
While others, slipped into a wide excess,
    Said little less;
The weaker sort slight, trivial wares enslave,
    Who think them brave;
And poor, despised Truth sate counting by
    Their victory.

4

Yet some, who all this while did weep and sing,
And sing, and weep, soared up into the ring;
    But most would use no wing.
“O fools,” said I, “thus to prefer dark night
    Before true light!
To live in grots and caves, and hate the day
    Because it shows the way;
The way, which from this dead and dark abode
    Leads up to God;
A way where you might tread the sun, and be
    More bright than he!”
But, as I did their madness so discuss,
    One whispered thus,
This Ring the Bridegroom did for none provide,
    But for His Bride.

Fonte (v. 1-7, em port.): Davies, P. 1999. O enigma do tempo. RJ, Ediouro. Poema publicado em 1650.

13 novembro 2024

Climates on a rotating Earth

Robert H. MacArthur

The distribution of the world’s climates is too regular to be due to accidents of history. The world’s deserts are mostly at 30° N or S latitude and usually on the west side of continents. Just farther toward the poles on these west sides of continents we come up ‘Mediterranean climates’ and farther poleward yet, the heavy rainfall, especially in the winter, that causes the temperate rain forests of Washington and southern Chile. The equatorial regions are usually wet by frequent thunderstorms of short duration. These, and innumerable other patterns, suggest that we can understand the climate as a consequence of the earth’s geography, particularly its rotation.

Fonte: MacArthur, R. H. 1972. Geographical ecology. Princeton, PUP.

12 novembro 2024

18 anos e um mês no ar

F. Ponce de León

Nesta terça-feira, 12/11, o Poesia Contra a Guerra está a completar 18 anos e um mês no ar.

Desde o balanço anterior – ‘Aniversário de 18 anos’ – foram publicados aqui pela primeira vez textos dos seguintes autores: Áurea Maria Guimarães, Bernard Campbell, C. Leland Rodgers, Christopher R. Burn, Dorothy Fields, Francisco de Assis Esteves, Fred Hoyle, George C. Homans, Leila Soares Marques, Marcia Ernesto, Myles Burnyeat, Rex E. Kerstetter, Richard Dixon Oldham, Rosa Lía Barbieri e Silvio Zavatti. Além de material de autores que já haviam sido publicados antes.

Cabe ainda registrar a publicação de imagens de obras dos seguintes artistas: Aimé Morot, Augustus Leopold Egg e Marguerite Delorme.

11 novembro 2024

El polo ártico

Silvio Zavatti

Es sabido que, aumentando la latitud norte o sur, aumentan también los períodos de la noche polar y del largo día, que en los polos, en épocas alternas, abarcan seis meses cada uno. […]

A lo largo del círculo polar Ártico, el Sol no se pone durante algunos días de verano y no sale durante algunos días de invierno. Pasado el círculo polar, a medida que nos acercamos al polo, la duración de la noche aumenta, hasta casi el solsticio de invierno (21 de diciembre en el hemisferio boreal, 21 de junio en el hemisferio austral). En el polo Norte, el Sol permanece constantemente bajo el horizonte desde el 22 de septiembre hasta el 20 de marzo; en cambio, desde el 20 de marzo hasta el 22 de septiembre no se pone nunca. Hasta el 21 de junio, su altura con relación al horizonte aumenta progresivamente hasta alcanzar, en el polo, 23°27’. A partir de aquí empieza a disminuir. En la latitud de 68° la duración de la noche es aproximadamente de cuarenta y un días; a 75°, de sesenta y cuatro días; a 80°, de ciento treinta y cuatro días. En Svalbard el día más largo dura cuatro meses y, en invierno, hacia el mediodía, un débil resplandor ilumina el cielo en el sur.

Fonte: Zavatti, S. 1968 [1963]. El polo ártico. Barcelona, Labor.

10 novembro 2024

Teeteto

Bryan Magee & Myles Burnyeat

Magee. – Usted es especialista en uno de sus últimos diálogos, Teeteto. ¿Por qué le interesa este diálogo en particular?

Burnyeat. – Porque lo encuentro muy emocionante y nunca he llegado hasta el final (siempre que vuelvo a él parece que faltan cosas por descubrir). Leibniz tradujo este diálogo, Berkeley escribió mucho acerca de él, Wittgenstein lo citó; en resumen, es un diálogo que los filósofos siempre han encontrado estimulante.

Magee. – ¿De qué trata?

Burnyeat. – La pregunta que plantea es: “¿Qué es el conocimiento?” Y el diálogo es el tipo de discusión socrática que se da en la primera época, pero a una escala mucho mayor. Se dan tres respuestas: el conocimiento es percepción, el conocimiento es el juicio verdadero, el conocimiento es el juicio verdadero junto con su explicación. Cada una de estas respuestas se rebate en un estilo auténticamente socrático. Al final no se nos dice que es lo que Platón entiende por conocimiento, pero aprendemos tantas cosas acerca del problema y de sus ramificaciones, que terminamos la lectura sintiéndonos más afortunados en vez de más desgraciados.

Fonte: Magee, B. 1990 [1987]. Los grandes filósofos. Madri, Catedra.

08 novembro 2024

Vigilância e punição na escola

Áurea Maria Guimarães

Na obra Vigiar e Punir, Michel Foucault trata especificamente das Instituições Penais a partir dos séc. XVII e XVIII, quando as monarquias da época clássica criaram técnicas mais eficazes de poder do que as até então utilizadas, através dos castigos corporais e das cerimônias públicas dos suplícios. O autor se interessa pelo surgimento da utilização de uma tecnologia própria de controle que incidia sobre os corpos dos indivíduos. Ele se refere ao esquadrinhamento disciplinar da sociedade, isto é, a um trabalho de controle minucioso, detalhado, sobre o corpo e a vida dos indivíduos, manipulando seus gestos, seus comportamentos, seus espaços, seu tempo, suas atividades. Essa ‘repartição disciplinar’, essa ‘colocação em quadro’ representa um tipo específico de poder que se encontrava não apenas na prisão, mas em outros lugares como o hospital, o exército, a fábrica, a escola etc.

O séc. XIX inaugura um tipo específico de poder denominado por Foucault de ‘poder disciplinar’, característico de uma forma específica de dominação. Ou seja, com o desaparecimento dos suplícios entre 1830 e 1848, esse poder atua não mais diretamente sobre o sofrimento físico, mas sobre o adestramento do corpo, exercendo pressão sobre o intelecto, a vontade, as disposições, as paixões dos indivíduos. Em lugar dos carrascos surge uma tecnologia nova de controle ativada por guardas, médicos, capelães, psiquiatras, psicólogos, educadores.

Fonte: Guimarães, A. M. 1985. Vigilância, punição e depredação escolar. Campinas, Papirus.

06 novembro 2024

O retorno da caça ao leão


Aimé [Nicolas] Morot (1850-1913). Retour de la chasse au lion. 1902.

Fonte da foto: Wikipedia.

eXTReMe Tracker